
por Aliança Trans Proletária*
Este texto é fruto do mal-estar que temos sentido no meio anarquista. Ele não é direcionado a nenhuma organização em particular, assim como não deve ser tomado como se fôssemos militantes puros, isentos de erros e portadores da razão. Muito pelo contrário, é a investigação das condições de possibilidade dos nossos erros o que nos conduziu a escrever este texto. A nossa pretensão é sair do Grande Inverno no qual nos encontramos.
7 de Setembro: Grito dos Excluídos
Sejamos diretos: enquanto o Grito dos Excluídos se consolidou como um rito a ser realizado majoritariamente por organizações que querem dizer que fazem algo sem fazer, o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), vinculado ao Partido Comunista Revolucionário (PCR), decidiu fazer-se escutar de fato o grito dos excluídos: conhecido pelas ocupações que realiza, esse movimento social iniciou 18 ocupações em 15 Estados diferentes – 3 desses Estados respondendo com bastante brutalidade – neste 7 de setembro.
O Grito dos Excluídos, para quem não conhece, é um conjunto de manifestações populares que ocorrem no Brasil desde 1995. Essas manifestações ocorrem no dia 7 de setembro. Para esclarecer: quando afirmamos que ele se tornou um rito, queremos dizer que talvez nos falte uma ponderação sobre a efetividade da sua realização, qual o saldo, seja positivo ou negativo, temos tirado dele. A sua ritualização, enquanto sinônimo de algo meramente repetido anualmente, não significa que as organizações e movimentos sociais que o compõem provocaram intencionalmente essa ritualização. É bem mais provável que o façam sem se dar conta, o que é bastante preocupante.
Enquanto Esquerda e enquanto pretensa alternativa política ao capitalismo, devemos verificar se os efeitos de nossas ações têm sido produtivos. Isto inclui analisar em que medida nossas ações não seriam, na verdade, meras reações aos refluxos do Capital em vez de uma proposição política que afirme a realização de um outro mundo – impossível, cabe dizer, ao imaginário instituído pelo Capital. Poderíamos nos perguntar e investigar em que medida o Grito dos Excluídos não se tornou um mero ato de agregação de organizações, indivíduos e movimentos sociais, algo mais de ordem quantitativa do que qualitativa. O que queremos ao nos juntarmos no Grito dos Excluídos? Segundo um companheiro especifista: “nós vamos ao Grito dos Excluídos para disputar”. O que, exatamente, ele não soube dizer. Talvez o disse mais por chavão do que por uma compreensão da realidade concreta do proletariado.
Independentemente da discordância ideológica que possamos ter com o MLB e o PCR, concordamos no que diz respeito à luta por moradia. Na data de hoje, durante o Grito dos Excluídos, que ocorria na rua Uruguaiana, fomos interpelados pela notícia de que a ocupação Luisa Mahin – Palestina Livre, que se iniciou hoje, estava sob ataque policial a mando do atual prefeito Eduardo Paes e do governador Cláudio Castro (PL).
Para quem não sofre de amnésia – ou desonestidade política –, o Eduardo Paes é conhecido por remover famílias de suas casas, um ato que por si só já é violento. Afinal de contas, fere um direito básico, que é aquele referente à moradia. Nada novo sob o céu cada vez mais poluído no capitalismo, o que não significa que não encontremos motivo para tentar respirar e tomar os céus. Mas talvez a amnésia – para sermos bem caridosos e esperançosos naquilo que há de possivelmente melhor no meio militante anarquista – tenha afetado inclusive companheiros e companheiras que presenciaram e combateram os desalojamentos e as suas tentativas durante mandatos anteriores do Eduardo Paes: durante o Grito dos Excluídos, a ocupação Luisa Mahin sofria um ataque e os seus gritos eram abafados pela ritualização do Grito dos Excluídos, ocasionando, desta forma, um espantoso ensurdecimento diante do grito dos excluídos e excluídas a não muitos metros de distância do ato. Ensurdecimento este resultante de uma falência múltipla dos órgãos ou, melhor dizendo, das organizações anarquistas, cuja hemiplegia já é perceptível há algum tempo, embora negada por essas mesmas organizações.
