David Graeber, que infelizmente morreu muito jovem há dois anos, era um antropólogo de grande prestígio acadêmico – uma faceta que não entrarei aqui, mas seu grande trabalho intelectual é acessível a qualquer um, o que é realmente interessante -; em nível acadêmico deve ser dito que, por causa de seu radicalismo, suas portas foram fechadas nos Estados Unidos, razão pela qual acabou em Londres e se envolveu muito no movimento estudantil britânico. Graeber também foi um ativista político e social, um dos protagonistas do movimento Occupy Wall Street, inspirado em grande parte pelos indignados dos espanhóis 15M e também pela primavera árabe de 2011, cujo objetivo não era criar um partido político mas “bombear ideias e estímulos para regenerar a democracia”; a experiência do Occupy foi capturada por Graeber neste livro, We Are the 99%. Uma história, uma crise, um movimento; o título alude ao slogan adotado, que virou a obsessão com as supostas maiorias da democracia parlamentar, de que é o 1% mais rico da população que toma as decisões do mundo.
Graeber não pensava, a priori, que o movimento Occupy estava enraizado em qualquer grande tradição da história americana, ele estava mais interessado em falar sobre suas raízes no anarquismo e no feminismo; no entanto, ele fez uma distinção entre democracia, entendida como propaganda pelos poderes – isto é, simplesmente uma forma de eleger políticos para governar, e uma tradição na sociedade americana com uma visão democrática ampla e profunda: uma visão perfeitamente compatível com o libertário, que envolve uma combinação de liberdade individual com a ideia de que pessoas livres e responsáveis são capazes de se sentar e falar sobre seus próprios assuntos. Isto explicaria porque aqueles que estão no poder nos Estados Unidos, e podemos estender isto a qualquer sociedade hierárquica, têm tanto medo de movimentos verdadeiramente democráticos ou compreendidos, como Graeber explica.
Também não devemos ser ingênuos e pensar que a maioria das pessoas nos Estados Unidos são anarquistas, por mais que critiquem o governo, já que a educação e a propaganda provavelmente já são responsáveis por estabelecer limites; no entanto, é uma visão muito interessante e vai muito mais longe do que esta outra, muito difundida, de entender a democracia simplesmente como a participação nas eleições para eleger os responsáveis. Movimentos como o Occupy, ou 15M, demonstram o desejo de muitas pessoas de traduzir este ideal de autogestão em experiências, de perceber que isso é possível através de assembleias e tomadas de decisão horizontais.
De fato, um dos textos mais notáveis de outro livro, Anarquismo e Antropologia. Relaciones e influencias mútuas entre a antropologia e o pensamento libertário, é firmado por David Graeber, com abundante material de referência que lhe confere solidez: o artigo se intitula “O Ocidente nunca existiu ou a democracia emerge dos espaços entre eles”, cujo título já é uma declaração de intenções. O texto de Graeber, que questiona não só o fato de que a democracia tem uma tradição puramente ocidental, mas também o próprio conceito de Ocidente, e que tenta desvincular esta opção política de sua redução à “eleição de representantes” para levá-la a um terreno de decisão libertário, descentralizado e igualitário, vale a pena ler neste livro, que, no entanto, inclui outros artigos muito interessantes sobre a relação entre o anarquismo e a antropologia.
E Fragmentos de uma antropologia anarquista é o título de outra obra de David Graeber. A primeira pergunta que o autor faz é por que há tão poucos anarquistas na academia, mesmo em um momento em que as ideias libertárias estão em seu auge; movimentos de inspiração anarquista estão surgindo, mas isto não se reflete nas universidades. A conclusão de Graeber é que, enquanto o marxismo é um discurso teórico analítico sobre estratégia revolucionária, o anarquismo tendeu a ser um discurso ético sobre prática revolucionária (sempre sendo um pouco cauteloso quanto às simplificações e levando em conta as muitas nuances da realidade). Em suma, as preocupações do anarquismo foram dirigidas às formas de prática, daí sua famosa insistência em meios segundo os fins: é impossível gerar liberdade usando o autoritarismo. Graeber considera que esta coerência, que antecipa na vida cotidiana a sociedade libertária do futuro, não se encaixa muito bem em uma instituição arcaica como a universidade. Um professor anarquista deveria ao menos questionar o funcionamento das universidades, e isso só pode levar a problemas.
