Que este livro possa mobilizar em você esses e outros afetos, mas que também inspire a lutar pela construção de novas relações radicalmente igualitárias e igualmente libertárias.
Por Vitor Ahagon
Confesso que quando li, pela primeira vez, o trabalho do historiador, pesquisador – e, sobretudo, amigo – Thiago Lemos, fui tomado por muitos sentimentos. Antes de tudo, fiquei orgulhoso de ter próximo a mim um amigo e companheiro talentoso, pois me impressionou como Thiago conseguiu unir rigor metodológico, sensibilidade narrativa e reflexão crítica, virtudes tão raras em tempos de produções acadêmicas que visam apenas preencher e encher o Currículo Lattes. Mas também, logo em seguida, senti uma vontade tremenda de falar sobre essa obra e da sua importância, tanto no que tange à pesquisa, quanto à militância. Apesar dos desejos, essa não foi uma tarefa fácil, acreditem, só o começo desse texto foi escrito umas quatro ou cinco vezes. Acho que senti um receio que adveio, justamente, de saber o tamanho da importância do livro de Thiago.
Envolto nessa atmosfera, enfim, comecei a refletir a respeito do que iria escrever. Usualmente, as resenhas de livros são elaborados para ressaltar o valor da obra que estão apresentando, mas logo nas primeiras páginas, o leitor percebe que a escrita ágil e arguta de Thiago Lemos já realiza tal tarefa de forma brilhante, por isso, julguei que seria mais interessante pincelar um ou dois aspectos que mais me marcaram do livro.
Evidentemente, um dos traços que mais me impressionou, e que continua me impressionando muito, é o rigor metodológico do trabalho do pesquisador. Seguindo a tradição de outros pesquisadores anarquistas, como Elisée Reclus e Piotr Kropotkin, Thiago Lemos tem o mesmo cuidado em nos apresentar os principais debates historiográficos para a construção de biografias e trajetórias individuais. Assim, mobilizando todo um arcabouço teórico-metodológico, nos apresenta Neno Vasco em sua complexidade. Sem a pretensão de abarcar todos os aspectos de sua vida enquanto um indivíduo indivisível ou monolítico, o historiador, utilizando a metáfora do mosaico, nos expõe fragmentos da vida e a trajetória militante de Vasco em sua singularidade, ao mesmo tempo em que nos revela o vínculo intrínseco com os aspectos estruturais da sociedade capitalista da aurora do século XX.
Assim como Kropotkin, ao dissertar sobre a ciência de seu tempo, Thiago entende que o conhecimento histórico sofreu uma transformação que obrigou o historiador a se debruçar sobre seu objeto de estudo a partir de uma nova perspectiva, na qual cada um dos aspectos singulares dos “infinitamente pequenos”, em tensão e diálogo com a totalidade que está integrado, nos revela a potência e as fragilidades que cada um de nós construímos em nosso percurso enquanto seres singulares.
Para analisar essa relação tensa e complexa entre singularidade e totalidade, Thiago utilizou uma variedade enorme de fontes, como cartas, jornais e outros, porém acabou privilegiando as crônicas que Neno Vasco escrevia para a imprensa operária e anarquista daqui e de lá do Atlântico. Escolha certeira, pois foi através delas que conseguiu ressaltar como Vasco foi se construindo ao longo de sua militância, quais foram as ponderações que avaliou e como enfrentou os problemas que atingiam toda classe trabalhadora.
A crônica, sendo um gênero literário que registra os acontecimentos corriqueiros do cotidiano, ganhou, nos escritos de Vasco, a dimensão do fazer-se da militância anarquista nas suas mais variadas facetas, como a educativa, a anticlerical, a sindical e muitas outras. Podemos dizer que, na medida em que produzia a crônica do cotidiano militante, construía também um diagnóstico do que é crônico no próprio capitalismo, ou seja, o que se repete de forma ininterrupta e que faz adoecer tantas pessoas, levando muitas delas ao óbito, como até mesmo ele próprio, vitimado pela tuberculose em decorrência da pobreza que lhe sugava, de forma vampiresca, a saúde.
Foi a partir dessa perspectiva, que Lemos discorreu sobre o desenraizamento da classe trabalhadora na mundialização do capitalismo e o consequente recrudescimento do nacionalismo e da xenofobia; falou sobre as questões de gênero e o patriarcado, a exploração da força de trabalho e a luta de classes; a promiscuidade entre religião e política, a violência dos opressores e a reação dos oprimidos; os significados da Guerra e da Revolução… Todos esses foram os sintomas que Vasco analisou e que Thiago conseguiu, com um olhar sensível e escrita afiada, perceber como se repetem até os dias de hoje. As suas manifestações podem ser diferentes, mas estão sempre presentes, latentes, no corpo social até o dia em que Capital e Estado deixarem de existir. Thiago, quando traz os textos de Neno Vasco, faz ecoar a forma como o anarquista buscou lidar com esses sintomas, quais foram as suas propostas para tal ou mesmo acabar com esses sofrimentos e talvez essa seja uma das lições mais importantes deste livro.
Espero que com essas singelas palavras, eu tenha conseguido transmitir para os leitores a emoção que foi ler o trabalho desse incansável pesquisador, militante e valoroso amigo. Que este livro possa mobilizar em você esses e outros afetos, mas que também inspire, assim como fez comigo, a lutar pela construção de novas relações radicalmente igualitárias e igualmente libertárias.
Notas:
[1] KROPOTKIN, Piotr. Anarquia, sua filosofia, seu ideal. Editora Imaginário, São Paulo, 2000, p. 28.
Ilustração em destaque de Julio Pomar (1926-2018).
Fonte: https://passapalavra.info/2023/03/148066/
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Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!