
Em um livro recente e relevante, ¡Al ladrón! Anarquismo y filosofía (Kaxilda, 2023), Cathérine Malabou argumenta que alguns dos pensadores mais significativos da filosofia contemporânea “roubaram” impulsos, orientações e conceitos do anarquismo para desenvolver uma crítica da dominação ou uma lógica de governo, sem reconhecer a origem dessas ideias e sem jamais se autodeclararem anarquistas. Assim, o anarquismo — ou o pensamento social anarquista — seria a fonte não confessada de filósofos como Schürmann, Levinas, Derrida, Foucault, Agamben ou Rancière, que sempre rejeitaram o rótulo. Existiria, portanto, uma persistente negação do anarquismo em um pensamento contemporâneo que, ao mesmo tempo, se alimenta dele em grande medida. Como se a relação dos filósofos com a literatura anarquista ocorresse às escondidas, de forma clandestina, como algo vergonhoso que se pratica, mas não se declara. Um anarquismo que a filosofia primeiro saqueia e depois disfarça em expressões conceituais sublimadas. No entanto, isso estaria começando a mudar hoje, com o chamado “giro anarquista” na teoria, em que diversos pensadores parecem sair do armário. É o caso de Malabou na filosofia, ao desenvolver um conceito propriamente anarquista: o do “não governável”. Algo semelhante ocorre em outras áreas, como com o antropólogo David Graeber ou a autora de ficção Ursula K. Le Guin. Parece que o anarquismo hoje se torna mais apresentável nos debates acadêmicos.
Antes de abraçar esse giro e arquivar a negação filosófica do anarquismo, proponho reabrir o caso e chamar uma última testemunha: o pensador Agustín García Calvo.
García Calvo parece, à primeira vista, um exemplo perfeito dessa negação. Malabou poderia tê-lo incluído em sua lista se conhecesse sua obra. Um exemplo: em 1972, editores da revista Ruedo Ibérico convidaram-no para colaborar em um número especial sobre anarquismo. García Calvo recusou, explicando em uma carta (publicada posteriormente em 1978 na História Libertária) que tal colaboração contribuiria para a institucionalização da anarquia, transformando-a em “doutrina” ou “identidade” apta a se tornar poder. Para ele, há uma contradição insuperável entre negar a Ordem e ser um negador da Ordem, entre rebelar-se contra a Sociedade e ter um ideal de Sociedade.
García Calvo defende um “coração anárquico” (ou “anarquizante, acrático, rebelde ou negativo”). O anarquismo não é teoria, mas prática — uma ação que destrói sistemas, não um sistema filosófico. Isso o aproxima da “desconstrução” de Derrida ou da “destituição” de Agamben. Para ele, a liberdade anarquista só existe como ato de libertação, não como conceito. Essa liberdade negativa (prática, não identitária) o liga também à emancipação em Rancière. García Calvo, que praticou atos anárquicos a vida toda, recusou o rótulo de “anarquista”, herdando a tradição prática do anarcossindicalismo espanhol, mas elevando-a ao terreno contracultural.
Sua ação direta era pensamento como dinamite: criar brechas na Cultura (com “C” maiúsculo) para que “o vivo e palpável” emergisse. Um exemplo é o hino da Comunidade de Madrid que ele compôs — um “anti-hino” que expõe a abstração do poder político. Para García Calvo, a ação anarquista no pensamento abre espaço para “o corpo” e “o povo” (entendidos como anti-Estado, não governáveis). O povo, dizia, “só existe quando se rebela”.
Isso se materializou no programa de rádio Pensamiento 3 (1988-1990), que levou filosofia ao grande público e conectou coletivos minoritários. O programa foi cancelado, mas García Calvo evitou o discurso de “censura heroica”, sugerindo que o fim era parte da rotatividade normal das mídias. Para ele, o pensamento como ação direta não busca a verdade, mas destrói abstrações (Estado, Capital, Futuro) para que o “vivo” respire.
García Calvo também rejeitou identidades fixas usando pseudônimos, anonimato e assinaturas coletivas (como na Comuna Antinacionalista Zamorana). Seu pensamento libertário exigia negação constante — não para fundar uma nova ordem, mas para ressuscitar o caos primordial, onde tudo é possível. Chamá-lo de “anarquista” seria trair essa negação, transformando-a em ideologia.
O anarquismo, para García Calvo, não é teoria, mas ação de qualquer um. Não pertence a “anarquistas”, mas à prática de quem nega a dominação — até mesmo no pensamento, quando a abstração é a forma moderna de opressão.
Jordi Carmona Hurtado
Professor de filosofia
Nota: Texto citado em Jordi Carmona Hurtado, Cómo matar a la muerte. Agustín García Calvo y la filosofía de la contracultura (La oveja roja, 2022), p. 246.
Fonte: https://acracia.org/agustin-garcia-calvo-o-del-pensamiento-como-accion-directa/
Tradução > Liberto
agência de notícias anarquistas-ana
Enquanto agachado
Ao lado da chaleira
Como faz frio!
Naitô Jôsô
Perfeito....
Anônimo, não só isso. Acredito que serve também para aqueles que usam os movimentos sociais no ES para capturar almas…
Esse texto é uma paulada nos ongueiros de plantão!
não...
Força aos compas da UAF! Com certeza vou apoiar. e convido aos demais compa tbm a fortalecer!