Na “calada da noite”, no dia 25/06, enquanto os estudantes se encontravam de férias e, portanto, afastados em grande parte da universidade, a reitoria da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), composta pela reitora Gulnar Azevedo e pelo vice-reitor Bruno Deusdará, assinou um Ato Executivo de Decisão Administrativa (AEDA 038/2024), o qual vem sendo devidamente chamado pelo corpo estudantil como “AEDA da Fome”. Os estudantes, em resposta, decidiram ocupar o campus Maracanã da UERJ.
A AEDA da Fome
Sob a alegação de que a UERJ está sem dinheiro para garantir a permanência e os direitos dos estudantes cotistas, a reitoria simplesmente colocou em xeque os estudantes não cotistas de baixa renda, isto é, estudantes provenientes do proletariado, o que torna evidente o teor de classe da atitude covarde da reitoria.
O AEDA mudou os requisitos para obtenção das bolsas estudantis na universidade. Ela se encontra em vigor desde o dia 1° deste mês. O auxílio-material foi de R$1,2 mil (pago 2 vezes ao ano) para a metade do valor. O auxílio-alimentação ficou restrito a quem estuda em campus sem restaurante universitário. O número de estudantes contempladas pelo auxílio-creche foi reduzido a apenas 1,3 mil estudantes, sendo que antes bastava a solicitação. A bolsa voltada aos estudantes com vulnerabilidade agora passa a exigir renda bruta de meio salário mínimo por pessoa da família, isto é, R$ 706.
Alguns servidores defendem que os cortes sejam realizados, afirmando que os auxílios são auxílios e não salários, não tendo, portanto, o objetivo de pagar as constas das famílias desses discentes. Esses discentes, em sua maioria proletários racializados como não-brancos, que têm de enfrentar longos trajetos e horas de transporte para chegar à universidade, para não mencionar quando as localidades nas quais moram são afetadas diretamente pela violência que impede sua ida à universidade.
A Resposta dos Estudantes
Os estudantes decidiram ao longo de reuniões, por um conjunto de atos a serem realizados no dia 14/08. Este dia começou com um ato às 7h em apoio aos terceirizados, que estão há meses sem receber salário. Às 15h ocorreu um ato do Dia Nacional do Estudantes na Cinelândia e, por fim, um ato pela revogação da AEDA da Fome em frente a UERJ às 17h, que fechou a avenida São Francisco Xavier, numa clara exposição da força que a unidade de luta é capaz. Este último resultou na ocupação do prédio principal do campus Maracanã da UERJ. Barricadas com mesas e bancos foram levantadas nas portas principais.
Sobre a AEDA, uma estudante afirmou: “é um absurdo isso tudo! Uma amiga minha não vai poder vir pra faculdade porque não vai receber o auxílio-creche, não sabe o que vai fazer. Eu mesma penso em arranjar um trabalho pra me manter e me formar. Mas ai a gente escuta gracinha de professor falando que a gente tem que se dedicar totalmente à universidade, como se a gente fosse um bando de preguiçosos. Um professor disse que quem trabalha no máximo vai ganhar um pouco a mais por ter ensino superior, mas que não é pra esperar mais do que isso.” Já um estudante da Baixada Fluminense disse: “é difícil. A gente chega aqui e o professor olha pra gente com cara feia. A gente fica quase 2h no ônibus e no trem e a gente ainda tem que tirar do nosso bolso, que não é pouca coisa. Qual a diferença disso pra pagar uma universidade privada?”. Este último relato é importante, pois mostra, de certo modo, como certas medidas assumidas pelas universidades públicas empurram os estudantes para as universidades privadas, o que também higieniza a comunidade acadêmica, já que são os estudantes que recorrerão às universidades privadas, não os playboys.
Sem qualquer surpresa, a reitoria se prontificou em criminalizar a ocupação, partindo para cima dos estudantes pobres revoltados contra a fome: na manhã desta quinta-feira, 15/08, a empresa Conquista ordenou que seus funcionários terceirizados da vigilância agredissem os estudantes. Estes vigilantes atuam na área de segurança patrimonial, não sendo portanto parte da sua função a repressão, muito menos a repressão a movimentos sociais. Como bem questionou o grupo Invisíveis (@invisiveistrabalhador) no seu perfil no Instagram: “Seria isso um desvio de função?” Como bem pontuou o grupo numa outra postagem: “a ordem dada pela coordenação de segurança da UERJ, é desvio de função violação de relações trabalhistas.”
Relatos de Trabalhadores Terceirizados sobre a Ocupação
O grupo Invisíveis tem realizado uma enquete operária com as trabalhadoras e os trabalhadores terceirizados da UERJ. Na data de hoje, os seguintes relatos foram apresentados numa postagem:
“A empresa disse para não vir por que ia tá tudo suspenso. Mas eu já tô aqui na UERJ, passei pela entrada principal e vi tudo trancado. Quando passei disseram que a greve é até revogarem a medida aí. Aí nós tamos aqui no bandejão. A princípio não vai servir comida não, só que o meu turno já fez 100 quilos de feijão. 100 QUILOS! A gente vai ver como é que vai ficar. A gente tá aqui. E ainda tamo esperando o vale alimentação e transporte, que vem atrasado e parcelado. E a gente tá aguardando a comida pronta aqui pra ser congelada. Não vão jogar fora.” (Relato apresentado por funcionários da empresa PRIME, no bandejão).
