[Espanha] Uma experiência extremenha de escola em liberdade

A experiência pedagógica impulsionada por Josefa Martín Luengo em Fregenal da Sierra é um marco na história recente da escola livre

por Chema Álvarez Rodríguez | 01/09/2018

Apesar da chuva que estava caindo, 1976 não foi um ano chuvoso na Espanha. A persistente seca, prolongada após a morte de Franco, mas não do franquismo, acomodava ainda uma sociedade cheia de autoritarismo repressivo, moralismo beato e militarismo patrioteiro.

Não eram bons tempos para o anarquismo. Apenas dois anos antes, em 1974, o jovem membro do clandestino Movimento Ibérico de Liberação, Salvador Puig Antich, havia sido preso no cárcere Modelo de Barcelona, após assinar a sentença de sua pena de morte uns quantos ministros a quem a justiça argentina reclama hoje em dia a nosso Governo, que ainda anda mareando papéis, por crimes de lesa humanidade.

No educativo, o ensino espanhol continuava sendo aborrecido, apesar do que Gianni Rodari escrevera em sua “Gramática da Fantasia“, de 1974: “em nossas escolas, falando em geral, se ri muito pouco”. O rebuliço escolar só estava animado pelos ainda chamados professores nacionais, protagonistas durante novembro de 1976 de uma greve de vários dias consecutivos apoiada por mais de 95.000 professores e professoras do Estado espanhol, mais de 77% do censo total de professores. Suas reivindicações iam desde a posta em prática do princípio de igual trabalho igual salário, até a exigência do cumprimento real da lei vigente, a Lei Geral de Educação de 1970, que assegurava a gratuidade do ensino até os 14 anos, plena escolarização e democratização dos centros. Um pufo.

Em boa parte da Europa a porcentagem de meninos e meninas escolarizados na etapa pré-escolar (de 2 a 5 anos) era de quase 100%, enquanto na Espanha apenas superava 35%. Mais da metade dessa porcentagem estava em mãos de colégios privados, o qual marcava a educação pré-escolar como um claro privilégio de determinadas classes sociais (Leoncio Vega Gil, La reforma educativa en España, 1970-1990).

Ainda assim, o da privada era uma fraude total. Como aponta Dolors Marin (Anarquistas. Un siglo de movimiento libertario en España, Ariel, 2010), abundavam escolas privadas que apenas reuniam os requisitos mínimos para receber esse nome. Escolas montadas em casas de particulares, que exerciam como professores ou professoras sem ter nem sequer a titulação adequada, carentes de serviços ou banheiros, com habitações que faziam as vezes de classe onde se concentrava o alunado em umas condições deploráveis, praticantes de um ensino autoritário baseado nos castigos corporais, uma escola de cruz e palmatória fanatizada pela religião, com uma radical segregação entre meninos e meninas, tanto nos espaços como nos conteúdos curriculares, quando os tinha. Alguns daqueles supostos ou falsos professores, sempre maus, têm agora seus nomes nas ruas.

Nesse contexto, com estudantes mortos nas ruas nas mãos das chamadas “forças de segurança” ou de grupos de ultradireita, surge em Fregenal da Sierra, um povoado situado ao sul de Badajoz, na Extremadura profunda, uma experiência anarquista de caráter pedagógico que ficou fielmente documentada por sua impulsionadora, principal protagonista e referência em pedagogia no âmbito da educação, Josefa Martín Luengo, uma professora salmantina de 32 anos que chegou a terras extremenhas em 1975 para tornar-se diretora interina da escola casa Nertóbriga, uma residência escolar de caráter público com aproximadamente 200 alunos e alunas menores de idade em regime de internado, provenientes do disperso meio rural e atendida por sete professores e professoras.

Aquela professora, educada em sua infância em uma escola de monjas, recém licenciada em Salamanca, com estudos de psicologia pedagógica em suas costas, levava não só uma bagagem intelectual, mas vivencial, após haver trabalhado em uma escola religiosa de proteção de menores em Zamora, de onde foi expulsa, e em uma escola masculina de Toro, de onde foi também destituída por exigir melhoras laborais. Justo antes de conseguir cadeira na escola pública participou também nas campanhas de alfabetização de pessoas adultas de Zamora.

Sob o título “Fregenal de la Sierra, una experiencia de escuela en libertad“, Josefa Martín Luengo escreveu entre 1976 e 1977 um diário pedagógico que seria publicado como livro em abril de 1978 pela editorial Campo Abierto Ediciones, e reeditado depois em 1980, com prólogo do filósofo e estudioso do anarquismo Carlos Díaz. Nesse diário, Pepita, como era conhecida sua autora, narra o vivido em consequência de sua tentativa de levar a cabo um projeto educativo claro que recolhia boa parte do experimentado pela tradição pedagógica libertária e contribuía com uma novidade transformadora para a comunidade mais próxima, dominada por um sistema, em suas palavras, “nefasto, com um marcado caráter necrófilo”.

