Quando os anarquistas do globo se encontram na Suíça

O movimento anárquico internacional foi fundado no século 19 em um afastado vale suíço. No verão, milhares de anarquistas fizeram uma peregrinação à pequena cidade de St. Imier para comemorar seu aniversário. Já suas posições sobre a Ucrânia diferem muito.

Na esquina de uma casa no centro de St. Imier alguém pichou a frase “Sabotagem em toda parte” em francês, com um símbolo de anarquia embaixo. No mesmo lugar, outra pessoa sobrepôs a frase com um cartaz escrito à mão, em inglês: “Por favor, respeite os moradores e suas casas”.

Isso resume muito bem o escopo do congresso anarquista. cinco mil visitantes de todos os continentes viajaram para St. Imier para o aniversário “Anarchy 2023Link externo”. Muitos deles acamparam. Alguns vieram como espectadores, mas a maioria por uma convicção anarquista. Alguns se vestiram de forma colorida, mas a maioria de preto. A cozinha auto-organizada preparou dez mil refeições durante cinco dias, e até mesmo a lavagem da louça contou com o trabalho de voluntários.

O que os anarquistas querem?

Anarquistas rejeitam o poder da igreja, dos Estados e do capitalismo, e têm esperança em uma sociedade socialista sem relações de poder. Mas há muita coisa que está em aberto: quão pragmático se deve ser na sociedade? É a favor da democracia direta absoluta ou rejeita a democracia como um “sistema de dominação”?

O anarquismo tem muitos textos e representantes icônicos, mas, ao contrário do marxismo, por exemplo, não quer se orientar por uma única obra. Isso faz parte da história local de St. Imier. Em 1864, o movimento de trabalhadores da época se uniu em Londres para formar a primeira “Internacional”. Mas logo houve conflitos: principalmente por causa dos poderes crescentes que o Conselho Geral, dominado pela ideologia de Karl Marx, estava ganhando.

Em 1871, relojoeiros anarquistas do vale de St. Imier escreveram uma circular: “É absolutamente impossível que um homem que tenha poder sobre seus semelhantes continue sendo um homem moral (…)”. Esse homem de poder, ficou claro para as destinatárias e destinatários, era ninguém menos que Karl Marx.

Em seu congresso em 1872, a primeira Internacional expulsou vários anarquistas conhecidos, inclusive Mikhail Bakunin. Pouco tempo depois, em um contracongresso em St. Imier, uma Anarquia Internacional à parte foi fundada – com a participação de Bakunin, é claro.

Bakunin e Kropotkin no Jura

O movimento anarquista local continuou a se desenvolver e a causar impacto no mundo. Assim, Pyotr Kropotkin – que mais tarde alcançou proeminência como revolucionário e autor anarquista – escreveu em suas memórias: “Quando deixei as montanhas novamente, após uma boa semana de estadia com os relojoeiros, minhas visões socialistas estavam fundadas: eu era um anarquista.”

Depois de “uma boa (e longa) década de verão anarquista” seguiu-se a “primavera do movimento operário em 1871” em St-Imier, de acordo com o historiador Florian Eitel em sua dissertação “Relojoeiros anarquistas na Suíça”.

Em St.Imier, hoje uma pequena cidade com cinco mil habitantes, nem o prefeito nem as empresas têm nada contra os milhares de convidados anarquistas. Pelo contrário: a população local dá as boas vindas ao congresso de aniversário, realizado em 2023 ao invés de 2022 devido à pandemia.

A vendedora da padaria achou isso “ótimo”. Por que os muitos anarquistas compram pães? “Não só por isso. As pessoas são muito amigáveis e há pouca agitação”. Ela tinha uma visão diferenciada da dos visitantes: “Acho que algumas de suas ideias são boas, mas não se pode viver assim consequentemente. Às vezes você tem um chefe. Isso faz parte da vida.”

Fiel à ideologia, o programa da “Anarchy 2023” também dispensou autoridades: qualquer pessoa que quisesse poderia inserir sugestões para o programa do congresso em um formulário on-line.

O resultado foi um longo programa com uma ampla gama de atividades: canto anarquista, serigrafia, concertos e muitas, muitas discussões. Em contraste com o programa épico, o guia de mídia para jornalistas foi agradavelmente curto. Mas a maioria quer permanecer anônima e, durante muitos eventos, as fotos são proibidas.

Historiografia anarquista

“Boa tarde, camaradas”, cumprimentaram os dois responsáveis pelo workshop, entre pinturas de paisagens no salão comunitário lotado de St-Imier. Muitos sentaram no chão. Os responsáveis pertenciam ao coletivo mundial “Crimethinc”, e seu inglês parece americano. Não foi possível descobrir se eram historiadores formados. O que está claro era seu entusiasmo pela história.

