Autogestão com mãos alheias

Desconfio dos anarquistas que falam bonito. Dos que desenham horizontes complexos sem nunca terem pegado a vassoura pra varrer a varanda onde sonham. Desconfio dos que não lavam a própria cueca. Que não sabem onde mora o sabão. Muito menos a cor da panela onde o arroz ferve. Fazem discursos sobre liberdade com a roupa passada por mãos alheias.

Citam Bakunin com gosto — mas pisam no chão limpinho que não foi limpado por eles. Difícil é ser justo com as formigas. Com o feijão de ontem. Com o gotejo da pia que ninguém nota. Com o mofo escondido atrás do tanque. Falam muito em transformação — mas não sabem onde mora o balde d’água.

Nunca viram o pano de chão nem o peso de uma sacola de feira. Negam o Estado sem lavar o prato que comem. Querem incendiar as ideias das pessoas sem acender o próprio fogão. Não cuidam de si, da casa, como quem cuida de um mundo. E eu — que sou pequeno, que erro, que me atraso, que não falo palavras difíceis — ainda assim acho tempo pra lavar meu prato e cozinho minha fome na panela torta.

Te digo: fica difícil acreditar em palavras que propõem autogestão quando não se consegue gerir nem a própria vida. Não fiquem irritados se depois de uma palestra complexa alguém perguntar o preço do feijão. Porque pode ser ele quem está segurando seu mundo.

* Retirado do zine Revolta, sem data, sem autoria do texto e sem localidade mencionada
 
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No clarão da lua,
que pinta o lago de prata,
esse ar de mistério.

Reneu do A. Berni

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