Por Samah Seger | 8 de maio de 2023
Os povos indígenas representam por volta de 5% da população mundial. Ainda são menos os que seguem vivendo segundo seus costumes tradicionais, que podem incluir a matança de animais para sobreviver. Apesar do estranho que é isto, os argumentos contra o veganismo geralmente evocam os povos indígenas para apoiá-los.
Quantas vezes ouvistes: “Dirias a um indígena que se tornasse vegano?”. De fato, o argumento de que o veganismo é incompatível com a cultura indígena carece de fundamento. Os defensores dos seres humanos, dos animais e nossos ecossistemas são aliados naturais na luta contra as estruturas coloniais opressivas.
Como indígena, compreendo a necessidade de proteger nossos costumes para evitar que sigam sendo apagados. Como também sou imigrante, sei que este sentimento existe entre as pessoas que vivem fora de sua terra natal e que utilizam os alimentos para manter a sensação de lar. Mas a produção moderna de carne e outros sistemas de agricultura animal têm suas raízes no pastoreio, que é fundamental na tradição judaico-cristã ocidental, com seus pastores e pastoras piedosos. Os colonizadores puderam estender a agricultura animal por todo o mundo com a ajuda do cristianismo, uma ferramenta utilizada contra os povos indígenas.
O estereótipo do caçador indígena
O argumento de que o veganismo é anti-indígena comete o erro de equiparar indigenismo com caça. As representações dos povos indígenas que se centram nos aspectos violentos, primitivos ou retorcidos de nossas culturas reforçam as narrativas coloniais dos povos indígenas como selvagens, quando na realidade fomos durante muito tempo pensadores magistrais, jardineiros, coletores, narradores de histórias, construtores, curandeiros, navegantes, astrônomos, artistas, marinheiros e muito mais. A imagem superficial dos povos indígenas como caçadores nos pinta como congelados no tempo, ignorando nossa realidade vivida. Hoje em dia, a maioria de nós nos abastecemos nos supermercados e comemos alimentos que se parecem muito pouco a nossa dieta tradicional. O fato de que comamos de forma diferente – a base de plantas ou não – não nos faz menos indígenas.
Os lácteos como ferramenta de colonização
Antes de que os europeus introduzissem a pecuária leiteira, a maior parte do mundo não consumia leite de outras espécies. Um grande número de não europeus nunca se adaptaram ao consumo de lactose na idade adulta e inclusive experimentam taxas desproporcionais de enfermidades relacionadas com o consumo de lácteos. Muitas culturas indígenas tampouco criavam gado para obter leite. No entanto, o leite animal foi utilizado durante muito tempo como ferramenta de colonização. No artigo Colonialismo animal: O caso do leite, a autora Mathilde Cohen escreve que, como se pensava erroneamente que o leite animal era uma forma de impulsionar o crescimento da população, os governos impulsionaram a criação de gado leiteiro para satisfazer o “desejo de uma maior mão de obra e um exército de indígenas [e negros]”.
Se demonizou a lactância materna prolongada – uma forma tradicional de anticoncepção – e se fomentou agressivamente o leite animal.
Apesar do conhecimento generalizado de seus efeitos nocivos para mães e bebês, o “colonialismo da lactância materna” continua hoje em dia, e as empresas de preparados para lactantes utilizam tácticas de marketing “generalizadas, enganosas e agressivas”. Segundo as Nações Unidas, estas táticas se utilizam com pais vulneráveis de todo o mundo, criando uma “barreira substancial à lactância materna”.
A prática continua na infância. Hoje em dia, em Aotearoa (Nova Zelândia), as diretrizes do governo nos dizem que consumamos 2,5 rações de lácteos ao dia, e os oferecem nas escolas sem nenhuma alternativa, apesar de que ao redor de que 64% dos indígenas maoris são intolerantes à lactose.
O olhar branco do veganismo
O registro mais antigo de não violência para com os animais data de uns 3000 anos na antiga Índia. A não violência, ou ahimsa, se converteu em um elemento central do hinduísmo, do budismo e, sobretudo, do jainismo, que pede a seus seguidores que não escravizem nem façam dano a outros animais. Estas filosofias inspiraram inumeráveis pessoas e prepararam o caminho para os movimentos de resistência não violenta.
