Ele convenceu a SS de que poderia organizar um grupo de trabalho com melhor desempenho, comendo melhor e trabalhando fora do campo de extermínio. Seu comando de prisioneiros quase não teve mortes em comparação com os outros. Ele é um herói desconhecido que reconstruiu sua vida como publicitário, roteirista, amante da música, livre-pensador e sempre antifascista. A surpreendente vida de César Orquin Serra.
Por Martín Appiolaza | 26/08/2023
Na Mendoza dos anos 60, César Orquín Serra era uma figura pública. Uma pessoa ligada à mídia, apaixonado por comunicação e cultura. Outro exilado espanhol do regime de Franco, ele sempre esteve em tensão com o autoritarismo. Ele podia ser encontrado na primeira fila em todos os concertos da Filarmônica, mas poucos conheciam sua história excepcional.
O prisioneiro César Orquín Serra conseguiu convencer os nazistas do campo de extermínio de Mauthausen de que era capaz de liderar um batalhão de trabalho externo mais eficiente em troca de melhor tratamento e alimentação. Enquanto milhares de pessoas morreram, quase todos os prisioneiros de seu grupo sobreviveram.
Sua história foi reconstruída e publicada por Guillem Llin Llopis e Carles Xavier Senso Vila em “César Orquín Serra: O anarquista que salvou 300 espanhóis em Mauthausen”. Trata-se de uma investigação exaustiva que fornece material documental e testemunhal inédito. Isso nos permite concluir que ele é o responsável direto por salvar a vida de mais de 300 republicanos espanhóis no campo de extermínio de Mauthausen, onde morreram de fome, doenças, assassinatos ou acidentes.
Hoje ele é reconhecido como um dos deportados mais importantes da Europa. Os testemunhos e a documentação coletados na Argentina, Alemanha, Áustria, França, Rússia e Espanha também nos permitem encerrar as controvérsias sobre seu papel de intermediário com os genocidas. Elas surgiram devido ao confronto entre anarquistas e comunistas após a queda do nazismo, mas foram rapidamente descartadas pelos testemunhos dos sobreviventes.
“Dois em cada três republicanos espanhóis pereceram no campo de concentração de Mauthausen. Mas no Kommando César, sob o comando de Orquín Serra, houve apenas de 12 a 14 mortos”, explicou o historiador Llopis, estimando que ele salvou mais de 300 pessoas com sua estratégia para obter melhores condições de vida.
O anarquista burguês
Orquín defendeu a República do levante militar apoiado por Hitler e Mussolini. A partir de 1937, ele fez parte da brigada Abraham Lincoln, composta principalmente por voluntários de língua inglesa. Ele era o único comissário político anarquista, o que provocou os primeiros confrontos com os comunistas que lideravam a brigada.
Após a derrota da República, ele fez parte do êxodo de meio milhão de exilados para a França em 1939. Cinco meses após o fim da Guerra Civil Espanhola, a Segunda Guerra Mundial começou como resultado do pacto entre Hitler e Stalin e da invasão da Polônia.
Serra passou algum tempo em quatro campos de deportados espanhóis, dormindo ao ar livre, o que lhe causou problemas pulmonares que acabaram por matá-lo aos 74 anos de idade. Ele se juntou aos grupos de trabalhadores estrangeiros para defender a França contra a invasão nazista. Foi capturado em junho de 1940 pelos alemães. Naquele ano, foi deportado junto com outros espanhóis para o campo de extermínio conhecido como Mauthausen.
Ele nunca parou de ler e estudar. Alguns o viam como diferente, arrogante. Quem estudaria no inferno? Ele tinha a cultura e os modos de um burguês. Seus companheiros eram todos camponeses e trabalhadores. Ele era membro de uma das mais importantes famílias aristocráticas valencianas do século passado. Seu pai não lhe deu o sobrenome, mas cuidou de seu bem-estar e de sua educação. César foi para a universidade, algo muito raro na Espanha de 90 anos atrás. Ele se movia em círculos elevados; seus meios-irmãos eram artistas muito famosos.
Devido à sua concepção progressista do mundo, que manteve pelo resto de sua vida, ele se juntou aos anarquistas na defesa da República.
