Jaime Guevara, conhecido como El Chamo Guevara, gravou mais de 500 canções e quer continuar gravando
Por Alfredo Cárdenas | 12/04/2024
Seus olhos castanhos e profundos — protegidos por suas sobrancelhas espessas — brilham e tremem quando fala de música, de poetas, de escritores e de suas incontáveis lutas que muitas vezes o levaram a um canto sujo e frio de uma prisão. As marcas em seu rosto revelam seus 69 anos. Com sua voz grave, às vezes áspera — recorrendo às células íntimas de sua memória e com generosa amabilidade — conta sua história.
– Como prefere ser chamado: cantautor, músico, lutador social, anarquista?
Não gosto de rótulos, prefiro que me digam: olá Chamo, como você está?
É Jaime Guevara, conhecido como El Chamo Guevara, um homem que afirma que o anarquismo é o único caminho para a liberdade e que — com sua música — defendeu as causas dos desaparecidos — como os irmãos Restrepo — dos trabalhadores, dos jovens, dos indígenas, dos LGBTI…
Junto com outros artistas, criaram a Coordenadora de Artistas Populares (CAP), que com seu lema: “Se os ricos têm artistas para suas festas, os pobres têm artistas para suas lutas”, realizavam peñas ou festivais para ajudar a restabelecer a saúde de amigos e apoiavam na libertação de presos da organização Alfaro Vive ¡Carajo! (AVC).
– Desde quando te chamam de El Chamo Guevara?
Desde o início da década de 70. Tínhamos um grupo de hippies. Uma tarde cheguei onde estava o grupo e um deles disse: — olha, aí vem o chamo — todos concordaram com uma gargalhada —. Desde então fiquei batizado como El Chamo Guevara. Nasci em 21 de dezembro de 1954.
– Como foi sua infância?
Muito bela. Minha infância foi no parque de San Marcos. Na fonte, costumávamos brincar com barquinhos de papel. Os fazíamos com coberta ou sem coberta. Em frente ao parque estava a igreja onde a maioria dos meus irmãos foi batizada. Éramos sete, agora somos seis, um morreu. Lembro de San Marcos com particular prazer. A rua Junín, as varandas floridas como na canção: Balcón quiteño, balcón florido…
No parque não havia balanços, nem gangorra, nem escorregador. Com frequência, cruzávamos o barranco onde hoje é La Marín, ignorando os terríveis odores, vendo de passagem as famílias de catadores de lixo que abundavam, íamos para o bairro Obrero brincar.
– Como era na escola, rebelde?
Meu primeiro professor foi o licenciado Avellaneda, sempre o lembro. Ele me ensinou a ler.
Havia dois paralelos: o Bolívar e o Sucre. Eu era do Sucre. Os professores avaliavam a boa conduta, o paralelo vencedor tinha direito ao passeio de fim de ano.
– O Sucre ganhou?
Não. O Bolívar ganhou. Com alguns amigos formamos o Clube Secreto, queríamos imitar o FBI.
À luz de uma pequena lâmpada e nessa onda clandestina, nos reuníamos para planejar ações. Com luvas do uniforme de parada para que não copiassem nossas impressões digitais — com letra ruim e má ortografia — naquela sexta-feira escrevemos uma carta de protesto ao reitor. Na segunda-feira, na formação, o reitor diz: venham as crianças: Pozo Guevara… nos chamou a todos do Clube Secreto. Aí foi meu primeiro interrogatório, diz rindo.
– Mas como o reitor descobriu?
Esse foi o mistério, mas descobrimos o dedo-duro e o executamos — diz com uma gargalhada.
– Como se chamava o dedo-duro?
Germán Rodas, o da Secretaria Nacional Anticorrupção atual — diz entre risos.
O potente sol do final de março inunda as ruas de Quito, as edificações de La Mariscal não conseguem amenizar o calor com sua pequena sombra das 14:00. O ambiente é sufocante e a brisa se foi. De repente, El Chamo Guevara desce de um táxi com uma mochila e sua infalível guitarra. Quando chega ao elevador do edifício, descobre que está em manutenção.
– Chegou como mandado por Deus, diz.
