Devotos da moralidade

Ao elaborar reflexões acerca da pena capital, Albert Camus sugere análises irruptivas acerca dos desdobramentos relativos à devoção das pessoas aos juízos morais. Foi corajoso ao afirmar que as recorrentes repetições de repressões e de violências, como a própria pena de morte, derivam das divinizações produzidas pelos seres humanos em nome de pretensões redentoras.

São pretensões que “justificam” o sacrifício, a matança, as estigmatizações.

Os pontilhados libertários sugeridos por Camus, no entanto, não devem estar circunscritos ao tema abordado naquela ocasião: a pena capital.

Suas inquietações residiam na recusa às subordinações de cada ser às vontades absolutas de quaisquer pessoas, instituições ou grupos, cujas justificativas baseiam-se, de modo recorrente, em dicotomias como “bom” ou “mau”, “certo” ou “errado”, “legal” ou “ilegal”, “moral” ou “imoral”.

Nos marcos da contemporaneidade, os anseios voltados à moralização dos demais são visíveis nas diferentes esferas da vida, como nas redes sociais, nas escolas, nas universidades, no trabalho.

Foi, em certa medida, o período no qual as pretensões moralizadoras provinham, apenas, das autoridades superiores, como os governantes, o soberano da sala de aula, os pais, os sacerdotes.

Hoje, tais aspirações amplificaram-se e provêm dos vínculos “equivalentes” ou horizontais entre amigos, namorados, “companheiros” de ativismo, seguidores de redes sociais etc.

A norma da vez é ser democrático e, portanto, inclusivo, pluralista. Cada um deve estar adequado ao vocabulário das elites secundárias que, subordinadas às elites principais, participam proativamente da governança contemporânea.

Os termos, as condutas e os conteúdos compartilhados devem estar em consonância com as recomendações “sagradas” – e, portanto, morais – dos manuais democráticos. Desobediências às normas e às leis instituídas por meio da formalização de novos direitos de minorias são passíveis de punição.

Punições estas que podem ocorrer nos marcos do direito ou nos tribunais “informais”, como as redes sociais, grupos de amigos, famílias convertidas à lógica democrática.

Ocorre que, independentemente da face “simpática”, o progressista de plantão mostra-se um cidadão-polícia “eficiente”.

Seu crachá está condicionado ao monitoramento do cumprimento, por parte de seus pares, das recomendações proferidas pelos manuais comportamentais das elites secundárias – lideranças e ativistas feministas, ambientalistas, LGBTQIA+, antirracistas e, inclusive, muitas e muitos que se autointitulam antifascistas. Todos são adeptos da moral progressista.

E repetem-se, de maneiras distintas, as repreensões às condutas classificadas como moralmente incorretas, inclusive aos mortos.

“cancelamentos”, revisões e “correções”

Segundo o léxico, cancelar significa tornar (algo) nulo, sem efeito, sem valor. Eliminar ou riscar o que está escrito com a finalidade de dissolver seu efeito.

O termo “cancelamento” vem do latim cancellare (cobrir com barras, grades), verbo derivado de cancelli, diminutivo de cancri (barras), que possui a mesma raiz de carcer (prisão).

Além da palavra cancelar, cancelli é a raiz de outras palavras como cadeia, aprisionar e prisioneiro.

Vemos, com base na própria etimologia da palavra, que os “cancelamentos” não estão dissociados da linguagem e da cultura punitiva.

Perspectivas libertárias não devem estar voltadas à procura das supostas “origens” do que se convencionou chamar de cancelamento. Enfatiza-se, no entanto, que a adoção acentuada do termo remete ao ano de 2017, momento no qual o movimento #MeToo amplificou-se.

Essa campanha irrompeu nas plataformas digitais e repercutiu nas mídias tradicionais de grande parte do chamado Ocidente. Mulheres de diferentes lugares, lideradas por figuras da cena artística e cinematográfica estadunidense, passaram a relatar e compartilhar em redes sociais casos em que sofreram violências sexuais, notadamente em seus ambientes de trabalho.