Contra o autoritarismo
Seu status de libertário não foi bem aceito pelos comunistas, que travaram uma guerra separada contra os anarquistas dentro da República. Ele nunca concordou com o autoritarismo: nem com os fascistas, nem com os comunistas (na República, no campo de batalha ou no extermínio), nem com o peronismo quando se exilou na Argentina.
“Ele questionava tudo, tudo tinha que ser questionado e, quando havia um acordo, ele pedia para ser discutido a fim de encontrar uma solução melhor. Ele sempre buscava tirar o melhor proveito de cada ideia, de cada pessoa, de cada situação. Estava sempre estudando. Era extremamente inteligente, fluente em sete idiomas”, disse sua filha Mausi Orquín ao La Vanguardia.
Uma vez no campo de extermínio de Mauthausen, na Áustria, ele aproveitou seu treinamento cultural e de língua alemã. Tornou-se tradutor e convenceu os nazistas de que, com melhores condições de vida, os prisioneiros espanhóis poderiam produzir mais. Eles o tornaram um kapo, que era responsável por manter a disciplina nos campos de concentração e dirigir o trabalho forçado. Ele foi a ponte que possibilitou a salvação de vidas por meio da mediação com aqueles que ele havia combatido e que agora o estava torturando.
Vamos colocar as coisas no contexto. Dos 9.000 deportados republicanos que passaram pelos campos de concentração nazistas, 5.258 morreram, 90% no campo de concentração de Mauthausen, trabalhando sem parar e mal alimentados, especialmente no subcampo de Gusen. A maioria deles era jovem.
Nessas circunstâncias horríveis, César conseguiu convencer os oficiais da SS com estatísticas e gráficos de que, se tratassem melhor a ele e a seus companheiros, eles seriam mais eficientes. De acordo com seus biógrafos, ele demonstrou sua grande habilidade e inteligência nesse campo.
Um campo de extermínio não é um campo de flores
De tempos em tempos, eles eram transferidos para outros subcampos de extermínio ligados a Mauthausen, com diferentes níveis de sofrimento. No pior (Ternberg), o comando de César consistia em cerca de 360 a 400 prisioneiros. Nesse ponto, as disputas com os comunistas voltaram: eles haviam organizado uma resistência clandestina no internamento que contrariava a estratégia de Orkin de conseguir comida e melhor tratamento. Ele não cedeu. Por fim, acabou renunciando ao cargo de kapo.
Esses conflitos com os comunistas continuaram depois que a guerra terminou e os exércitos aliados os libertaram. Ele foi acusado de explorar e matar outros prisioneiros. Mas seus companheiros testemunharam em sua defesa. Orquín Serra e muitos dos prisioneiros de guerra sobreviventes responderam com fatos, testemunhando as acusações. Eles declararam que ele salvou suas vidas, que interveio para moderar a violência dos alemães. Que, sob seu comando, pouquíssimos prisioneiros haviam morrido.
Ele nunca foi acusado formalmente. Por outro lado, outros kapos foram condenados ou diretamente executados.
“O aparato comunista, apesar de seu grande valor, tentou afundá-lo, humilhá-lo. Para mim, foi por razões de concepção política e metodológica. Política porque sua ideologia estava acima de qualquer filiação ideológica ou partidária. Metodológica, porque ele sempre agiu da mesma forma: tinha de beneficiar os mais fracos para evitar que morressem. Não por causa de afinidades políticas, como frequentemente, ou quase sempre, acontecia com os comunistas”, explicou Guillem Llin Llopis ao La Vanguardia.
Exílio no exílio
Ele se casou com sua noiva na Áustria. Teve sua filha Mausi em 1947. Fundou a Organização dos Republicanos Espanhóis na Áustria. Trabalhou como professor de idiomas e também na embaixada argentina. Mas o assédio e a ameaça dos comunistas continuaram. Ele se exilou em nosso país.
Eles viajaram com passaportes diplomáticos com a família do cônsul argentino em Viena. Ele era José Ramón Virasoro, de Corrientes: um capitão aposentado e ajudante de campo de Perón que, sem experiência política, criou o Partido Peronista em sua província, tentou se candidatar a governador e foi recompensado com um consulado na Europa. Mais tarde, ele seria investigado por vender passaportes e fazer contrabando.