As moções do congresso anarquista em St. Imier, em 1872, “ainda são muito relevantes hoje”, disse um deles. A historiografia anarquista é importante para os anarquistas, para que estes se entendam como parte de um movimento rico em tradição.

O primeiro homem trans a se submeter à mudança total de gênero era anarquista. Muitos desenvolvimentos na sociedade de consumo – de sistemas de aluguel de bicicletas ao Twitter – podem ser atribuídos às ideias anarquistas, das quais “o capitalismo se apropriou”.

Por outro lado, a historiografia anarquista também é importante porque as historiadoras e historiadores mostram “o mundo existente como o único possível”.

Bakunin na barricada

A contraproposta da Crimethinc parecia mais empoeirada do que muitas abordagens com as quais a história universitária trabalha atualmente: ela verifica uma anedota da vida de Mikhail Bakunin que diz que em 1849, Bakunin mandou colocar arte valiosa na barricada durante uma briga de rua em Dresden, presumindo que os soldados prussianos a poupariam.

Crimethinc listou as evidências de porque isso não aconteceu. A preocupação era provar que Bakunin não rejeitou nem instrumentalizou a arte. A relevância disso permaneceu duvidosa. O foco em Bakunin – um “grande homem” – por um coletivo que age anonimamente tem algo de impressionante.

Na pista de patinação, as camisas do time de hóquei local estavam penduradas acima dos estandes da feira de livros anarquistas. Em um canto do sofá, alguns liam livros. Ao lado deles, outros dobravam panfletos recém-impressos. Clássicos filosóficos e brochuras auto impressas – por exemplo, contra a psiquiatria ou como “Contribuições anarquistas para superar a democracia” – foram disponibilizados em russo, inglês ou alemão.

Muito do que foi oferecido no espaço era contraditório. Algumas coisas geraram conflitos entre os participantes do congresso, como, por exemplo, um livro com prefácio do filósofo francês Michel Onfray, que deixou de ser um ex-radical de esquerda para se tornar uma pessoa de extrema direita.

Anarquismo e a guerra na Ucrânia

Um anarquista da Bielorrússia coletava doações em solidariedade aos anarquistas na Ucrânia. Os adesivos diziam “Até que o Kremlin arda em chamas” – e o folheto ao lado enfatizou que os anarquistas que lutam ao lado da Ucrânia “estão resistindo a uma invasão imperialista”.

Em um painel de discussão no grande salão do centro comunitário, uma ucraniana descreveu o quão pouco a discussão teórica sobre a rejeição da nação e do Estado ajuda, quando se vive em um país que está sendo atacado.

Uma anarquista da Bielorrússia relatou como o movimento anarquista do país está orientado para os textos ocidentais – e como ela os traduziu – ao mesmo tempo que vivenciou como os anarquistas ocidentais deram sermões desagradáveis aos da Bielorrússia sobre o que significa viver e agir naquele país.

O outro lado de um programa aberto e sem restrições pôde ser visto em um workshop sobre antimilitarismo e a guerra na Ucrânia: um anarquista idoso da Alemanha falou a um público majoritariamente alemão sobre seu manuscrito, que ele gostaria de publicar como livro.

Ele afirmou se opor ao fornecimento de armas à Ucrânia. E acrescentou, entre outras coisas, que existe queima de livros na Ucrânia “em uma escala maior do que em 1933” através do regime nazista alemão. Ele também disse que o presidente ucraniano Selensky se enriquece com o fornecimento de armas pelo Ocidente. Afirmações como essas foram baseadas em informações falsas das mídias sociais e na propaganda russa.

Mas, por parte das cerca de 30 pessoas na plateia quase não houve dúvida. Nem mesmo quando ele afirmou que a guerra não começou com a invasão russa em fevereiro de 2022, mas com “manobras gigantescas da OTAN”, antes disso. De fora ele deixou a anexação russa da Crimeia e a guerra nas províncias do leste, que vem ocorrendo desde 2014.

Isso seria impensável em um programa moderado e com curadoria. Mas isso também exigiria mais autoridade do que a maioria dos anarquistas gostaria.

No final do dia, um novo pôster foi pendurado acima do grafite “Sabotagem em todos os lugares”. Esse cartaz pedia para que as pessoas não pichassem os muros devido às multas iminentes aos patrocinadores. Alguém rabiscou uma piada sobre multas com caneta hidrográfica embaixo.

Fonte: https://www.swissinfo.ch/eng/politics/-sabotage-everywhere—at-the-swiss-birthplace-of-global-anarchism/48716626

agência de notícias anarquistas-ana

sol e margaridas
conversa clara
na janela da sala

Alonso Alvarez