Entretanto, os anarquistas não são necessariamente contra a teoria. O anarquismo é tanto uma ideia quanto um projeto subversivo em relação às estruturas de dominação, sempre construindo a alternativa dentro da velha sociedade; portanto, as ferramentas são necessárias para fornecer o conhecimento e a análise intelectual necessários. Embora não sendo radicalmente antiteórico, sempre se buscou um processo de consenso em grupos anarquistas, forçando a aceitação da necessidade de múltiplas perspectivas teóricas tão amplas quanto possível, unidas por certas convicções e compromissos comuns. Graeber vê como parte do processo de consenso a aceitação por todos, desde o início, de um conjunto de princípios amplos de unidade, que são assumidos como necessários para a coesão do grupo; além disso, porém, é óbvio no mundo libertário que ninguém vai converter ninguém completamente a seus pontos de vista e que é melhor não tentar, portanto, a discussão se concentrará no assunto concreto da ação e na elaboração de um plano aceito por todos, no qual ninguém verá seus princípios serem transgredidos. Como pode ser visto, o anarquismo está mais preocupado em buscar projetos particulares que se reforcem mutuamente e não em provar que outros estão partindo de posições erradas. As diversas teorias podem estar distantes em alguns aspectos, mas isso não significa que elas não possam existir e até mesmo reforçar-se mutuamente; da mesma forma, as pessoas podem ter visões particulares e irreconciliáveis e ainda ter uma relação íntima ou participar de um projeto.
Graeber faz um pequeno manifesto contra a política; deve-se sempre deixar claro que esta concepção de política pressupõe um Estado, ou aparato governamental, a fim de impor sua vontade a outros. Nesta visão, a política está a serviço de alguma elite que é mais capaz do que as demais de administrar os assuntos de interesse de todos, e por isso será sempre contrária à ideia de pessoas administrando seus próprios assuntos. Graeber dedica seu breve ensaio precisamente a questionar qual poderia ser a teoria social apropriada para aqueles que procuram criar um mundo no qual as pessoas sejam livres para administrar seus próprios assuntos. Para isso, ele estabelece algumas premissas iniciais, que podem ser reduzidas a duas principais. A primeira é que é necessário partir da hipótese de que “outro mundo é possível”, uma frase muito utilizada inspirada em uma canção popular brasileira, para que instituições como o Estado ou o capitalismo, ou qualquer outra perniciosa, sejam evitáveis; em grande medida, é necessário um ato de fé para isso, mas precisamente a impossibilidade de conhecimento absoluto nos faz adotar o otimismo quase como um imperativo. Diante de todas as tentações conservadoras, algo que parece inerente aos seres humanos, devemos sempre encorajar o progresso, lembrando que podemos estar traindo o novo mundo se insistirmos em justificações e reproduzindo os modelos atuais.
É por isso que Graeber faz outro pequeno manifesto, desta vez contra o anti-utopismo; é uma tendência da era do “fim das ideologias” considerar que a tentação utópica levou a humanidade aos piores horrores. Em primeiro lugar, todo utopismo se reduz às diferentes formas de socialismo autoritário (marxismo-leninismo, estalinismo, maoísmo…), em nome do qual milhões de pessoas acabaram sendo assassinadas; deve-se dizer que estas práticas acabaram confundindo seus sonhos de um mundo melhor com certezas científicas e impuseram seus pontos de vista através de todo um mecanismo de violência. Os anarquistas não propõem nada semelhante, nem consideram os eventos históricos inevitáveis, nem têm a mínima intenção de construir qualquer instituição coercitiva. Graeber nos lembra algo importante, que é que a criação de formas sistêmicas de violência é sempre um ataque ao papel que a imaginação pode ter como princípio político; é necessário reconhecer isto como um primeiro passo precisamente para erradicar todas as formas de violência sistêmica. Esta, então, é a primeira proposta para uma teoria social de uma sociedade libertária: a capacidade de conceber um outro mundo melhor.
