[Argentina] Os jovens anarquistas

Por Oscar Muñoz | 02/09/2022

Um equívoco descomunal e interessado, nada casual, atravessa a espinha dorsal sociopolítica argentina atual. Seus protagonistas são os denominados (pela mídia) e (auto) proclamados “libertários”.

Invocando vagas bandeiras de defesa das liberdades individuais a qualquer preço e dispensa absoluta do Estado, as hostes de Milei [um economista e político argentino de extrema-direita] e companhia se apropriaram do conceito “libertário”, baseados em uma prédica economicista, na verdade mais afim ao neoliberalismo, e nas antípodas filosóficas das ideias libertárias e/ou anarquistas. Agrupações de base como a Federação Obreira Regional Argentina (FORA) ou a Federação Libertária Argentina (FLA), com décadas de luta e resistência, tem muito para questionar a respeito.

“O surgimento de certos grupelhos conservadores com alento midiático que, apelando a estratégias demagógicas liberais, buscam usufruir da palavra ‘liberdade’ e se autodenominam ‘libertários’, não é mais que uma expressão da conjuntura especial de crise de representatividade política, ruptura de laços sociais, predomínio do capital financeiro e atomização que se está vivendo”, respondem dogmaticamente desde a FLA.

“Não cabe a FORA entrar no debate político entre dirigentes que pretendem representar uma imaginária vontade popular e deslocar o povo da tomada de decisões vinculadas com a organização social –tomam distância desde a central Obreira mais antiga do país, fundada em 1905. As difamações e a manipulação da linguagem obreira em geral, e anarquista em particular, foram sistemáticas e históricas.”

Em qualquer caso, convêm citar textualmente que “o anarquismo é uma corrente do pensamento social que promove uma associação baseada na liberdade e na solidariedade, fatores de desenvolvimento e bem estar para a sociedade em seu conjunto”.

O objetivo último dos libertários é fomentar um “comunismo anárquico”, caracterizado pela defesa de uma sociedade horizontal sem hierarquias, antiparlamentar, anticapitalista e sem existência de propriedade privada.

Votantes de Milei abstenham-se.

Feitos os esclarecimentos pertinentes, vale perguntar-se: O quê expressa e a quem representa o autêntico pensamento libertário ou anarquista hoje em dia?

Fundada em 1935 por obreiros dos calçados vinculados ao anarquismo, a Biblioteca Popular José Ingenieros, situada na Villa Crespo, é um âmbito propício para encontrar certas respostas atualizadas, ou não tanto. “Desde sua fundação até a atualidade mantemos o mesmo objetivo: estar presentes nas lutas do povo; neste sentido giram nossas atividades, sempre livres e gratuitas, difundindo e solidarizando-nos com conflitos sociais e sobretudo dando espaço às novas camadas de militantes que atuem nas lutas do povo”, prolongam desde o espaço, depositário de um dos arquivos de publicações da categoria mais importantes e maiores do país.

“Na BPJI fazemos oficinas de formação política/ideológica com leituras de clássicos como Bakunin e Malatesta, assim como também atividades onde companheiros relatam sua experiência militante, como os que militaram nos 70 ou compas que têm uma militância na atualidade em algum sindicato, no territorial, no ambiental, no feminismo, no estudantil, etc.”, ilustram.

Ligada a Ediciones Tupac, que publica tanto clássicos como novos olhares, a José Ingenieros também alberga apresentações de livros, ciclos de poesia e “quando se pode, algum festival com músicos, e sempre vão nos encontrar convidando a sair às ruas, seja para um 24 de março, para um 1º de maio ou para pedir justiça por Santiago Maldonado, em solidariedade e defesa dos direitos conquistados por e para os de baixo, e por tantos companheiros e companheiras que com toda honestidade lutam por um mundo melhor”, manifestam.

Desde a Federação, que mantêm seu próprio espaço de reunião, no limite entre Barracas e a Boca, onde se organizam palestras e os típicos ciclos de cine-debate, se declama as diferenças metodológicas com a política convencional. Palavras mais, palavras menos, dizem: “A FLA não se propões gerar uma organização à caça de Agrupações e militantes, mas que sua intenção é poder transmitir experiências de luta, incentivar espaço de sociabilidade, apoiar projetos autogestionários e motivar para que se relacionem e se potencializem federativamente”.

No entanto, no caminho forista, se agrupam “organizações Obreiras aderidas, de modo tal que sua atividade é a que cada organização ou seus membros desenvolve em seu próprio âmbito. Atualmente, as organizações aderidas são sociedades de ofícios vários, quer dizer, organizações intersindicais cuja atividade principal é a participação de seus membros na vida sindical e o ativismo pela organização libertária em defesa dos interesses dos trabalhadores, com a perspectiva de criar organizações por ofício e promover o ativismo sindical”.