César, sua esposa e filha se estabeleceram primeiro em Buenos Aires, onde viveram com republicanos espanhóis exilados. Depois, em Mendoza, porque era mais seguro contra as ameaças dos comunistas espanhóis (especialmente de um secretário valenciano de origem cigana, de sobrenome Martínez). Eram tempos de Guerra Fria e o comunismo internacional havia se tornado um polo de poder político.
No horror do campo de extermínio, a comunicação e os livros lhe permitiram sobreviver. Foi sobre esses pilares que ele reconstruiu sua vida no exílio na Argentina. Ele era responsável pela imprensa na Biblioteca Pública General San Martín, em Mendoza.
Ele era visível e conhecido. Trabalhou em estações de rádio (Libertador, Nacional e Nihuil), como radialista, roteirista e dramaturgo sob o pseudônimo de Aldagón. Foi publicitário e, mais tarde, diretor artístico da Associação Filarmônica de Mendoza. Foi professor e fundou a Escuela de Propaganda y Publicidad.
Mas não renunciou à sua condição de espanhol e antifascista. Em 1955, participou da fundação da Agrupación Republicana Española de Mendoza, que assumiu o peronismo como uma ditadura e enfrentou os comunistas pró-soviéticos.
As voltas e reviravoltas da vida
Ele continuou na atividade social como um dos fundadores, em 1956, do Centro de Pesquisa e Prevenção da Paralisia Infantil (CIPPI), responsável pela vacinação diante do surto de poliomielite e da inação do governo.
Ele também foi membro da Câmara Júnior Internacional. Quando adulto, ingressou na Maçonaria: sua voz foi decisiva para impedir que Perón fosse admitido como maçom por causa de suas convicções autoritárias.
Durante esses anos, surgiram versões, coletadas por Llin e Senso, sem provas documentais, de que ele poderia ter colaborado com os caçadores de nazistas, especialmente com Simon Wiesenthal.
A pintora Mecha Anzorena trabalhou na agência de publicidade de César Aldagón (o pseudônimo tornou-se seu sobrenome com o passar dos anos): ela lembra que nos últimos tempos estabeleceu uma relação muito próxima com os irmãos Roitman.
“Para mim, ele foi um professor. Ele foi um comissário político na Guerra Civil Espanhola quando eu era um garoto de 13 anos e morava em Mendoza. Ele era um amigo. Ele tinha um ouvido absoluto e um conhecimento imenso de obras musicais. Todos os dias tomávamos café e ele me dava aulas de arte e política”, disse Moisés Roitman, de 97 anos, ao La Vanguardia.
A amizade com Moisés e seu irmão Abraham foi estreita na última década da vida de Orquín Serra. Paradoxalmente, os Roitman eram figuras importantes no comunismo de Mendoza: “Eu era secretário de Relações Internacionais do SARCU (Instituto de Relações Culturais Argentina – URSS) e, em 1956, visitei a União Soviética. Voltei muito crítico em relação ao comunismo e ao peronismo. Eu era amigo íntimo de Benito Marianetti, que conseguiu se refugiar em minha casa. Mas nunca fui membro. Meu irmão sim: ele é um dos fundadores da Credicoop”, lembrou Moisés.
Muitos anos depois, eles eram clientes e próximos de Orquín Serra, que tinha vindo para Mendoza em parte por causa da ameaça dos comunistas espanhóis. Moisés ficou surpreso: “Eu nunca soube disso, nem ele me contou. Mas quando fui visitar Mauthausen, fomos recebidos por um ex-prisioneiro espanhol que nos contou coisas maravilhosas sobre como César havia salvado centenas de pessoas.
César morreu em 14 de fevereiro de 1988. Até aquele dia, ele morava no bairro de Laprida, em Godoy Cruz. Ele nunca quis voltar para a Espanha. A Generalitat de Valência o homenageou em outubro de 2021 por ter salvado 300 vidas.
Tradução > Liberto
agência de notícias anarquistas-ana
Por falta de pilha
o relógio parou
na eternidade.
Júlio Parreira
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!