Quer que eu te ajude?
A mala, por favor.
Começa a subir. Para no terceiro andar para se recompor.
– Quer que eu ajude com a guitarra também?
Não, não. Minha mulher posso emprestar, mas minha guitarra não — diz rindo.
Finalmente chega ao oitavo andar, ofegante. Assim que entra, pega uma pílula e um copo com água. “Sou escravo desta farmácia”, diz apontando para um espaço com vários frascos de medicamentos.
Seu pequeno apartamento tem uma parede cheia de livros e outra repleta de pôsteres de shows: Rock do furacão, Pelos irmãos Restrepo, Rock debaixo d’água, Blues ao grão, Canto solar… Junto à janela, há um sofá grande, sua poltrona está plantada debaixo dos pôsteres. A guitarra que foi para a prisão está ao lado dele. Outras duas descansam entre os livros e a janela. Há um gravador, CDs e fitas cassete…
– Como foi sua aproximação com a música?
Desde criança eu ficava grudado no rádio do meu pai, um aparelho grande de mogno. Meu tio dizia: ali está o prédio de Obras Públicas, aqui está o Palácio do Governo… têm as luzes acesas porque para eles é noite. Via uma cidade dentro do aparelho, com essa imaginação que a infância te dá.
Depois ouvi uma canção que me impactou. Soou a voz de um cantautor basco, Patxi Andión, cantando Rogelio. Fala da relação humana entre dois amigos. Um tinha se saído muito bem na vida e o outro nem tanto. “Rogelio era uma boa pessoa e um bom amigo e poderia ter continuado sendo, mas a amizade é coisa dos homens e os homens mudamos” Patxi Andión.
Quando cresci, ouvi os Beatles. Minha família é muito querida, está na minha alma, mas era muito conservadora, não tinha discos dos Beatles em casa. Nas poucas vezes que conseguia sintonizar no rádio, tomava frases literais como: “Is bin a jar deir nais” — diz rindo —. Não era inglês nem nada, mas me iludia. Trata-se da canção “A Hard Day´s Night”.
Depois ouvi Led Zeppelin, Black Sabbath, muito depois chegou Pink Floyd. Os discos trazíamos importados da Colômbia. No nosso grupo, fazíamos uma vaquinha para ir comprar um disco em Ipiales, Colômbia, pegando carona. Nosso primeiro disco foi dos The Doors, nos reuníamos para ouvir em uma espécie de ritual, todos em silêncio, com respeito absoluto pelo rock.
– Você me disse que sonhava com uma guitarra, como conseguiu uma?
Meu maior sonho era a guitarra, mas minha mãe dizia que todos os músicos se tornam bêbados, meu pai, que se tornam um bando de vagabundos.
Meu pai era advogado. Naquele tempo se dizia que a família ideal devia ter um militar, um sacerdote, um médico, um engenheiro.
– Então, como conseguiu?
Certo dia, minha cunhada apareceu com uma pequena guitarra argentina com cordas de metal.
— Jaime — disse ela —, isto é seu, em casa ninguém a usa.
Peguei e comecei a praticar. Naquele tempo vendiam — nas esquinas — livrinhos de guitarra fácil e cancioneiros.
Minha guitarra estava sempre salpicada de sangue porque eu tocava com minhas unhas nas cordas de metal. Meus dedos sangravam. Não sabia que existiam vitelas nem palhetas.
Aos 13 anos entrei no colégio Montúfar e no recreio ouvi: “Vengo desde el barrio chico desde mi cuadra de calles alargadas” de Piero. Passado o tempo, cheguei a conhecê-lo e cantei com ele várias vezes.
Em 1974, aos 20 anos, apresentei meu Recital Sons do Vento na Casa da Cultura Equatoriana. Foi muito difícil conseguir a sala Benjamín Carrión por minha aparência de hippie.
Tenho uma anedota que enche meu coração de ternura. Meu pai se opôs com tanta veemência a que eu fosse cantor, no entanto, quando um dos meus irmãos conseguiu uma guitarra de muito boa qualidade e ainda não a havia terminado de pagar, o fabricante disse que se não pagassem naquele dia iria buscá-la. Com o coração apertado, deixei a guitarra e fui para o colégio. Quando voltei, a guitarra ainda estava lá. Perguntei — Por que ele não levou a guitarra? — Seu pai pagou — disse minha mãe. Tenho uma canção chamada “O pai do músico” que fala sobre isso, diz enquanto seus olhos brilham.