Desde então, ativistas decoloniais e antirracistas, ecologistas, defensores dos portadores de deficiências, anticapitalistas, feministas, anarquistas, filósofos e outros debateram a opressão dos animais desde numerosos e importantes pontos de vista.
Por exemplo, o ativista pelos direitos civis Dick Gregory disse uma vez em uma entrevista que “o mesmo que nós fazemos aos animais, o sistema está fazendo a nós”, crendo que “ao final se chegará a um mundo vegetariano ou a nenhum mundo”.
Mais recentemente, durante uma palestra na Universidade da California, Berkeley, a ativista política Angela Davis chamou a humanidade a “desenvolver relações compassivas com outras criaturas com as quais compartilhamos este planeta”, situando o veganismo como “parte de uma perspectiva revolucionária”. Apesar dos muitos, poderosos e diversos ativistas que lutam contra algumas das indústrias mais exploradoras do mundo, o veganismo se reduz geralmente nos meios de comunicação e no mundo acadêmico a uma mera moda para brancos privilegiados. Na realidade, os negros estadunidenses são o grupo demográfico vegano de mais rápido crescimento nos EUA, e também há um notável crescimento do veganismo entre os maoris.
Estes estereótipos sobre as culturas indígenas ignoram e apagam as muitas nações que dependeram durante muito tempo de alimentos básicos baratos e abundantes como as lentilhas, o milho, as batatas, as ervilhas e os grãos de bico, assim como os muitos veganos pobres das nações ricas.
Valores indígenas
Em contraste com a visão antropocêntrica moderna do mundo, que vê os humanos como seres separados e superiores dos demais animais, a maioria das tradições indígenas reconhecem que os humanos fazem parte da natureza. Sabíamos que os animais eram nossos parentes muito antes de que o dissesse Charles Darwin.
Por exemplo, o Deus mandeo (Hayyi ou “o vivente”) é a força vital do mundo natural e de todos os seus habitantes, uma perspectiva que vê o caráter sagrado de todos os seres vivos. Nossos ensinamentos dizem que todas as matanças e derramamentos de sangue são pecaminosos – e ainda que (talvez paradoxalmente) nos dá permissão para comer ovelhas macho, aves de presa e peixes com escamas, “a atitude para com a matança é sempre apologética”. Alguns dizem que nós, ou ao menos nossos sacerdotes, costumávamos ser vegetarianos.
Ainda que algumas culturas indígenas se mostram contrárias ao veganismo, suas histórias nos dizem que se preocupavam profundamente por seus irmãos animais. Em sua palestra Indigenous Veganism: Os nativos feministas sim comem tofu, Margaret Robinson fala da visão Mi’kmaq de que toda a vida está relacionada, encapsulada pelo conceito de “M’sit No’maq”, que significa “todos meus parentes”. Devido a essa visão, explica, “a pesca comercial moderna, que geralmente se promove por oferecer segurança econômica às comunidades aborígenes, está ainda mais afastada de nossos valores mi’kmaq do que o estão as práticas veganas atuais”. Estas perspectivas oferecem vias para um veganismo compatível com os valores de nossos antepassados, e inclusive podem nos ajudar a viver de acordo com eles. Como disse Robinson, “o veganismo nos oferece um sentido de pertencimento a uma comunidade moral, cujos princípios e práticas refletem os valores de nossos antepassados, ainda que possam estar em desacordo com sua prática tradicional.”
O veganismo como ferramenta decolonial
Geralmente se acusa o veganismo de ser anti-indígena, mas na realidade é uma resposta aos sistemas anti-indígenas de hoje em dia. O veganismo oferece a oportunidade de perturbar a lógica colonial desafiando os pilares mais básicos do colonialismo, que reduzem todas as formas de vida a meros objetos para a exploração capitalista.
Nosso povo teve que adaptar-se para sobreviver, e agora devemos fazê-lo de novo.
Fonte: https://sentientmedia.org/veganism-is-not-anti-indigenous/
Tradução > Sol de Abril
agência de notícias anarquistas-ana
Quando me canso da paisagem
Do leste, viro a cadeira
Para oeste.
Paulo Franchetti
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!