Como um projeto de leitura criado por uma manicure vem transformando o bairro onde se deu uma das maiores chacinas do Ceará
Por Lianne Ceará | 09/03/2023
Toda segunda-feira à noite, depois de acomodar pedaços de bolo num recipiente de plástico, Rita de Cássia da Silva deixa a cozinha de sua casa e vai ao quarto pegar uma bolsa repleta de livros. As publicações vêm de uma estante imensa que ocupa quase toda a sala do imóvel simples onde a manicure de 55 anos mora com dois filhos e uma neta. Localizada na periferia de Fortaleza, a residência de três dormitórios sedia a biblioteca comunitária Livro Livre Curió, organizada por Rita de Cássia – uma mulher parda – e sua família. Carregando a bolsa e os pedaços de bolo, a manicure sai desacompanhada e percorre pouco mais de uma quadra até chegar à CasAvoa, pequeno centro cultural que funciona como extensão da biblioteca. Quando entra no espaço, já está rodeada dos meninos e meninas que, ao vê-la passar pela rua, tratam de segui-la. É dia do clube infantojuvenil de leitura. “Tia Ritinha, olha a blusa que vesti hoje. Igualzinha à sua”, comentou uma das trinta crianças presentes na última segunda de janeiro. A camiseta cor de laranja trazia o nome da biblioteca em letras garrafais. Também exibia desenhos de pássaros, folhas e três personagens com feições indígenas.
Foi um dos filhos da manicure, o produtor cultural Talles Azigon, de 33 anos, quem teve a ideia da Livro Livre em 2018. Parentes e amigos logo o apoiaram e doaram não só a estante como centenas de volumes. Ex-professora de uma creche, onde trabalhou por duas décadas, Rita de Cássia acabou virando coordenadora da biblioteca e mediadora de leituras. “A gente se baseia no pensamento anarquista de autonomia e autogestão. Por isso, dizemos que a biblioteca é livre. Os usuários não pagam nada, não precisam se cadastrar e não têm prazo para devolver os livros que pegam emprestados”, esclarece Azigon. Ele começou o projeto pouco depois de sua avó materna morrer. “Como minha mãe caiu num luto profundo, resolvi fazer algo que pudesse animá-la e que, de quebra, auxiliasse a comunidade.” O produtor costuma afirmar que a maior beneficiária da iniciativa é Rita de Cássia. “Ela venceu a depressão graças à biblioteca.”
Há oito anos, o bairro Curió – onde fica a Livro Livre – se tornou palco de uma das maiores chacinas do Ceará. Numa madrugada de novembro, policiais militares feriram sete pessoas e mataram onze na região e em três outros bairros periféricos de Fortaleza: Alagadiço Novo, São Miguel e Messejana. De acordo com a Controladoria-Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário, os PMs atiraram aleatoriamente para vingar a morte de um colega. A manicure assistiu pela janela de casa à movimentação no Curió durante aquela madrugada de terror. “Meu filho mais novo, Pedro William, poderia estar entre as vítimas. Ele é skatista e andava pela rua na hora dos tiros. Um de seus amigos, também skatista, acabou assassinado”, conta Rita de Cássia.
A manicure e seus familiares acreditam que a biblioteca vem ajudando a mudar a imagem do bairro, ainda muito identificado com a chacina. “Em 2019, um ano depois de abrirmos a Livro Livre, minha sala ficou pequena demais para os debates que realizávamos. Decidimos, então, alugar um imóvel próximo, com dinheiro do nosso bolso mesmo”, lembra Rita de Cássia. Nasceu, assim, a CasAvoa. O centro cultural, além de abrigar parte da biblioteca, promove rodas de conversa, clubes de leitura e sessões de cinema a céu aberto.
Fonte: https://piaui.folha.uol.com.br/biblioteca-anarquista-da-rita/
agência de notícias anarquistas-ana
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