Todo preso é político

A história do anarquismo no país remonta à chegada das correntes imigratórias europeias, já desde o final do século XIX, com a formação das primeiras Agrupações sindicais (padeiros e sapateiros) impulsionadas pelo italiano Errico Malatesta, um novelesco personagem da vida real, que partiu para a Patagônia em busca de ouro para financiar sua cruzada ideológica e terminou sua agitada vida prisioneiro na Itália fascista até os anos 30.

Na ocasião, a versão mais radicalizada do anarquismo individualista havia se expressado em outros personagens não menos legendários como Simon Radowitzky, o vingador dos obreiros reprimidos e mortos pelo primeiro chefe de polícia portenho, o coronel Ramón Falcón, ou Kurt Wilckens, que fez o próprio como o maior responsável direto dos fuzilamentos da Patagônia Trágica, o tenente coronel Héctor Benigno Varela.

Ainda que provavelmente ninguém tenha agitado tanto a imaginação da sociedade em seu conjunto como Severino Di Giovanni, o “idealista da violência”, como o batizou seu biógrafo Osvaldo Bayer.

O imigrante italiano Di Giovanni foi julgado de maneira sumária pela ditadura de Uriburu e fuzilado em 1931, na penitenciária da Avenida Las Heras, acusado de vários delitos e atentados que causaram mais de uma vítima, enquanto protestava contra a prisão e julgamento de seus camaradas de ideais, Sacco e Vanzetti, logo após levados à cadeira elétrica nos Estados Unidos, por um suposto assassinato jamais comprovado (a Justiça revogou a sentença décadas mais tarde).

O fuzilamento de Di Giovanni teve um cronista de luxo em Roberto Arlt, que lhe dedicou um de seus melhores textos das gravuras portenhas. Viu-o morrer e registrou suas últimas palavras antes de cair crivado de oito balas.

“Evviva l’anarchia!” (Viva a anarquia), escutou e escreveu Arlt.

Muito mais próximo no tempo, um atentado contra o mausoléu que resguarda os restos de Falcón resultou em um dramático erro quando o artefato de fabricação caseira explodiu nas mãos de uma jovem mulher causando-lhe graves feridas. Como consequência da investigação policial, foram detidas não menos que quatorze pessoas vinculadas com a ação planejada em uma data simbólica. Era 14 de novembro de 2018 e completava um novo aniversário do ataque ao repressor.

As mídias tradicionais sublinharam e condenaram o caráter “anarquista” da ação, mas a vinculação efetiva com espaços militantes de base era pelo menos caprichosa.

Durante a pré-estreia do documentário “El camino de Santiago”, realizado por Tristán Bauer para rebater a versão oficial da morte do artesão Santiago Maldonado no sul, supostos anarquistas apedrejaram os vidros da sala. Tampouco se soube se estavam a favor ou contra.

“A ação direta, o pacifismo e inclusive a violência fizeram parte da história do anarquismo desde suas origens como resposta à violência que exerce o Estado através da perpetuação de um sistema injusto. Não renegamos essa história. No entanto, como organização nos centramos na criação, difusão e conservação de material anarquista e em fomentar o modelo federativo como organização”, se destacam a partir da FLA.

Militantes da vida

Lugar de encontro de diversos grupos e gerações, desde a José Ingenieros defendem um caminho de unidade com uma linguagem inclusiva, um sinal dos novos tempos e novas formas de inserção, vinculadas com aspectos cotidianos e domésticos, sem renunciar aos grandes ideais.

“Enquanto existam as injustiças sempre vai surgir a rebeldia, diziam os companheiros. Hoje se aproxima de nós muita juventude, assim como também muito militantes que vêm desencantados de outras correntes políticas. Há novas camadas que encontram no anarquismo sua trincheira de luta no feminismo, nos bairros populares e nos sindicatos, com muita humildade e sem cair em posições sectárias”, enfatizam.

“Os projetos da FLA funcionam como espaços de possibilidades e de fortalecimento dos que se sentem refratários ao poder e à exploração, complementam. Em suma, trata-se da construção de experiências e aprendizagens para uma transformação revolucionária de nossos mundos.”

Fonte: https://carasycaretas.org.ar/2022/09/01/los-muchachos-anarquistas/

Tradução > Sol de Abril

agência de notícias anarquistas-ana

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Rogério Martins