Por Luís Pedro Cabral | 01/10/2022
Entram com 16 meses, saem com 16 anos. Entram livres, saem libertários. Entram de fraldas, saem com as vestes ideológicas da anarquia. Esta é a história de uma escola livre, autogestionária, em Mérida. Uma escola onde todos fazem tudo em partes iguais, onde é proibido proibir. Estão na forja novos anarquistas. Em nome da velha anarquia perdida. Que, nesta escola, nunca se perdeu.
Se há coisa que o capitalismo nos ensina, como naquela epístola do Leonard Cohen sobre o que toda a gente sabe, é que os pobres ficam cada vez mais pobres e os ricos cada vez mais ricos, que toda a gente quer da vida uma caixinha de chocolates, que neste mundo desigual até a alma tem um preço, que a providência raramente é cautelar e que há ideologias que os estados democráticos e até os autocráticos devem temer, mais ou menos como o diabo teme a cruz ou como um consumidor de electricidade com facturas em atraso teme a visita de um desligador.
É por isso que o anarquismo, que é uma ideologia relativamente moderna, foi remetida para a arqueologia das coisas, como um despojo tecnofóssil de uma civilização perdida em etimologias vagas e interpretações equívocas. Nos arredores de Mérida, cercado por todos os quadrantes pelo polígono industrial da capital da Extremadura espanhola, vive um pedaço dessa utopia.
A Escuela Libre Paideia é um colectivo libertário na mais pura acepção da palavra. A primeira visita que fiz a esta escola que, aliás, não gosta lá muito de abrir as suas portas a pessoas estranhas ao colectivo, foi em 2013. Uma década depois, só mudaram os alunos. O sítio é o mesmo, muitos dos professores são os mesmos, o método autogestionário é o mesmo, o espírito de liberdade o mesmo é, até o cão é o mesmo. Visto de fora, a sensação também é a mesma: parece um lugar habitado por seres em vias de extinção, invulgarmente felizes. Não há stress, competição. Os olhares e os gestos são tranquilos, de uma certa paz, num silêncio quase melódico. Não existe propriamente um regresso às aulas, como existe no ensino estatal ou no ensino privado, coisas que esta escola orgulhosamente renega, vincando bem os seus princípios anarquistas. Material altamente subversivo, avisa-se já.
Em redor do edifício da escola, nada parece bater certo. Neste sítio, não há utopia que valha a um horizonte em tons de cimento e terracota, onde os postes eléctricos se substituíram às árvores. Ao fundo, vê-se o Hospital de Mérida, como um paradigma suburbano que se ergue no Poligono Nueva Cuidad, onde o movimento é incessante, com lojas de tudo e mais alguma coisa, às moscas. A pandemia Covid 19 foi inclemente com os extremanhos.
A dado momento, já tinha a Extremadura espanhola mais vítimas mortais que Portugal por inteiro. Esta cidade, erigida ex nihilo no ano 25 a.C. por ordem do imperador romano Octávio Augusto, resistiu às mais mortíferas vagas da pandemia, mas parece dar sinais de pouca resistência à escalada de uma crise que se instalou no mundo com a guerra na Ucrânia, à qual Espanha, tal como Portugal, parecem ainda longe de conquistar imunidade. O corrupio é constante, mas os cafés, os restaurantes, o comércio estão na travessia de um deserto.
Lá ao fundo, na sua vida, sobrevive a anarquia numa casa campestre, onde não é permitida a entrada ao admirável mundo novo que deixou Espanha mergulhada numa crise profunda, que tudo fez estremecer e mais os valores inalienáveis. Parece que o tempo não passou por ali. Ou, então, parece que já passou e aquele é um ground-zero da globalização, um cenário pós-apocalíptico com roupa nos estendais. Oito mulheres e pouco mais de trinta crianças, o número nunca é estanque, formam um grupo de “perigosos” anarquistas, guardados por um cão demasiado velho para ladrar.
Na escola Paideia – Escuela Libre -, exemplar único na Península Ibérica, se não na Europa, ensina-se o anarquismo, na praxis de uma pedagogia libertária, antiautoritária, das 9h00 às 18h00. Não gostam de visitas. Usam roupas simples, falam de liberdade, de igualdade. Acreditam na individualidade e que é nisto que reside a harmonia de um grupo, uma família, uma comunidade, um pueblo, uma cidade, um país, um mundo melhor. Reclamam a sua quota do impossível, fazendo o que podem para o contrariar, naquele hectare de um sonho vasto.
São orgulhosamente sós, este conjunto de hermanos e hermanitos, mestres e aprendizes de uma estirpe rara de gauleses ibéricos, a viver no âmago da maior cidade da antiga Lusitânia.
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