Seu propósito, transmitido aos outros professores que a acompanhavam inicialmente nesta aventura, está claro: criar uma escola onde se possa adquirir a liberdade, processo consequente com a pedagogia anarquista que se desenvolve em dois tempos, tal e como se expressa no Breviario del pensamiento educativo libertario, de Tina Tomassi (editorial Madre Tierra, trad. de Marta Martín, Cali, Colômbia, 1988), dos quais o primeiro, negativo, consiste na anulação dos pseudo-valores, em acabar com os prejuízos, e o segundo, positivo, na iluminação das consciências para prepará-las para novas formas de convivência.

O Fregenal da Sierra de 1976 era uma terra onde se dava um “trabalho educador da Igreja, a Seção Feminina, etc., na imposição de uma mentalidade do respeito – resignação -, ou servilismo, a aceitação das classes, a brutal repressão sexual, tão difícil de burlar em mundos tão pequenos nos quais todos sabem das vidas de todos e nos quais a mentalidade tradicional familiar é o maior gendarme” (Juan Serna, “El hijo do colono“, em Extremadura saqueada, Ruedo Ibérico, 1978). O projeto de Pepita haveria de provocar uma clara reação de um sistema educativo disposto a cumprir, após a morte do ditador, a máxima política lampedusiana de mudar tudo para que tudo siga igual.

Foi tal o choque da experiência de Fregenal e a reação provocada no meio extremenho que, já no mesmo prólogo do livro, Carlos Díaz adverte: “esta machista sociedade fez sofrer muito a uma fêmea solitária, enjaulada com seu diploma universitário nas grades de uma das mais tenebrosas regiões espanholas, onde a oligarquia e o caciquismo fariam as delícias do mais feroz antiCosta. Extremadura cacique, conquistadora por conquistar! Extremadura podre, mal educada e por educar!”.

Este deserto educativo da região extremenha se estendia por toda a nação. Neste abandono só se destacavam umas quantas experiências levadas a cabo por professores conscientes ante a realidade e responsáveis de seu dever de transformá-la. Deixou marcas o trabalho de Francisco Fernández Cortés e sua Escuela viva em Orellana la Vieja, na Sibéria extremenha, iniciada inclusive antes de que morresse Franco. Francisco Fernández a documentou em dois livros e a assembleia de deputados de Badajoz reeditou a experiência em parte em uma publicação de 2002. De inestimável valor é, ademais, o documentário audiovisual de Julián Pavón, Escuela viva, de 2004, onde também aparece Josefa Martín Luengo narrando seus avatares e uma mostra de seu trabalho pedagógico.

No resto da Espanha apenas destacaram outras iniciativas, entre as quais cabe assinalar a de Escoles em lluita, Escolas em luta de Barcelona, que aglutinava a três escolas de bairros obreiros surgidos do desenvolvimentismo franquista, onde não existiam serviços comunitários, com pais e mães jovens que passavam o dia trabalhando nas fábricas e meninos e meninas sem escolarizar, abandonados a sua sorte. Foram três as escolas em luta, organizadas por professores e professoras com uma clara ideia transformadora: Ferrer y Guardia, Soller e Pegaso. A experiência seria recolhida em uma publicação editada pelo “Col-lectiu “Caps de setmana em 1978.

Ser anarquista na Espanha após a morte de Franco era, para o Estado e certas classes abastadas, ser o demônio personificado. E segue sendo. O regime, disposto a iniciar uma transição modelo que perpetuasse o essencial do mesmo, com um ou outro morto, não estava disposto a tolerar certas iniciativas que implicassem mudanças profundas na questão ideológica. Já o disse Rodolfo Martín Villa (também investigado hoje pela justiça argentina) quando era Ministro de Governo: “Não me preocupam os assassinos de [os desenhistas de] El Papus, nem os [dos advogados] de Atocha. O que me preocupam são os anarquistas do movimento libertário”.