A guitarra que minha cunhada me deu terminou quebrada sob uma tijolada quando tentamos fazer o primeiro festival de rock na Universidade Central em 1974 mesmo. Daí surgiu a canção “Senhor proibicionista”.
Eu tinha um certo conflito entre ser pintor e ser músico. Eu era ouvinte na Faculdade de Artes da Universidade Central. Naquela época, graças à ioga, eu abominava o álcool e, na inauguração, não dei nenhuma bebida alcoólica, nem mesmo o típico vinho de honra, nada. Dei água de velha, diz ele com um sorriso.
– Quantas músicas Chamo Guevara já gravou?
Mais de 500, de todos os tipos, cores e sabores.
– Como era sua casa naquela época?
Era uma época influenciada pela religião. Na minha casa, três das minhas tias eram freiras franciscanas e, do lado do meu pai, havia um tio que era padre dominicano. Nós os amávamos muito, mas você não podia questionar a religião. Antes de comer, eles nos obrigavam a rezar.
Comunismo era uma palavra ruim. Quando alguém falava em comunismo, era para denegri-lo.
A palavra sexo era impronunciável em casa.
– Com que idade você teve sua primeira namorada?
Quando eu tinha 15 anos, ela se chamava Silvana.
– Cantava para ela?
Claro que sim. Eu fiz uma serenata para ele na cozinha da minha casa.
– Você concorda em ser um anarquista?
Claro que sim. Anarquismo é luta. É o ideal de uma sociedade livre, solidária, sem a necessidade de estado ou governo. Nós nos opomos à autoridade, porque a autoridade gera corrupção.
– Você acha que o socialismo funcionou, especialmente o chamado socialismo do século XXI?
Acho que a humanidade tem buscado a forma mais harmoniosa de viver. Em certos momentos, ela entrou em contradição absoluta com o socialismo e passou para o lado do fascismo.
No caso dos representantes do socialismo do século XXI, eles fizeram isso com ilusão, mas chegaram ao poder e começaram a circular os milhões e disseram: isso é bom, vou ficar aqui por mais um mandato, melhor dois, depois três. O poder corrompe e o poder total corrompe totalmente.
El Chamo Guevara confronta o poder:
Tive um forte confronto com (Rafael) Correa. Eu tinha acabado de sair de uma padaria para comprar leite e pão. Vi a comitiva real, diz ele com ironia. Então, lancei um yucazo. Os carros e as motocicletas pararam bruscamente na rua Yaguachi. Três policiais com fuzis desceram e apontaram suas armas para mim. -Fique quieto”, disseram eles, enquanto Correa descia. -Se vocês têm algo contra mim, venham aqui”, gritou Sua Majestade, enquanto fazia uma pose de lutador de rua. -Deixe-me atender o senhor”, disse eu aos policiais. -Se você se mexer, vamos arrebentar suas bolas”, eles me ameaçaram. -Eu fiquei quieto porque ainda queria tê-las inteiras. -Esse bêbado vai para a cadeia”, gritou Sua Majestade. -Você acha que eu tenho medo de você”, também gritei. -Eu mesmo entrarei na carruagem”, disse eu, andei alguns passos e quis entrar na caravana presidencial. Não, deixe-o ir em um carro de patrulha”, disse alguém de dentro. Eles me deixaram com dois policiais, o carro-patrulha nunca chegou. Eles falavam em código, repetindo SPR, SPR, depois descobri que se tratava do Sr. Presidente da República.
El Chamo Guevara na prisão.
“Eu poderia ter completado as dez vezes na prisão, mas não o fiz. Cheguei perto. Meu violão tinha cerca de cinco”, diz ele com uma risada. Mencionamos algumas.
A primeira vez foi quando eu tinha quinze anos, por causa da minha aparência, entre outras coisas, o cabelo comprido. As pessoas me olhavam de forma errada. Alguém chamou a polícia. Essa foi minha primeira prisão.