“Vocês tinham é que ocupar mais e nem deixar a gente entrar. Tamo sem salário, a CONQUISTA só atrasa. Só assim pra gente poder fazer paralisação. A gente não pode paralisar sem completar 1 MÊS de SALÁRIO ATRASADO. Fora isso, se a gente paralisar é abandono do posto e DEMITEM COM JUSTA CAUSA. Tem um ESTATUTO DO VIGILANTE que define isso. E se a gente FALA COM VOCÊS lá EMBAIXO É OBRIGADO A ASSINAR ADVERTÊNCIA, sempre é assim. Por isso a gente não fala normalmente. A gente fica com muito medo. Não pode nem pegar panfleto com vocês. E nem ler nada.” (Relato apresentado por vigilantes da empresa CONQUISTA, que estão sem receber o salário).
A decisão de suspensão do bandejão não é à toa. Trata-se duma clara tentativa de desmobilizar os discentes através da fome. Cabe relembrar que o bandejão só existe hoje graças à organização e mobilização dos estudantes em 2017, que lutaram pela implementação do bandejão, movimento que ficou conhecido como Ocupa Bandejão. As ameaças de demissão aos vigilantes é também uma forma de desmobilização através do isolamento entre estes e os estudantes. Como foi relatado: “A gente fica com muito medo. Não pode nem pegar panfleto com vocês. E nem ler nada.” É o medo da demissão, não a desconfiança dos vigilantes em relação às ações tomadas pelos estudantes, o que os impede de somarem à ocupação. Desta forma, o enfraquecimento da luta contra a AEDA da Fome se torna iminente e, com ela, a tragédia da exclusão de 6 mil estudantes da assistência estudantil.
A empresa Conquista, não obstante não pagar o salário dos vigilantes, ainda ordena que agridam os estudantes, numa clara cumplicidade com a reitoria. Caso não sigam as ordens, esses funcionários serão demitidos. O Capital opera pelo medo. As suas condições de vida e as dos estudantes agredidos não são tão diferentes assim. Como afirmou uma funcionária da limpeza, também contratada pela empresa Conquista: “COVARDIA ISSO, ESSES SEGURANÇAS TUDO SEM SALÁRIO, SEM DISSÍDIO, SEM DIREITOS AGREDINDO ESTUDANTES”. A empresa atrasou o pagamento dos seus funcionários pela oitava vez; deve pagamento do dissídio; tem um dos contratos mais caros da UERJ; lucra burlando pagamento de rescisão, conforme cartaz do grupo Invisíveis. A empresa, assim como a reitoria, estão contra nós, proletárias e proletários!
Já o G1, em cumplicidade com a política elitista da reitoria, expõe a situação como “tumulto” e “confusão” e apresenta única e exclusivamente o que diz a reitoria, a qual se faz de vítima diante dos ocorridos. “A ocupação com a obstrução é inaceitável, pois causa prejuízos acadêmicos e administrativos à UERJ”, afirma a reitoria. Inaceitável é a situação cada vez mais precária da universidade. O corte de bolsas tem implicações diretas sobre os estudantes. Se a preocupação é realmente com “prejuízos acadêmicos”, por que não considerar os prejuízos pelos quais os estudantes passarão com a mudança nos requisitos para a obtenção de bolsas? Não é de se espantar que os protestos realizados pelos estudantes, bem como sua recusa em aceitar a conciliação de classe (“As propostas para dar solução ao impasse foram todas recusadas pelos estudantes”, conforme reitoria), sejam traduzidos como “atitudes violentas”. Afinal de contas, é “confuso” quando o proletariado racializado decide não mais ser capacho ou um corpo docilizado. Ao não se conformar mais, o proletariado passa a falar uma outra língua, incompreensível aos ouvidos habituados ao “sim, senhor!”. Numa sociedade dividida em classes, o estudante é sim um trabalhador. A tentativa de conter a união entre estudantes e terceirizados é para reduzir os riscos duma posterior expansão da luta no seio da comunidade acadêmica para uma luta social mais ampla.
A resposta dos estudantes é legítima e deve ser apoiada por todas aquelas pessoas e organizações engajadas na luta por transformações sociais. Obviamente, a luta não deve ser restringida ao meio estudantil e não parece ser este o caso, posto que os estudantes tentam a todo custo – e apesar dos ataques – aproximar os terceirizados. No dia 10/08, durante um ato dos terceirizados, os estudantes estiveram presentes. O que pode fortalecer a luta estudantil e dos terceirizados e expandi-la, é a nossa contribuição a partir de outros movimentos sociais e sindicais externos à universidade. O fortalecimento desta luta implica no fortalecimento das demais. Se não contribuirmos, ela enfraquecerá e não serão poucos os que lamentarão que o movimento estudantil anda fraco e sem forças. Pois bem, tomemos alguma providência!
agência de notícias anarquistas-ana
soprando esse bambu
só tiro
o que lhe deu o vento
Paulo Leminski
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!