“Nas ruas alucinadas da mítica Areguá Casacciana, personagens como Octavio Villalba ou Rigoberto Molina, que se recusam a afundar na sonolência de uma siesta, preferem sonhar de olhos abertos, são primos-irmãos dos anarquistas que tomaram a cidade da Encarnación”. Sobre o dia em que Encarnación se tornou a primeira comuna libertária da América, escreve Montserrat Álvarez.
Por Montserrat Álvarez| 18/03/2024
Em 20 de fevereiro de 1931, um grupo de trabalhadores e estudantes tomou a cidade de Encarnación, no departamento de Itapúa, e a proclamou uma comuna libertária. Isto fazia parte de um plano maior para iniciar uma revolução no Paraguai. Obviamente de inspiração anarquista, concebida no calor das brasas do sonho truncado da Comuna de Paris e sob a influência das ideias de Rafael Barrett – além do peso, no movimento da Nova Ideologia Nacional, de membros que não hesitaram declararem-se anarquistas., especialmente trabalhadores e estudantes vindos de uma militância anterior no Centro Obrero Regional Paraguaio (CORP) anarco-sindicalista – essa quixotada fez de Encarnación, durante dezesseis horas, a primeira comuna libertária da América.
Revolucionários de Missiones cruzaram o Paraná naquela manhã para se juntarem à empreitada. Foi notável a participação de anarquistas como Cantalicio Aracuyú, Ciriaco Duarte, León Naboulet, Marcos Kanner, V. Canavesse, J. P. Cuéllar, Ramón Durán e Juan Verdi, para citar alguns. É um anacronismo enganoso sustentar que a Tomada de Encarnación foi realizada “com a liderança do conhecido líder comunista Obdulio Barthe” (1), que era anarquista na época e que participou dessa façanha – um homem tipicamente anarquista feito – movido pelos seus ideais anarquistas da época, como o demonstra o fato de ter sido precisamente em consequência do fracasso do plano – o próprio Barthe o reconhece nas suas memórias (2) – que renunciou a esses ideais e acabou ingressando nas fileiras do partido comunista paraguaio.
A maior parte da classe média rica que se considera “de esquerda” no Paraguai está, por tradição, ligada a esse partido. Portanto, a participação de Barthe costuma ser destacada na Tomada de Encarnación e, numa deliberada distorção retrospectiva para manipular o passado, colocando-o a serviço de interesses partidários, ele é apresentado como um “líder comunista”. Por esta razão, também se omite sistematicamente a menção ao fato histórico de que Barthe participou da Tomada de Encarnación antes de se tornar “comunista” (“comunista” no sentido “oficial” no Paraguai), ou, em suas próprias palavras, antes de renunciando ao seu “palco de sonhos utópicos e aventuras de tipo anarquista” (3) – com o qual admite o quão anarquista foi esta aventura – para finalmente ser nomeado secretário-geral do PC.
Esquece-se também que Encarnación é conhecida como “a primeira comuna libertária da América”, libertária no sentido de anarquista. Por isso, também é esquecido quando se menciona livros como 1931. A Tomada de Encarnación (Assunção, Rafael Peroni, 1985), do historiador anarquista argentino Fernando Quesada, qualquer passagem que chame esse feito libertário pelo seu verdadeiro nome. Por isso, esquece-se mesmo, ao mencionar o prólogo daquele livro, de salientar que o escritor do prólogo, Ciriaco Duarte, que era anarquista, escreveu nele: “esclarecer para a história que [a Tomada da Encarnação] foi não um “ataque infantil e louco à cidade”, segundo a interpretação de Gaona, ou “um assalto à cidade por um grupo de conhecidos comunistas”, segundo a imprensa oficial, é o essencial nesta lista de fatos. Por isso, esquece-se finalmente que a figura que Ninfa Duarte, filha do anarquista Ciriaco, destaca na Tomada de Encarnación é a figura de outro anarquista, Cantalicio Aracuyú:
“No início de 1931 começou a longa greve organizada pelos pedreiros de Assunção. Este movimento ativo originou-se sob a liderança do histórico sindicalista Cantalicio Aracuyú, juntamente com outros proeminentes intelectuais da época, como Obdulio Barthe e Óscar Creydt, e, como fato relevante em sua trajetória, inclui o que aconteceu nos anais da história como a Tomada de Encarnación” (Ninfa Duarte, “Ciriaco Duarte, lutador pelo sindicalismo livre no Paraguai”, Gibralfaro, no. 71, março-abril de 2011) -.