A segunda foi durante as greves nacionais na época do triunvirato militar.
Em outra ocasião, em um protesto durante o governo de (Oswaldo) Hurtado, eles me prenderam e me colocaram em um tripé (pernas abertas, mãos cruzadas atrás das costas e a cabeça no chão, como se formasse uma terceira perna), e aí, sim, pauladas. Fui espancado, esbofeteado, batido, cuspido, insultado, até que um deles me acertou no crânio. Vi luzes até me dar conta de que estava sendo carregado por um policial até a cela. Eu havia desmaiado. Eu tinha cerca de 28 anos de idade. A partir de então, fui diagnosticado com um angioma cavernoso na cabeça, o que me causou epilepsia.
No CDP, eles nos faziam fazer fila todas as manhãs, e na nossa frente havia um guia que perguntava: qual é o seu nome, por que você está aqui? Eles respondiam: por roubo, por morte, por manifestações. Na parte de trás havia outro guia sussurrando: aqui estão as ayoras (sucres, dinheiro) se você quiser ser uma bicha na cela. Naquela época, a homossexualidade era proibida e considerada um crime. Os gays eram levados para um determinado segmento do CDP, retirados à força e trancados para serem estuprados pelos outros prisioneiros.
Eu gostava muito de ir para a prisão com outros artistas. Em junho, nos velhos tempos, antes da década, eu gravava, ganhava – diz ele, desenhando aspas no ar -, havia a semana do prisioneiro, eles traziam artistas, havia danças entre os prisioneiros e lembro que me pediram para cantar Los fluviomarinos, uma música que compus com base no relatório científico da polícia sobre o desaparecimento e a morte dos irmãos Restrepo, que dizia: os meninos foram jogados no rio Machángara no carro Trooper da família e lá foram devorados pela fauna fluviomarinha.
– O que você acha da liberdade?
Sem liberdade não há vida. É praticamente a morte.
– E quanto à democracia?
É uma conquista, um certo passo que a humanidade deu após o período feudal, mas, como sempre, aqueles que estavam no poder rejeitaram totalmente a democracia.
– Durante qual presidência foi mais difícil participar de protestos?
Sem dúvida, durante a presidência de León Febres Cordero. Correa era apenas mais um homem repressor.
A saúde de El Chamo Guevara:
Eu tinha um carma ruim na minha saúde. Epilepsia, herdada na prisão, devido a uma pancada na cabeça. Há dez anos, eu estava a caminho de El Dorado em um ônibus – eu não sabia que estava competindo com outro ônibus – que deu um salto feio e vários passageiros – embora estivéssemos sentados – pularam dos assentos. Caí de costas e quebrei a coluna e o joelho. Eu me recuperei da coluna, mas meu joelho ficou ruim. Fiz uma música chamada Pobrecitos los buseros, é uma espécie de vingança. Eu tinha hepatite B, foi uma doença muito difícil de superar, mas consegui.
– Depois de tantas experiências, músicas, doenças, o que mais falta para você fazer?
Quero gravar muitas músicas que já foram feitas e também adaptações de outros cantores e compositores de outros países.
Recentemente gravei um tango chamado “El extremista”, ele diz e imediatamente canta a capela.
O extremista é o único culpado por esses dias instáveis para nossa bela paz?
Tenho em mente fazer uma música chamada El muñeco de cartón, referindo-se ao presidente Daniel Noboa Azin.
A luz pálida que entra pela janela avisa sobre a chuva naquele dia de final de março. A conversa termina, ele se levanta e mostra suas pernas muito longas enfiadas em uma calça jeans, seus sapatos de salto alto estilo montanha, seu moletom preto, seu lenço palestino vermelho e preto, seu cabelo grisalho que cai até o meio das costas e sua sempre presente boina preta. Ele parece um pouco cansado, respira fundo e estica o braço direito como se quisesse dizer que isso é tudo por hoje.
Tradução > Liberto
agência de notícias anarquistas-ana
luzes da cidade —
uma folha de papel
cai não cai na brisa
Alexander Pasqual
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!