Nestor Makhno, Emma Goldman e a etnografia espontânea da Revolução Russa

Penso em Nestor Makhno e Emma Goldman como “etnógrafos espontâneos” da Revolução Russa. Suas obras, O comunismo não existe na Rússia (Goldman, 2007) e A “Revolução” contra a Revolução (Makhno, 1988), apresentam descrições desse evento político crucial do século XX a partir de olhares atentos aos “detalhes que se repetem cotidianamente” (Bakunin, 2015).

O termo “espontânea” destaca o fato de que Makhno e Goldman não eram cientistas sociais de formação nem pretendiam alinhar seus escritos às normas acadêmicas. Ainda assim, há sentido em chamar de etnografia esse tipo particular de análise, pois ambos captaram aspectos do cotidiano e da cultura que moldaram e revelaram processos sociais em curso.

Nestor Makhno descreveu em detalhes o cotidiano de um processo de transformação social fundamental, a partir de sua própria localidade natal. No contexto de uma radical reconfiguração das relações sociais no campo, registrou falas e práticas de camponeses em assembleias, demonstrando uma sensibilidade quase etnográfica para captar as noções morais – como a de justiça – que norteavam suas ações. Esses registros permitem compreender como os camponeses negociaram suas demandas frente a grupos como os antigos latifundiários e as novas autoridades bolcheviques.

Emma Goldman, por sua vez, identificou na desigual distribuição de rações alimentícias entre a população e a burocracia soviética os sinais de uma nova hierarquia social emergente. Essa hierarquia, segundo Goldman, consolidou-se com o enfraquecimento político dos conselhos de trabalhadores, camponeses e soldados, enquanto o “estatismo” (Bakunin, 2003) se tornava a base do governo na Rússia pós-revolucionária. Goldman demonstrou como, a partir de um aspecto aparentemente mundano – as práticas alimentares –, era possível compreender a burocratização da revolução e seus desdobramentos.

Esses trabalhos oferecem contribuições valiosas que ecoam princípios da sociologia e da antropologia acadêmicas: descrever a produção de estruturas sociais a partir do cotidiano das interações humanas e identificar as lógicas culturais que orientam as ações de grupos sociais. Assim, as obras de Nestor Makhno e Emma Goldman podem ser vistas como para-etnográficas, fornecendo análises sobre os processos históricos e sociais que moldaram a Revolução Russa.

Raphael Cruz

Professor de sociologia na Universidade Federal do Piauí.

Referências

BAKUNIN, Mikhail. Aonde ir e o que fazer? [1872]. In: BAKUNIN, Mikhail. Educação, ciência e revolução. São Paulo: Intermezzo Editorial, 2015.

BAKUNIN, Mikhail. Estatismo e anarquia [1873]. São Paulo: Imaginário, 2003.

GOLDMAN, Emma. O comunismo não existe na Rússia [1935]. In: GOLDMAN, Emma. O indivíduo, a sociedade e o Estado, e outros ensaios. Série Estudos Libertários. São Paulo: Hedra, 2007.

MAKHNO, Nestor. A “revolução” contra a revolução [1927]. Coleção Pensamento e Ação, v. 4. São Paulo: Cortez, 1988.

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