Esses esquecimentos não são novos. Casimiro, aquele personagem de Casaccia, já dito em Os Herdeiros (Barcelona, Planeta, 1975), romance que – como Carlos Rama e Ángel Cappelletti, entre outros, observaram em El anarquismo en América Latina (Caracas, Biblioteca Ayacucho, 1990) – recria com precisão a Tomada de Encarnación:
“–Todos os paraguaios são políticos – respondeu Casimiro –. Não há mais nada para fazer aqui. Aqui você falha ou tem sucesso político. Não há outro sucesso… Alguns também se divertem com a história nacional. Mas há poucos verdadeiros historiadores, a maioria são amadores que escrevem uma história pro domo sua…”.
Felizmente, nem todos nós somos tão esquecidos. Um ano depois da “aventura anarquista” – para dizer no modo de Barthe – da Tomada de Encarnación, um dos revolucionários que dela participou, o anarquista León Naboulet, publicou seu depoimento na cidade argentina de Posadas, intitulado: O primeiro indício de tendência anarquista no Paraguai. A Tomada de Encarnación (4), panfleto de 24 páginas que, entre outras coisas, coincide com o já referido prólogo de Ciriaco Duarte ao livro de Fernando Quesada ao expressar o absurdo de atribuir a Tomada de Encarnación aos “comunistas”, como então o fez (e como continua a fazer, como vemos, até hoje) a imprensa paraguaia:
“A imprensa paraguaia qualificou este movimento como comunista. […] A imprensa argentina também fez isso. Porque? Por ignorância, por má-fé, por servilismo. […] O “comunismo” dos bolcheviques vai para a centralização de todas as forças sociais no Estado; o anarquismo vai para a descentralização e a dissolução do Estado. O bolchevismo leva à ditadura; anarquismo, para a liberdade” (pp. 14-15).
Naboulet reivindica, aliás, o espírito libertário que, dissemos antes, animou a Nova Ideologia Nacional e que levou à Tomada de Encarnación:
“A juventude paraguaia que preparou esta revolução e que mais cedo ou mais tarde a levará a bom termo e que escreveu a “Nova Ideologia Nacional” é de tendência anarquista e não “comunista”. Estava ligada à Central Regional de Trabalhadores, que tem a mesma tendência e é a maior força proletária daquela república” (p. 16).
Foram anos turbulentos no Paraguai, anos de guerras e revoluções. Neste canto sul do continente, estes foram os anos de Severino Di Giovanni, de Simón Radowitzki, anarquistas expropriadores, anarquistas de ação direta e ação direta violenta. Porque nem toda ação direta é violenta, e de fato a Tomada de Encarnación ocorreu sem violência – o único ferido no dia 20 de fevereiro foi Aracayú, no tiroteio festivo que comemorou a criação da comuna (5) –. Anos incendiários em que um grito de sangue fervente levou um pacifista como Kurt Wilckens a assassinar o coronel Varela para vingar as suas vítimas. Nas ruas alucinadas da mítica Areguá Casacciana, personagens como Octavio Villalba, como Rigoberto Molina, que se recusam a afundar na sonolência de uma siesta, que preferem sonhar de olhos abertos, que se rebelam contra o peso do destino e conspiram para tomar a cidade e iniciar uma revolução, eles são primos-irmãos desses anarquistas históricos. Dos que tomaram de assalto a pequena cidade de Encarnación e a sonharam, durante dezesseis horas, como o território livre do futuro.
Notas
(1) Um colunista deste jornal incorreu neste anacronismo há poucos dias: “A tomada de Encarnación”, de A. González Delvalle, ABC Color, 11/02/2024.
(2) Obdulio Barthe, Memórias Inéditas, Capiatá, TEA, 2009.
(3) Idem.
(4) León Naboulet, A primeira ameaça da tendência anarquista no Paraguai. A tomada de Encarnación, Posadas, Jean Valjean, 1932.
(5) M. Rivarola: Trabalhadores, utopias e revoluções, Assunção, CDE, 1993.
Tradução > Liberto
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