A descoberta da ciência social
O ano é 1839, e Proudhon já percebia a necessidade de uma ciência da sociedade.
Em A celebração do domingo (1839), o autor escreveu:
“Mas o homem nasce para a sociedade: portanto, ainda é necessário estudar as relações dos homens entre si, a fim de determinar seus direitos e estabelecer regras para eles. Que complicação!“
Proudhon compreende, muito cedo, que o indivíduo e a sociedade são indissociáveis (“o homem nasce para a sociedade”). Seu ponto de vista faz pensar o quanto são parciais as teorias que, ainda hoje, centram-se apenas em um dos aspectos, ou o indivíduo, ou a sociedade, dessa ontologia dialética que produz o social.
Outro ponto importante e recorrente em sua ciência social, o que hoje chamamos de sociologia, como bem notaram Gurvitch (1970) e Ansart (1967), é o aspecto normativo. Proudhon encarou que essa ciência teria uma contribuição política. Ao estudar “as relações dos homens entre si”, ela contribuiria para determinar direitos e estabelecer regras sociais.
Partindo do estado em que se encontrava a matemática, a física e a filologia em sua época, Proudhon se questiona se deve existir uma ciência da sociedade.
“Há uma ciência das quantidades que força o assentimento, exclui o arbítrio, rejeita toda utopia; uma ciência dos fenômenos físicos, que se baseia apenas na observação dos fatos; uma gramática e uma poética baseadas na essência da linguagem, etc. Deve existir também uma ciência da sociedade, absoluta, rigorosa, baseada na natureza do homem e em suas faculdades, e em suas relações; ciência que não deve ser inventada, mas descoberta“.
Nesta segunda citação, ele esmiúça um pouco mais sobre os alvos dessa ciência da sociedade: a) as faculdades humanas e b) as relações entre os homens.
Nota-se que as “faculdades”, as quais se refere o autor, podem designar aquilo que ele nomearia, mais adiante em Da justiça na revolução e na igreja (1858), de “consciência coletiva”, isto é, aos aspectos simbólicos da vida social, que também seriam tratados por Durkheim e a Escola Sociológica Francesa utilizando a mesma nomenclatura. Por sua vez, as “relações” podem estar antecipando a sua noção de “força coletiva”, que seria trabalhada em sua obra seguinte, “O que é a propriedade?” (1840).
Chama atenção, na citação acima, que para o autor essa ciência “não deve ser inventada, mas descoberta”. Ele estaria se referindo a existência de um objeto, as “relações sociais”, que já existiria anteriormente a própria instituição de uma ciência adequada ao seu estudo?
Definição de ciência social
Em 1846, foi publicado na França, Sistema das contradições econômicas ou Filosofia da miséria, de Pierre-Joseph Proudhon. Nesse livro, ele define a ciência social.
“Trata-se, portanto, e antes de mais nada, de reconhecer o que pode ser uma ciência da sociedade.
A ciência, em geral, é o conhecimento racional e sistemático daquilo que é.
Aplicando esta noção fundamental à sociedade, diremos: a ciência social é o conhecimento racional e sistemático não do que foi a sociedade, nem do que ela será, mas sim do que ela é em toda a sua vida, isto é, no conjunto de suas manifestações sucessivas, pois é somente ai que pode existir razão e sistema. A ciência social deve abraçar a ordem humanitária e não apenas em tal ou qual período de sua duração, nem em alguns de seus elementos, mas sim em todos os seus princípios e na integridade de sua existência, como se a evolução social, espalhada no tempo e no espaço, se encontrasse subitamente reunida e fixada em um quadro que, mostrando a série das idades e a sequência dos fenômenos, descobrisse o seu encadeamento e unidade. Tal deve ser a ciência de toda a realidade viva e progressiva, tal é incontestavelmente a ciência social” (Proudhon, 2003, p. 96).
Proudhon inicia sua definição de ciência social pela explicação do que é a própria ciência em sentido lato. A ciência comporta características epistemológicas (racionalidade), metodológicas (sistematicidade) e ontológicas (factualidade). Esses três caracteres são aplicados ao conhecimento da sociedade (objeto).
Assim, a sociedade ou a “ordem humanitária” – Durkheim (2001), posteriormente, nomearia de “reino social” – é passível de ser compreendida de maneira científica. Isto é, racional, sistemática e factualmente como fenômeno humano.
Isso parece simplista para os ouvidos de um estudante de sociologia do século XXI. Entretanto, quando Proudhon escrevia aquele livro, era necessária à perspectiva científica estabelecer distinção com a metafísica. Lembremos que, naquele período, na França, Comte utilizava o termo “positivismo” em oposição à “metafísica”, no intuito de estabelecer uma separação entre o real, observável, e o quimérico, que só pode ser imaginado (Russ, 1994). Esse esforço de separação epistemológica entre o real e o metafísico, é semelhante ao de Proudhon.
Elevar a “ordem humanitária” a objeto de ciência foi, assim, um desses atos inauguradores de uma ciência da sociedade, tanto quanto a invenção da palavra sociologia por Auguste Comte na década de 1830, e a publicação em 1838 de Como observar morais e costumes, de Harriet Martineau, que inventou o trabalho de campo sociológico. Ainda que Martineau e Proudhon tenham sido ignorados durante certo tempo pelas ciências sociais.
Economia política como a ciência social
Proudhon (2003) concebia a economia política como a verdadeira ciência social.
“Quanto a mim, não é desta forma que concebo a ciência econômica, a verdadeira ciência social. Ao invés de responder pelos a priori aos temíveis problemas de organização do trabalho e de distribuição das riquezas, eu interrogarei a economia política como a depositária dos pensamentos secretos da humanidade; farei os fatos falarem segundo a ordem de sua geração, e relatarei, sem nada acrescentar de meu, o seu testemunho” (Proudhon, 2003, p. 176).