A segunda proposta de Graeber é que qualquer teoria social anarquista deve rejeitar qualquer tentação ao vanguardismo. O papel dos intelectuais não é, obviamente para o mundo libertário, formar uma elite capaz de desenvolver as análises estratégicas relevantes e depois atuar como diretores das massas para realizá-las. Sobre a questão do papel dos intelectuais, Graeber lembra que esta foi uma das razões para chamar sua obra de Fragmentos de uma Antropologia Anarquista, pois é esta disciplina que está melhor posicionada para elaborar tal teoria social. Por um lado, os antropólogos confirmaram através de suas pesquisas a existência de uma multidão de comunidades baseadas no autogoverno e com uma economia distante do capitalismo; por outro lado, a etnografia fornece algo como um modelo de como uma prática intelectual revolucionária não vanguardista poderia funcionar. Etnografia envolve observar o que as pessoas fazem, tentando extrair a lógica simbólica, moral ou pragmática que está subjacente a suas ações, tentando dar sentido aos hábitos e ações de uma comunidade. É por isso que o intelectual pode observar aqueles que estão realizando alternativas viáveis, tentar antecipar quais serão as implicações do que já está sendo feito e devolver essas ideias como contribuições ou possibilidades (nunca como prescrições). Assim, este projeto intelectual proposto por Graeber pode ter dois aspectos ou momentos: um etnográfico e um utópico, em constante diálogo. Embora nada disto pareça ter muito a ver com a antropologia dos últimos cem anos, Graeber nos lembra, houve uma afinidade peculiar entre o anarquismo e a antropologia durante este tempo, o que em si mesmo é significativo.
E partiremos para outro espaço para mergulhar em mais duas obras volumosas da Graeber. Uma delas é Dívida. Uma história alternativa da economia, que analisa as origens do sistema capitalista e considera a dívida econômica como uma ferramenta dos Estados para controlar as pessoas; Graeber defende, portanto, o cancelamento de todas as dívidas, tanto de indivíduos como de países a nível internacional. A origem deste trabalho, que é uma revisão histórica rigorosa e uma alternativa às histórias habituais da economia da antiga Mesopotâmia, está na distorção moral generalizada que considera obrigatório pagar sempre as dívidas, por mais criminosa que seja a origem das dívidas. Na esteira da crise de 2008, que expôs a falsidade de tudo o que o poder econômico e político nos levou a acreditar, Graeber propõe um verdadeiro debate público sobre a natureza da dívida, do dinheiro e das instituições financeiras. Um volume de mais de 500 páginas (sem contar as notas), mas que vale bem a pena ler.
E o último trabalho de Graeber, publicado em espanhol em outubro de 2022, co-escrito com o arqueólogo David Wengrow, é A Aurora de Tudo. Uma Nova História da Humanidade. Acabo de comprá-lo e apenas comecei a lê-lo, mas estou ardendo de vontade de fazê-lo, um ensaio onde um antropólogo e um arqueólogo, de mãos dadas, com intenções cada vez mais convergentes, reconstroem em uma obra que durou décadas a grande narrativa que é a história da humanidade. Infelizmente, Graeber morreu pouco depois de terminar esta obra e não pôde vê-la publicada, mas aí reside o grande legado intelectual e humano, que tanto fez por uma sociedade mais justa, uma grande esperança para os oprimidos do mundo. Continuaremos a nos aprofundar em seu trabalho para que possa servir de inspiração para nós.
Capi Vidal
Fonte: http://acracia.org/el-legado-intelectual-y-humano-de-david-graeber/
Tradução > Liberto
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