Ele havia chegado à Argentina escapando do fascismo. A conheceu quando ela tinha 16 anos. Ele foi fuzilado. Ela nunca o esqueceu. Agora Ariel Wainer fala desse amor em “América”.
Por Diego Rojas | 25/07/2023
Como contar uma história de amor trágico na Argentina de fins da década de vinte do século passado que ao mesmo tempo se converteu em um arquétipo do amor passional? Porque assim pode ser definido o romance entre Severino de Giovanni e América Scarfó. Uma história que condensa paixão, política, violência, anarquia e clandestinidade nas primeiras décadas do século XX em Buenos Aires.
É uma história que Osvaldo Bayer já contou em sua grande biografia do militante anarquista Di Giovanni – subtitulada “El idealista de la violencia” – e que também foi ficcionalizada nos anos 90 como novela por María Luisa Magagnoli em “Un café muy dulce”, editada por Alfaguara. Esta obra contava com a aprovação e prólogo de uma anciã Scarfó que não esquecia seu passado de amour fou, como demandavam os surrealistas.
Luis Puenzo havia tentado levar o romance ao cinema a partir da biografia escrita por Bayer mas o projeto teve a oposição tanto do escritor como de América, talvez porque em busca de um filme mais edulcorado se permitia distanciar-se demasiado dos fatos da realidade e suplantar, segundo censurava América em uma carta aberta publicada na Página 12, o conceito do anarquismo por “os tiros e o sexo”. Hoje América, um novo livro sobre Scarfó escrito por Ariel Wainer e publicado por Marea Editorial aporta alguns novos dados à história e se centra no que aconteceu antes e que aconteceu depois desse episódio apaixonado na vida de Scarfó. Wainer é neto de América Scarfó, que faleceu em 2006, aos 93 anos.
O romance foi assim. Severino Di Giovanni havia chegado à Argentina escapando da repressão dos camisas negras do Duce Benito Mussolini, que expressavam a ascensão do fascismo na Itália e sua ordem armada. Grupos paramilitares atacavam os movimentos de luta dos setores laboriosos e dos referidos obreiros e da esquerda, na qual se inclui o anarquismo, cuja influência continuava orbitando nas classes populares. Em 1925, Di Giovanni se radicou definitivamente em Buenos Aires junto a sua esposa Teresa e uma filha (teriam três filhos no total).
Esse mesmo ano, um ato no Teatro Colón em homenagem ao rei Víctor Manuel de Saboya foi interrompido por gritos e panfletos que caiam desde as plateias mais altas denunciando o fascismo. Entre o grupo de agitadores se encontrava Severino Di Giovanni, que essa noite foi preso e qualificado pela polícia como “temível agitador anarquista”. Era seu debut.
Obreiro gráfico, também imprimiria sua própria publicação, Cúlmine, com a qual interviria nos debates do movimento anarquista (o setor mais conservador, em La Protesta; o mais combativo, em La Antorcha). Na revista La Antorcha escrevia Paulino Scarfó, que vivia junto à família paterna em uma casa de Floresta. Sua irmã menor era América, de 16 anos.
Com o tempo, o matrimônio de Severino e Teresa se converteria em uma formalidade. De qualquer modo, ante a necessidade de mudar-se, o fizeram juntos à casa do fundo dos Scarfó.
Ante a constatação de que a antiga companheira de Di Giovanni já não era tal, a chispa do romance entre Severino, de 25 anos, e América se acendeu. E foi fogo.
Assim o demonstram as cartas que lhe enviava Severino, nas quais lhe escrevia assim: “Tenho febre em todo o corpo. O contato contigo me inundou de todas as doçuras. Jamais como nestes longuíssimos dias tenho bebido aos goles os elixires da vida“.
Entretanto havia estouros às vezes de caráter mundial, como os protestos ante as condenações a morte nos Estados Unidos dos anarquistas Sacco e Vanzetti. O grupo de Di Giovanni, ao qual já se havia integrado Paulino Scarfó, pôs umas bombas na frente da embaixada norteamericana.
Di Giovanni era o inimigo público número um: a ameaça anarquista. Quando o militar Félix Uriburu derrubou Hipólito Yrigoyen, um de seus objetivos principais foi apanha-lo.
Enquanto, o amor de Severino e América era vivido na clandestinidade.
Aos 16 anos, Scarfó havia escrito uma carta a Emile Armand, o diretor da revista L’en Dehors, a mais lida dentro do anarquismo individualista. Ali expunha seus planos a respeito de seu amor com Di Giovanni, claro que sem expor seus nomes verdadeiros:
“Meu caso, camarada, pertence à ordem amorosa. Sou uma jovem estudante que crê na vida nova. Creio que, graças a nossa livre ação, individual ou coletiva, poderemos chegar a um futuro de amor, de fraternidade e de igualdade. Desejo para todos o que desejo para mim: a liberdade de atuar, de amar, de pensar. Quer dizer, desejo a anarquia para toda a humanidade. Creio que para alcançá-la devemos fazer a revolução social. Mas também sou da opinião de que para chegar a essa revolução é necessário liberar-se de toda classe de preconceitos, convencionalismos, falsidades morais e códigos absurdos. E, em espera de que estoure a grande revolução, devemos cumprir essa obra em todas as ações de nossa existência. Para que essa revolução chegue, por outra parte, não há que contentar-se com esperar, mas que se faz necessária nossa ação cotidiana. Ali onde seja possível, devemos interpretar o ponto de vista anarquista e, consequentemente, humano.
No amor, por exemplo, não aguardaremos a revolução. E nos uniremos livremente, desprezando os preconceitos, as barreiras, as inumeráveis mentiras que nos opõem como obstáculos“.
