Resenha do e-book “Memórias Libertárias na Bahia (1970 – 2020)”
Por Renato Lauris Jr.
Entendendo a ação direta, no aspecto anarquista, como algo que não se limita as práticas grevistas, as manifestações e confrontos de rua, mas como uma ação que parte diretamente do indivíduo ou de um coletivo, o lançamento da obra “Memórias Libertárias da Bahia (1970 – 2020)” é uma evidência desta prática. E uma obra, que surge por iniciativa de militantes anarquistas que protagonizaram os eventos ali narrados, um importante documento que a priori nos apresenta duas contribuições: 1° Preenche uma lacuna na bibliografia sobre o anarquismo brasileiro, que hoje com várias dissertações e teses, sendo algumas publicadas em livros e outras armazenadas nas estantes das academias, que em sua maioria retratam o anarquismo das primeiras décadas do século XX e limitando-se, muitas vezes, a região sudeste do país, compreende-se este critério devido ao maior número de imigrantes europeus estarem registrados naquela região, e a posterior industrialização com destaque a São Paulo e Rio de Janeiro sendo a capital brasileira, sendo assim as principais referências econômica e política no Brasil; 2° O resgate da história e memória do anarquismo baiano pelos seus próprios protagonistas, “fugindo” desta maneira dos tradicionais métodos acadêmicos e sendo um potencializador para estudiosos e militantes para o resgate das várias regiões que os anarquistas tiveram sua atuação, colaboraram para a formação de um cenário de pensamento crítico e corpos combativos visando melhores condições de vida, ou como se dizia no começo do século XX, a criação de um mundo novo, que longe dos grandes centros acabam sendo “esquecidos”, desta forma, este resgate é considerado como ação direta, já que parte dos próprios militantes locais.
Vale mencionar, que o anarquismo baiano quando lembrado é mencionado o jornal O Inimigo do Rei, impresso de grande importância para os anarquistas brasileiros, já que em plena ditadura militar, quando os libertários eram vigiados pelos militares, tendo inclusive passado por momentos de represália, como a invasão do Centro de Estudos Professor José Oiticica, no Rio de Janeiro e ocorrendo até apreensão de alguns de seus membros, o que acaba levando ao fechamento do Centro de Cultura Social, em São Paulo, evitando passar por situação semelhante, na Bahia, jovens estudantes driblam dificuldades como ter um local para suas reuniões e onde e como imprimir este jornal, além dos olhares malquistos dos bolcheviques que atuavam no movimento estudantil, lançam este jornal que se converte no porta-voz dos ácratas brasileiros, iniciando sua circulação nas universidades e escolas de Salvador, e que logo amplia sua distribuição estendendo aos estados brasileiros, dialogando com vários militantes, além de divulgar os ideários ácratas para o leitor comum, assim como ter contato com libertários fora do país. A partir do Inimigo do Rei que tem início os relatos das memórias neste e-book.
São nove artigos. Antecedendo as memórias dois textos introdutórios, preparando o cenário para as leituras posteriores. Inicia com um texto reflexivo sobre o passado e presente anarquista, as lutas, reivindicações e os espaços conquistados, sendo algo que não permanece estático, está em constante mutação, e assim, os libertários vão ampliando os espaços de atuação e convivências libertárias possibilitando um futuro cada vez mais próximo do que almeja-se. Na sequência um resgate da história do anarquismo baiano, os primeiros indícios da termologia através da imprensa oficial local, como de praxe, de forma pejorativa, até a intervenção ácrata junto aos trabalhadores, destacando o Sindicato de Pedreiros e Carpinteiros e atuação dos militantes Agripino Nazareth e Eustáquio Marinho, ambos que estavam no Rio de Janeiro, e participaram do grupo que organizava uma insurreição naquele estado, e que na década de 1920 retornaram ao território baiano. Na sequência temos as narrativas dos protagonistas, aqueles que dão continuidade as lutas no princípio do século XX e prosseguem esta jornada, através da atuação impressa em diversos momentos e junto a atuações diversas: O Inimigo do Rei jornal que além das pautas anarquistas dialogava com temas que vinham sendo tratados pela contracultura, e assim sendo, abordam os temas com um viés libertário e mais crítico, temas como questão racial, o consumo de maconha, a questão sexual das mulheres e as homoafetivas, ou como definem num título de primeira página “Prática Sexual Ampla, Geral e Irrestrita”; a Revista Barbárie que além da publicação impressa teve uma atuação visando a inserção e a difusão do anarquismo social, com atuação em sindicatos e bairros periféricos com destaque a periferia de Valéria, local em que junto ao antigo anarquista Antônio Fernandes Mendes, realizaram uma intensa atividade naquela localidade junto com seus moradores, utilizando das metodologias da pedagogia libertária, da ecologia social junto a cultura popular, assim criaram O Instituto Socio Ambiental de Valéria e a Biblioteca José Oiticica;o boletim Bandeira Negra, aqui percebe-se o legado deixado pel’O Inimigo do Rei, e o aspecto federativo que criou junto a outros estados brasileiros, como um veículo de comunicação entre os militantes de todo Brasil, num formato reduzido, Bandeira Negra, seria um órgão de comunicação, interação e desenvolvimento organizacional, entre os militantes baianos localizados não apenas na capital Salvador, mas em outras cidades, como Alagoinha e Feira de Santana; a mobilização urbana dos anarcopunks, a conquista e construção de espaços de intervenção, reuniões e organizações, a aproximação destes junto aos libertários do movimento estudantil, outro legado d’O Inimigo do Rei, e a potencialização destas duas frentes rebeldes resultando em várias manifestações, destacando a conhecida Revolta do Buzu, que tempos depois influenciará o surgimento do Movimento Passe Livre e finaliza com o coletivo editorial e sua publicação A Inimiga da Rainha, não precisamos dizer o que inspirou o nome do jornal, um impresso com foco na interseccionalidade, o que chama atenção neste e a relação geracional, entre velhos e novos militantes, seja colaborativo, seja na convivência, na troca de experiências, seja na prática. Percebe-se, nestes relatos de memória, que a atuação e prática anarquista se adequa a cada época, revisitando o passado para atualizar sua prática visando não cometer os mesmos equívocos e buscando novas possibilidades.
Para finalizar, “Memórias Libertárias na Bahia (1970 – 2020)“, teve seu lançamento em formato e-book, sem gastos e sem custos, possibilitando que vários leitores, curiosos e militantes conheçam as histórias do anarquismo em território brasileiro além do sul-sudeste, em tempos digitais, uma ótima pedida.
Para finalizar, cito uma passagem de Carlo Baqueiro, que acredito está relacionado com a proposta desta obra:
“Deve existir alguma força que nos incite a acreditar nas possibilidades vindouras das ideias que defendemos. Do que escrevemos e divulgamos com o intuito de mudar o mundo. E mesmo que não mude o mundo, possibilita a mudança de alguma alma vagante da humanidade. Alguém que continue o trabalho anterior e possibilite a absorção daquele conhecimento por novos espíritos vagantes”.
>> Para ler-baixar o e-book “Memórias Libertárias na Bahia (1970 – 2020)“, clique aqui:
agência de notícias anarquistas-ana
O coração da aranha
se desfaz em geometria
de seda e mandala.
Yeda Prates Bernis
Essa publicação do povo da Bahia tá muito boa. Valeu, A.N.A.!!!