Pode-se extrair três afirmações desse parágrafo de Sistema das contradições econômicas:
1) A economia política é a ciência social.
2) Ela trata de “problemas” como a “organização do trabalho” e a “distribuição das riquezas”.
3) Em seu método de investigação, parte do factual, isto é, centrado na dimensão empírica do fenômeno, no que ele “é”, e não no que “deveria ser”, isto é, em uma dimensão normativa. Durkheim (1994) inventou as noções de juízo de fato e juízo de valor para dar conta dessa diferença que já se nota em Proudhon.
Refletindo a partir desses extratos de Sistema das contradições, contidos na postagem acima, pode-se concluir que para o Proudhon de 1846, a) o estudo racional, sistemático e factual da b) organização do trabalho e da distribuição de riquezas, fenômenos de ordem humanitária, c) configuram a economia política como ciência social.
Em conclusão, Proudhon, ainda no século XIX, lançou as bases para uma ciência social racional, sistemática e factual, antecipando muitos aspectos que seriam desenvolvidos posteriormente por pensadores como Durkheim (Ansart, 1967; Bouglé, 2015; Gurvitch, 1970).
Ao propor uma abordagem científica para a sociedade, baseada nas faculdades humanas e nas relações sociais, Proudhon não apenas desafiou as visões metafísicas da época, mas também estabeleceu uma determinada perspectiva de economia política, mais próxima da sociologia do que da economia política clássica, como a verdadeira ciência social, cujo foco está na análise empírica da organização do trabalho e da distribuição de riquezas como fundamentos societários para a justiça social.
Sua contribuição para a sociologia é indiscutível (Ansart, 1967; Bouglé, 2015; Gurvitch, 1970), ainda que relativamente desconhecida no Brasil (Ferreira, 2016). Noto que o renomado Florestan Fernandes, que coordenou a coleção Grandes Cientistas Sociais, lhe dedicou espaço com o livro organizado por Resende e Passeti (1986).
A obra de Proudhon é, portanto, essencial para a compreensão da evolução da ciência social na França e no mundo, visto sua influência na Escola Sociológica Francesa (Bouglé, 2015), passando até por Lévi-Strauss (Falleiros, 2018). Ela continua a ser relevante para os debates contemporâneos sobre a natureza da sociedade e as complexas interações entre a propriedade e o trabalho, os movimentos sociais e a justiça social (Brancaleone, 2020; Jamil, 2022; Laval, 2016; Pereira, 2016).
Raphael Cruz
Professor de sociologia na Universidade Federal do Piauí.
Referências
ANSART, Pierre. Sociologie de Proudhon. Paris: Presses Universitaires de France, 1967.
BRANCALEONE, Cassio. Anarquia é ordem: reflexões contemporâneas sobre teoria política e anarquismo. Curitiba: Brazil Publishing, 2020.
BOUGLÉ, Célestin. A sociologia de Proudhon. São Paulo: EDUSP; Intermezzo, 2015.
DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins fontes, 1977.
DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martin Claret, 2001.
DURKHEIM, Émile. Filosofia e sociologia. São Paulo: Ícone, 1994.
FALLEIROS, Guilherme Lavinas Jardim. From Proudhon to Lévi-Strauss and beyond: a dialogue between anarchism and indigenous America. Anarchist Studies, v. 26, n. 2, p. 56-79, 2018.
FERREIRA, Andrey Cordeiro. O pensamento de Pierre-Joseph Proudhon na sociologia. MORAES, Wallace; JOURDAN, Camila. Teoria política anarquista contemporanea. Rio de Janeiro: Via Vérita, 2016
GURVITCH, Georges. Los fudadores franceses de la sociología contemporánea: Saint-Simon y Proudhon. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1970.
JAMIL, Cayce. Resurrecting Proudhon’s idea of justice. Journal of Classical Sociology, v. 22, n. 2, p. 141-167, 2022.
LAVAL, Christian. Commun et communauté: un essai de clarification sociologique. SociologieS, 2016. Disponível em: journals.openedition.org/sociologies/5677. Acesso em 8 de setembro de 2024.
MARTINEAU, Harriet. Como observar: morais e costumes. Governador Valadares: Editora Fernanda H. C. Alcântara, 2021.
PEREIRA, Irène. Proudhon, penseur de la lutte pour la reconnaissance. Cahiers de Psychologie Politique, v. 28, n. 28, 2016.
PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a propriedade. Lisboa: Editorial Estampa, 1975
PROUDHON, Pierre-Joseph. Sistema das contradições econômicas, ou, Filosofia da miséria, tomo 1. Tradução de J. C. Morel (Coleção fundamentos de filosofia). São Paulo: Ícone, 2003.
PROUDHON, Pierre-Joseph. The celebration of sunday [1839]. Tradução Shawn P. Wilbur. Disponível em: https://theanarchistlibrary.org/library/pierre-joseph-proudhon-the-celebration-of-sunday. Acesso em 9 mai. 2023.
RESENDE, Paulo-Edgar; PASSETTI, Edson. Proudhon (Coleção Grandes Cientistas Sociais). São Paulo: Ática, 1986.
RUSS, Jacqueline. Dicionário de filosofia. São Paulo: Scipione, 1994.
agência de notícias anarquistas-ana
trigo dourado
pelas mão do vento
é penteado
Carlos Seabra
Incrível. Acompanho o Socialismo Científico a 20 anos, e sei como é perguntas simples como os termos do texto tratado serem respondidos. Sou da Bahia. Proudhoniano. Bravo. Palavra de Deus.