Especulação Imobiliária e Novo Ataque do Estado
Na última quarta-feira, dia 3 de setembro, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) aprovou a constitucionalidade do absurdo projeto de lei N° 40/2025, proposta pelo governador Cláudio Castro. O projeto prevê a venda de 48 imóveis estaduais. Na sua lista incluem prédios históricos, terrenos, áreas desativadas da segurança pública e até uma ilha. Um exemplo é a possível perda do imóvel que serve de sede para o Grupo Arco-Íris de Cidadania LGBT, localizado na rua da Carioca, no Centro. Rodrigo Amorim (União), atual presidente da CCJ, quer que a Aldeia Maracanã seja incluída no projeto. Não é nenhuma surpresa esse desejo dele, posto que ele já ameaçou diversas vezes a Aldeia ao passear com seus capangas em torno do território, numa tentativa de amedrontar os integrantes da Aldeia. O Capital não poupará esforços para que esse projeto siga como um trator sobre os movimentos sociais e os corpos daquelas e daqueles que lutam por moradia.
Os gritos de excluídos e excluídas não foram escutados – ou foram, mas ignorados – por outros excluídos, ou que assim se afirmam. Atitude essa que não nos surpreende, mas não deixa de nos causar frustração e tristeza. Claro que, aqui, não estamos “cobrando” que certos segmentos do movimento social e da militância anarquista façam um trabalho para além do que se propõem. Compreendemos as dificuldades presentes na execução das tarefas. As violências do Estado não nos surpreendem, mas sim as que cometemos contra nós mesmos, seja por omissão e silêncio, seja por punitivismo. Apesar das críticas à cultura do cancelamento bastante presentes entre nós, temos observado indivíduos que se ocupam de queimar uns aos outros mediante qualquer situação de discordância ou questionamento referente a decisões tomadas pelas organizações que compõem. Este texto mesmo, muito provavelmente, será lido com o intuito de encontrar de quem é a sua autoria, tratando como secundária ou suspendendo a autocrítica nele presente. Percebam: autocrítica, pois não nos colocamos fora da crítica apresentada. A atitude punitivista e reativa, sim, deveria nos surpreender, pois não reflete em nada os princípios que direcionam nossa luta. Portanto, o mínimo que esperamos é uma coesão entre aquilo que defendemos e aquilo que praticamos. A crítica deve servir para identificar os limites de determinada posição e superá-la, não para simplesmente negá-la. Isso seria ingênuo e confortável demais.
Façamos um trabalho para além do que nos propomos – e nem entraremos na discussão de se as organizações existentes ao menos cumprem ou tentam cumprir aquilo ao que se propõem, o que talvez fosse motivo para um outro texto. Mas, se não estivermos de fato juntos, se não nos preocuparmos uns com os outros, se não exercermos o apoio mútuo, então o que queremos dizer quando empregamos o termo “solidariedade”? A preocupação parece, portanto, ser mais da ordem da linguagem do que de ordem prática e política – não que a linguagem seja dispensável, mas a anulação da prática em prol do emprego de determinados termos por mera convenção é totalmente ineficiente, do ponto de vista político, que é o que nos importa. “Solidariedade” se tornou sinônimo de uma preocupação circunscrita por uma certa afinidade que não a de classe, mas sim pelo círculo de pessoas e coletivos que nos são “próximas”, isto é, que concordam com tudo que digamos. Veja, isto não significa uma defesa de “frentes populares” sem qualquer critério de adesão exceto o apelo a um populismo – o qual, cabe dizer, reforça uma dinâmica interclassista e prejudicial à luta contra o Capital, já que implica na sua conciliação necessariamente –, mas sim uma defesa da solidariedade de classe que se faça verdadeira, não apenas o título de uma nota ou postagem – isto quando há uma nota ou postagem, no melhor dos cenários.