O frenesi das atividades de financiamento (assaltos e roubos) e de propaganda armada de Di Giovanni crescia em ritmo e frequência. A polícia estava atras dele.
Finalmente foi detido. Logo Paulino, irmão de América. Ambos foram torturados. Julgados sumariamente, foram condenados ao paredão. Concederam à América ver seu amado. Assim descreveu como o encontrou. “Quando eu o vi Severino tinha as marcas claras da corda de estrangular; nos pulsos, sangue coagulado, as gengivas sangradas, o rosto com contusões. Com as pinças de madeira lhes haviam esmagado e tirado da língua e as haviam queimado com cigarros acesos. Durante o interrogatório lhes introduziram cigarros acesos nas cavidades nasais e nos ouvidos, lhes haviam retorcido os testículos, lhes fizeram incisões nas unhas, os golpearam. Tudo isto sob a direção do doutor Viñas, diretor da prisão“.
Puderam despedir-se. Brevemente.
Logo, Severino a um tempo e Paulino a outro foram fuzilados. “Viva a anarquia”, foram as últimas palavras dos dois homens.
Para América Scarfó começou o que seria sua segunda longa vida sem Severino. Uma vida que duraria muitas décadas, mas sem que o rastro daquela paixão fosse esquecido.
Infobae conversou com Ariel Wainer, neto de Scarfó e autor de América.
– Que aportes considera que faz seu livro à história de amor de sua avó e sobre sua avó mesma?
– Conto no livro a vida de América da qual se conhecem os dois anos de relação com Severino. Incluo a história prévia mais pormenorizada, inclusive a de seus pais e seus avós, e especialmente toda a história posterior aos fuzilamentos de Severino e de seu irmão Paulino. O livro de Bayer, que é uma grande obra e a fonte mais importante na qual todos bebem, não se escreveu mais além do momento dos fuzilamentos. Faz uma breve referência que se casou, teve filhos e fundou uma editora e aí terminou, digamos.
Como sou seu neto, tive a possibilidade de conhecê-la, mas mais que pelo conhecimento porque ela não falou comigo de sua história, mas pelas conversas com minha mãe, as conversas com uma amiga dela, materiais, gravações e outros documentos que me permitiram reconstruir sua história posterior aos fuzilamentos. Ela viveu 93 anos, ou seja, que são um montão de anos. Fundou a editorial America Lee junto a meu avô Domingo, antes havia sido secretária de Salvadora Onrubia, a companheira de Natalio Botana e por isso conheceu a redação do diário Crítica e pode relacionar-se com jornalistas e conhecer quem fora o defensor de Severino, que teve que se exilar no Paraguai por ter pedido que lhe comutasse a pena capital.
– América não contava sua história?
– Espontaneamente não falava de sua história anterior a conhecer meu avô. Não era uma história que circulasse na família. Tampouco minha mãe falava espontaneamente dessa parte da história. Houve muito silêncio, mas não somente no caso de minha avó, mas de seus irmãos. Faz pouco pelo livro tive contato com parentes que eu não conhecia e o irmão maior de América teve um exílio interno na cidade de Pergamino porque o despediram do trabalho por ter o sobrenome. Ele tinha proibido seus filhos, que se inteiraram bastante tardiamente desta história, falar dela porque lhe havia gerado um problema sério.
América (Fragmento)
Quem era Severino di Giovanni quando conheceu América?
Que percurso já tinha feito o trem de alta velocidade ao qual subiu minha avó quando se enamorou dele?
Di Giovanni nasceu em Villamagna, um pequeno povoado da província de Chieti, na região dos Abruzos, uma zona de montanhas à leste de Roma.
A vida com seus pais foi breve porque eles morreram jovens.
Na adolescência trabalhou como professor e aprendeu o ofício de tipógrafo. É provável que tenha tido seu primeiro contato com as ideias anarquistas através de seus companheiros do grêmio gráfico.
Sua prima, Teresa Masciulli, quatro anos maior, o visitava com regularidade. Em uma ocasião, uma tormenta lhe impediu de regressar a sua casa. O que ocorreu essa noite entre eles foi motivo de casamento.
Na Itália o ambiente foi se tumultuando. A crise econômica deixava muitos na miséria. Os que sonhavam com uma mudança, como Severino, a passavam mal. A Squadra d’Azione, o movimento paramilitar do fascismo, perseguia socialistas e anarquistas. A chegada de Mussolini ao poder terminou de empurrar Severino ao exílio.
Com Teresa viajaram ao Brasil e se instalaram em Santa Ana, no estado de São Paulo. Ali nasceu Laura, a primeira filha do matrimônio. Em pouco tempo regressaram à Itália e finalmente, em 1923, viajaram à Argentina, onde vivia um irmão de Teresa.
No começo, Severino se dedicou ao cultivo de flores que vendia no Mercado de Abastecimento. Um tempo depois, em uma pequena gráfica, conseguiu trabalho em seu ofício. Na realidade, o que mais lhe era urgente não era assegurar o sustento de sua família, mas poder retomar a luta contra o fascismo, ainda que fosse à distância.
Quem é Ariel Wainer
♦ Nasceu em 1966 em Buenos Aires.
♦ É doutor em Psicologia e psicanalista.
♦ É docente de graduação e pós-graduação em diferentes universidades (UBA, UCES, UAI).
♦ É um dos membros fundadores do Grupo Psicoanalítico David Maldavsky e de Giro Salud Mental.
♦ Publicou trabalhos em revistas especializadas e o livro Yo soy así. Teoría y clínica de las caracteropatías (2021).
♦ Sua mãe, Paulina Vanda Landolfi, foi a filha maior de América Scarfó.
Tradução > Sol de Abril
agência de notícias anarquistas-ana
os fantasmas de cogumelos
viraram tinta:
pés nus no frio
Rod Willmot
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!