Ante a repentina e incessante eclosão desse novo movimento libertário após a morte do ditador, da qual fica escassa documentação ou memória gráfica, mas tão bem narrada em seus múltiplos aspectos e vertentes políticas, educativas, musicais, etc., em livros como o de Dolors Marín já mencionado ou no de Antonio Orihuela Poesía, pop e contracultura en España (Berenice, 2013), o establishment espanhol tinha muito claro que não podia permitir que experiências de mutualismo e cooperação sem hierarquia ou sem colaboração do Estado prosperassem. Se temia o que o antropólogo James C. Scott definiu como um dos fundamentos do anarquismo: a tolerância deste mesmo à confusão e a improvisação que acompanham a aprendizagem social, e sua confiança na cooperação espontânea e na reciprocidade (James C. Scott, Elogio del anarquismo, trad. de Rosa M. Salleras Puig, Crítica, 2013).

O projeto de Josefa Martín Luengo, Pepita, vertido em seu livro sobre Fregenal da Sierra, foi uma mostra mais dessa reação do Estado e associados. Inicialmente aprovado pela inspeção educativa, aplaudido pelo então ICE (Instituto de Ciências da Educação, vinculado à Universidade), bem visto pela Associação de Pais e Mães do alunado, o projeto sofreu, conforme avançava e ia se tornando realidade, a crítica, o rechaço, o boicote e, por último, a mais dura repressão, na pessoa de Josefa Martín Luengo, nas mãos dos atores e atrizes mencionados. Como diz Carlos Díaz em seu prólogo, esteve a pique de que a pegassem fisicamente.

Mas além da anedota repressiva, o diário pedagógico narra o dia a dia de um projeto coerente, eficaz, não isento de situações carregadas de humor, amor e ternura, com claras expressões de solidariedade e apoio mútuo, como quando a mãe de dois alunos, uma menina de 13 anos e um menino de 9, acode ao centro para levar a sua filha e filho porque “o marido está enfermo e despedido do trabalho, não tem nenhum tipo de rendimentos e a necessidade de colher as azeitonas de um pequeno sítio do qual terão de viver”, e tanto o menino como a menina terão de deixar a escola para ajudar na colheita. Dado que há greve do professorado, a metade dos professores, junto a seis dos alunos maiores, que se apresentam como voluntários, decidem ir ao sítio da família e passam três dias “colhendo azeitonas, um trabalho duro e cansativo!”.

O diário é um compêndio de pedagogia, um manual que inclui as correntes educativas mais avançadas do século XX e da notícia de numerosas experiências de caráter libertário. O processo de conscientização de Freire, tão próprio da pedagogia do oprimido, compartilha páginas com a Contra escola dos alunos de Barbiana ou com o Coletivo zero à esquerda do sindicato de ensino da CNT. Coeducação, educação afetivo-sexual, ecologismo, crítica para um consumo responsável, educação para a tolerância, autogestão e outros ensinos mais foram práticas docentes daquela escola de Fregenal em 1976, quando tais palavras nem tão sequer apareciam no glossário educativo espanhol.

A autocrítica faz parte também do livro, feita como reflexão pausada, ao cair a noite e quando o alunado e o resto de companheiros professores dormem. O princípio da escola racionalista de Ferrer y Guardia, “não há direitos sem deveres nem deveres sem direitos”, prima no viver cotidiano desta pequena comunidade na qual também se trata de conscientizar a pais e mães. As situações vividas entre o grupo de “los sucios” (que decidiram não limpar seus quartos) e “los limpios” (já conscientes de suas responsabilidades), introduzem no texto um dinamismo não isento de humor e humanismo.

A crítica ao sistema educativo está presente em todo momento, em toda ação, mas alcança seu clímax na cena de Nochebuena (noite de natal), que parte do professorado organiza em vésperas de férias para o alunado (“los sucios” incluídos) e no qual tanto a autora como algumas companheiras e companheiros decidem servir os pratos. A esta cena foram convidados os “professores”, que exercem sua profissão nos colégios próximos, sentados no “habitual lugar de preferência”, compartilhando mesa com o pessoal de serviço, que por uma vez poderá desfrutar em igualdade de condições da ceia. A humilhação e vergonha que expressam os professores convidados ficam refletidas nos comentários da autora, que parafraseando Carlos Díaz (Escritos sobre pedagogía políticaMarfil, Alcoy, 1976), e em referência ao motivo essencial da greve mantida na docência durante aquelas datas, diz: “Ah, o prazer do doce triênio! O salário se transformou no soldo opiáceo. A igualdade econômica interdocente viria a ficar reduzida, para muitos pelo menos, a uma trincheira segura, desde a qual abarcar a outras pessoas e levantar com orgulho a bandeira da própria casta de sábios, com menosprezo dos párias de baixo”. Não seriam tão desencaminhados.

A assembleia vai se configurando como ferramenta essencial de tomada de consciência e adoção de decisões. Seu mecanismo é explicado passo a passo através das muitas que se celebram, empregadas como elemento mediador na resolução não violenta dos conflitos reais que surgem. Não há idade para participar na mesma ou para coordená-la. Em ocasiões, quem a coordena, de modo eficaz, não tem mais de sete anos.