O desalojamento da ocupação Luisa Mahin será a regra, caso não tomemos nenhuma providência coletiva. Não será nenhuma gestão do Estado à Esquerda do capital que impedirá que isso ocorra. Mas também não será a nossa seletividade de solidariedade o que provocará qualquer mudança significativa nessa realidade desgraçada.
Reiteramos: independentemente da discordância ideológica que tenhamos com o MLB e o PCR, a nossa defesa da classe trabalhadora é intransigente e é a ela que nos direcionamos quando pontuamos a falha política das organizações anarquistas – em especial, já que somos militantes anarquistas – em ignorar o que acontecia paralelamente ao Grito dos Excluídos. Sabemos dos problemas existentes no PCR. Contudo, como afirmamos, não é numa defesa da linha ideológica do PCR o que estamos argumentando a favor, mas sim numa defesa do proletariado desalojado, das famílias compostas por mulheres, crianças e idosos que foram espancadas pela polícia militar. Também sabemos dos problemas existentes nas organizações anarquistas no território dominado pelo Estado do Rio de Janeiro e como que muitos desses problemas simplesmente são empurrados para debaixo do tapete por uma condescendência do autoproclamado “movimento libertário”, abafando qualquer possibilidade de autocrítica. Não é somente o Estado o que nos inviabiliza a luta social: há desvios autoritários entre nós anarquistas que nos imobilizam, nos colocando para hibernar no Grande Inverno do neoliberalismo. Quando foi que nos permitimos uma equivalência com os partidos socialdemocratas – não importando quão revolucionários se proclamem – e sindicalistas conciliadores de classe que se ocupam única e exclusivamente de montar seus palanques eleitorais repletos de promessas falsas que direcionam a um futuro inalcançável através da democracia burguesa? Talvez a disputa à qual o companheiro especifista se referiu pudesse se concretizar nessa ação solidária.
Em que medida as organizações não têm se preocupado única e exclusivamente com a sua perpetuação, ignorando, assim, o motivo de existirem? Uma organização que se preze eficiente tem que compreender a finitude da sua existência. Se ela existe para combater um mal, a sua preocupação também deve ser em fazer-se desnecessária. Quando ela perde isso de vista, ela também deixa de se preocupar com a eficiência das suas ações e se ocupa de se manter, ainda que de maneira marginalizada. É preciso dizer que a marginalização parece ser confortável para algumas organizações anarquistas. Isso as isenta de assumirem grandes responsabilidades coletivas. A força de uma organização se encontra no reconhecimento da sua vulnerabilidade, o que não pode coincidir com uma postura vitimista ou melancólica de lamento. Se “juntos somos mais fortes” e esse estar junto não tem nos fornecido forças, não tem nos potencializado, talvez não estejamos realmente juntos, mas apenas agregados num ambiente.
Certo é que, às vésperas da primavera, nós, militantes anarquistas preocupados com uma ação coesa, não pretendemos nos manter nessa glacialização.
* A Aliança Trans Proletária (ATP), como o próprio indica, é uma aliança entre pessoas trans proletárias que afirma que as relações sociais de poder dos gêneros, raças, sexualidades, nações, geracionais etc. são precisamente formas particulares de relações de classe.
Fonte: https://transanarquismo.noblogs.org/post/2025/09/07/uma-autocritica-anarquista/
agência de notícias anarquistas-ana
outro assobio
escuto os passarinhos
sem dar um pio
Ricardo Silvestrin
PARABÉNS PRA FACA E PRAS CAMARADAS QUE LEVAM ADIANTE ESSE TRAMPO!
Um resgate importante e preciso. Ainda não havia pensado dessa forma. Gratidão, compas.
Um grande camarada! Xs lutadores da liberdade irão lhe esquecer. Que a terra lhe seja leve!
segue a página: https://urupia.wordpress.com/
Como ter contato com a comuna?