O principal desdobramento desse movimento foi a série de denúncias contra o produtor de Hollywood Harvey Weinstein, que resultou em seu “cancelamento”.

Desde então, ocorreram “cancelamentos” das mais variadas formas e matizes, de modo que essas práticas punitivas advindas das redes sociais se desdobraram e recrudesceram em outras.

Constata-se que, ao menos desde 2020, a editora HarperCollins, responsável pela edição dos livros de Agatha Christie, está promovendo revisões de trechos redigidos pela escritora britânica.

Agatha Christie não foi o único alvo.

Recentemente, na comemoração dos 50 anos da vida e obra de Pablo Picasso, o pintor voltou a ser alvo de ativistas feministas e suas posturas de “cancelamento”. Em 2021, Picasso já havia sido mencionado pelo movimento #MeToo na França, que não tardou em recriminá-lo devido às suas relações com as mulheres.

Ativistas feministas o descreveram como um “minotauro” e um “gênio violento” que teria destruído a vida de suas companheiras.

Vale lembrar que, no final de 1971, galerias e livrarias que expuseram obras e retratos de Picasso em homenagem ao seu 90º aniversário foram atacadas pela extrema direita espanhola.

Devido às suas aspirações políticas e à obra Guernica, invenção artística de combate ao fascismo e que retrata o horror inerente à guerra, Picasso foi rechaçado constantemente pela ditadura franquista.

Nas redes sociais, onde os rótulos genéricos são frequentemente adotados, o artista Paul Gauguin também é alvo de acusações.

Com base na noção de “lugar de fala”, que visa, entre outras coisas, legitimar discursos de “cancelamento”, ativistas acusam Gauguin de promover o colonialismo e de objetificar e sexualizar os corpos das mulheres do Taiti presentes em suas obras.

Parecem ignorar, propositalmente ou não, toda a existência potente de Gauguin em vida, suas relações com outros artistas como Camille Pissaro e Vincent Van Gogh e, principalmente, com Flora Tristan, escritora, militante franco-peruana e sua avó. Ela foi uma das precursoras do movimento sindicalista e das perspectivas de liberdade das mulheres, cuja incidência sobre a existência de Gauguin foi significativa.

O escritor dândi e libertário Oscar Wilde, recusando quaisquer repreensões às invenções artísticas, afirmava que a obra de arte deve provocar inquietações no espectador.

Em sua obra A alma do homem sob o socialismo, livro no qual explicitou sua perspectiva anarquista, Wilde não hesitou em afirmar que “sempre que uma sociedade, ou governo de qualquer espécie, tenta impor ao artista o que ele deve fazer, a Arte desaparece por completo”. Para ele, uma obra de arte é “o resultado singular de um temperamento singular”.

Os anseios moralizadores dos humanitaristas contemporâneos ultrapassam, arbitrariamente, as linhas do tempo da História. Revisam e “corrigem” obras e criações que reproduzem noções, gestos e comportamentos atrelados a um momento determinado a partir das diretrizes politicamente corretas do momento.

Compreender cada momento significa, entre outras coisas, debruçar-se sobre as produções literárias, artísticas, embates históricos entre as forças sociais. Caso contrário, inviabiliza-se análises relativas aos costumes, às relações, crenças e práticas que preponderavam em momentos históricos anteriores.

A prepotência dos ativistas, pelo visto, adquire contornos a-históricos.

São condutas cujo odor remete ao stalinismo, ao fascismo e ao nacional-socialismo, que não tardaram em revisar, menosprezar e, censurar e destruir produções que não correspondiam à moral preponderante, seja a proletária ou a da “raça pura”. Não há moralismo que não asfixie o diferente, os “moralmente incorretos”. Não há cultura sem a troca. A identidade é mais do que uma estultice.

Fonte: hypomnemata 267, Boletim eletrônico mensal do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP –  no. 267, maio de 2023 – www.nu-sol.org

agência de notícias anarquistas-ana

na rua deserta
brincadeira de roda
vento se sujando de terra

Alonso Alvarez