Fregenal da Sierra, uma experiência em liberdade, não é, nem muito menos, um experimento social ou educativo. Assim o faz constar sua autora ao presidente da Associação de Pais e Mães. Trata-se de um projeto real, sem volta atrás, onde se assumem as consequências do mesmo desde o papel de cada um, de cada uma. Frente à exaltação emocional de mães e pais, assustadas ante o que lhes contam suas filhas e filhos, destacam as explicações racionais da diretora da escola casa, convidativas sempre à reflexão e ao diálogo.

Mas o jugo e a barra não tardarão em tomar forma no corpo da Inspeção educativa que atende à escola casa Nertóbriga, de Fregenal da Sierra. Ainda que o projeto foi posto negro sobre branco em conhecimento da inspeção, que no princípio deu o visto bom ao documento, ao longo do mesmo gerará nesta uma reação brutal de autoritarismo e repressão, evidenciada nos três inspetores (dois homens e uma mulher) que impõem sua autoridade sobre o centro, focalizando dita repressão em sua autora. O inspetor de zona, a inspetora relatora e o inspetor chefe serão os encarregados de exercer dita repressão. A descrição feita dos modos de atuar, tais como a referência aos habituais monólogos dos inspetores na hora de entrevistar-se com o pessoal implicado, não deve nada às práticas que se foram perpetuando em séculos neste corpo docente até nossos tempos. Em uma dessas entrevistas, o inspetor de zona ordena claramente que os meninos e meninas rezem em grupo e em voz alta todos os dias, em um claro e são exercício educativo de vantagem. A reflexão feita por Josefa Martín ante tais convenções diz tudo: “Que tristeza! Que tristeza mais profunda se aninhou no mais profundo de nosso ser como pessoas! E que vergonha, e que medo, e que obscuridade!”.

Menção aparte merece a mesquinhes da Administradora da escola casa, em seu papel de delatora e autora do boicote ao projeto desde a sombra. Não obstante, em nenhum momento é julgada com personalismos, mas desde a compreensão de sua aprendida ignorância, temor irracional e pobreza de espírito.

Josefa Martín Luengo, Pepita, foi obrigada, por mandato da Inspeção educativa, a deixar seu cargo de diretora da escola casa Nertóbriga de Fregenal da Sierra um 14 de abril de 1977, na volta das férias de Semana Santa, após instruísse um expediente disciplinar. O detonante foi a publicação no último número de março desse ano de um artigo sobre a experiência, assinado por Luis Carandell, na revista Cadernos para o diálogo. Como ela mesma expressou no livro que referimos, enquanto aquela utopia, vista como “a possibilidade de educar-se democraticamente na liberdade responsável”, resultara anônima e se desenvolverá na sombra, o sistema estava disposto a tolerá-la, mas uma vez que se tornou visível, esse mesmo sistema agiu rápido para fulminá-la, exigindo, apesar de seu evidente êxito, que o centro voltara a um regime férreo de autoridade, disciplina e submetimento.

O mesmo sucederia no resto do Estado com o ressurgir do movimento libertário, que cada vez ia tomando mais força. O caso Scala, em 1978, foi o exemplo mais claro do processo seguido contra o anarquismo espanhol.

Josefa Martín Luengo, mulher, funcionária titular do Estado, foi despojada de todos os seus direitos e transladada àEscuela Unitaria Mixta de La Bazana, povoado de colonização de cerca de 200 habitantes, para se encarregar de uns 15 meninos no total. Ali, no exílio escolar, represaliada, vigiada, censurada, isolada, recebeu o apoio de companheiros como Paco Fernández Cortés (Escuela viva, de Orellana da Sierra). Posteriormente foi transladada a Montijo, onde deu aulas e assessorou a um colégio de educação especial.

Seu trabalho pedagógico continuou até fundar em companhia de outras mulheres, em 1978, a Escuela livre Paideia, na cidade de Mérida, que este ano completa 40 anos de existência como escola real, possível, que começou com só oito alunos e alunas e agora conta com mais de 70, alheia ao autoritarismo e intervencionismo estatal e é, hoje em dia, uma referência ativa internacional da Pedagogia sem adjetivos e com maiúscula, apesar de que seja ignorada, desrespeitada sistematicamente pelo sistema educativo formal de Extremadura e do resto da Espanha.

Mas isso já… é outra história.

Fonte: https://www.elsaltodiario.com/saltamos-extremadura/experiencia-extremena-escola-liberdade-fregenal

Tradução > Sol de Abril

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