Vallkarka, 02/03/2024
Há alguns anos a memória se tornou um trabalho para mim, mas o que hoje inauguramos não tem nada a ver com trabalho, nem com atribuições, é outra coisa, é o que foi dito na palestra de ontem: a memória é uma luta política, é uma trincheira que deve ser defendida. Não sei se é arte, agitação, artivismo, tudo ao mesmo tempo ou nada disso, não sei e não me importo, mas o que sei e quero deixar claro é que é uma atuação de militância, porque reapropriar-se das ruas, ressignificá-las e enchê-las de conteúdo é um ato político. É compreender, viver e lutar por um modelo de cidade antagônico ao “modelo e marca Barcelona”. Como tal, circunscrevo um canto de Barcelona que adoro, o vermelho e o preto, o autônomo, igualitário, anticapitalista e anarquista. Esta é a Barcelona que me atrevo a pensar que é onde Salvador gostaria de estar, aquela que ele gostaria de ver com aquele olhar límpido e honesto que tanto nos desafia. Ele coletou testemunhos de luta da Revolução Social e da Canadense, da Semana Trágica e de muitos outros acontecimentos que nos orgulham. Muitos o seguiram e continuamos a lutar como ele pediu. Todos nos sentimos herdeiros deste legado.
Nasci em 1975, numa chamada democracia recém-lançada, numa suposta liberdade difícil de ver: desde os 40 anos de escuridão da ditadura, da repressão do Estado, do poder e do capital foi refinada e camuflada, o colonialismo é agora uma economia globalizada, a escravatura tem a forma de uma hipoteca, o Não-fazer tem agora a cara de um YouTuber, e um longo etcétera que todos nós conhecemos e sofremos. Mas estamos num espaço de vizinhança que enfrenta o neoliberalismo predatório, de apoio mútuo onde ninguém quer comandar ou obedecer e onde o instinto irreprimível de liberdade toma oxigênio. Com atos como esses, o fio preto de que também se falou ontem vira um cabo de aço, uma semente que brota e rebrota no novo mundo que carregamos no coração.
Ontem eu estava comentando com a Marçona: quando pinto imagens de outras épocas passo horas e horas repassando cada parte da foto e acabo criando um vínculo com as pessoas que pinto, um sentimento que para mim é muito difícil de explicar. Neste caso, porém, foi o contrário: o meu vínculo com Puig Antich me acompanhou durante toda a minha vida e foi o que me levou a fazer o mural. O MIL e Puig Antich é o primeiro livro político que comprei em “El lokal” de la Cera quando era adolescente (aproveito daqui para mandar um abraço a Iñaki, para mim e para muitos ele e El Lokal foram um farol no escuro).
Para mim e para muitos Salvador tem sido um símbolo. No Ateneo la Base, com a morte de Pablo Molano em 2016, foi gritado um slogan de despedida que me impressionou: não enterramos Pablo, nós o plantamos. Tal como as sementes que enchem as sarjetas do Estado e que florescem na memória coletiva, o mesmo acontece com Salvador Puig Antich, ele fecundou e impulsionou as lutas que o seguiram, e o seu assassinato despertou muitas consciências.
Adotei uma frase que diz que a arte é uma missão e não uma competição, embora na realidade eu compita um pouco: eu compito comigo mesmo e desta vez permita-me confessar a você e tenho orgulho de dizer que ganhei, e tenho certeza de que é porque pintei com a força de todos, com a força de gerações e gerações de resistentes.
Agradeço o trabalho da Comissão Salvador Puig Antich, ao bairro de Vallkarka escrito com K. Sou eu quem estou aqui sentado falando, mas sou apenas o mensageiro, sou outro trabalhador com consciência: não tenho, nem quero, nem mereço maior destaque do que qualquer um dos que estão aqui hoje, aqueles de vocês que passaram horas e horas de assembleia organizando todos os acontecimentos, aos que abrem as casas vazias da especulação, aos que estão às portas dos despejos , para quem luta desde os sindicatos, a lista é longa, muito longa, são vocês, somos todos nós, que construímos comunidades fortes. Quero dedicar este trabalho à família Puig Antich, à família de sangue e à política no sentido metafórico mais amplo. Família Puig Antich, Salvador também é nosso irmão. Quero também dedicar este mural a todos os combatentes e resistentes anónimos que, como Salvador, entregaram os seus corpos pela causa mais nobre: não se corromperam ao poder, não se denegriram a ele.
Só perde a luta quem desiste e aqui, companheiros, ninguém desiste!
Saúde e anarquia!
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Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!