Sobre o massacre de estado – Rio de Janeiro

Por Camila Jourdan | 29/10/2025

A política de morte não trata apenas de matar, mas sempre de produzir a própria possibilidade do extermínio. Por isso ela tem sempre uma dimensão discursiva. Que ameaça devem produzir corpos expostos em praça pública? Que ensinamento de terror sempre esteve expresso pelas execuções públicas? Ao lado disso: o que autoriza que o estado moderno mate? Como se produzir a morte e, ao mesmo tempo, se dizer que se faz isso para defesa do estado democrático de direito? Como exibir publicamente uma fileira de corpos e, ao mesmo tempo, se escrever a legenda: ‘cidade volta ao normal após operação’? Como colocar a chacina e o extermínio sob a égide da normalidade?

Desde do dia da operação a televisão insistia em dizer que todos os mortos eram ‘bandidos’, mesmo que não se soubesse quem eram. Tudo havia sido feito em função da manutenção da ordem e da paz social. Paz para quem, afinal? A implicação: ‘morreu, logo era traficante‘ é antiga neste contexto de produção de discursos da suposta ‘guerra às drogas’, e já fazem pelo menos quatro décadas. Sabemos que se diz ‘guerra assimétrica’ para não se chamar chacina, extermínio, massacre, perseguição aos pobres, gestão do crime e domínio dos territórios pelo medo. Quando finalmente a mídia passa a chamar de ‘suspeitos’, é sempre com uma acompanhada despersonificação. É importante tornar os alvos não-sujeitos, e isso se procede de muitas maneiras. Pela exibição de corpos em montanhas. Pelo número colocado como sujeito da frase. Pela tentativa de se evitar qualquer empatia. Foram mais de 100 pessoas assassinadas, mas isso deve ser tratado em bloco, apenas a família e amigos dos quatro policiais são exibidos chorando, sentindo, demonstrando comportamento de dor. As pessoas assassinadas não têm família, ou esta família é um sujeito oculto mencionado para se reconhecer a culpa do filho morto, não há quem se importe, são números: ‘128 mortos’, ‘128 corpos’, nenhuma subjetividade…daí o pano de fundo estar dado para fala do governador, repetida pelo secretário de segurança: “só tivemos 4 vítimas nesta operação, os policiais”, os demais foram contidos, eliminados, abatidos. Os demais não são pessoas. 

Tudo isso vem então acompanhado da impossibilidade de defesa, o outro animalizado é o lugar do inimigo social, e o inimigo social é aquele que pode ser eliminado sem que isso gere punição. Mais do que isso, cuja tentativa de autodefesa deve sempre deflagrar sua própria morte. Lugar ocupado por quem é colocado como não-humano é o que a designação de ‘terrorista’ deve produzir, o lugar que pessoas sem direitos devem ocupar. As entrevistas do governador e do secretário de segurança defendem de modo intransigente uma operação ilegal, amparados nesse estratagema discursivo: o lugar onde a defesa é impossível, é também o lugar da presa. Por isso é tão importante que eles digam que o que está em jogo não é mais o comércio de drogas, mas a defesa do estado, que tratam-se afinal de ‘narcoterroristas’ muito perigosos. O ‘narcoterrorista’ é matável por excelência, inimigo da civilização, fabricado no lugar de ameaça interna, capaz de incendiar a cidade, parar o mercado, interromper as vias, levar o caos. Contra ele qualquer violência apresenta-se como plenamente legítima.

Só assim é possível sustentar que sejam largados na mata pra que seus familiares busquem os corpos. Requinte de crueldade sem dúvida, mas que convenientemente impede a perícia. Pois se eles vão buscar, são acusados também de serem criminosos, de terem adulterado a cena do crime, de terem gerado qualquer marca no corpo que não corresponda à versão do auto de resistência. Mas, ora, se eles estavam todos em confronto por que não foram encontrados com seus fuzis? Não seria importante a polícia deixar a prova que sustenta sua narrativa no local, já que agiam pra se defender? Como corpos desarmados podem ser vistos como ameaças? Daí a importância que sejam recolhidos por seus próximos, aquelas pessoas que mesmo diante dessa estratégia sádica, insistem em ter empatia, e assim ocupam o lugar de Antígona, elas impedem que os corpos sejam largados sem ritos. Na praça, diante da comunidade, podem receber novos sentidos. Na praça, diante das câmeras, os corpos matáveis insistem em ser gente, e são aplaudidos. 

Mas quanto ao corpo de Polinice, infaustamente morto, Ordenou aos cidadãos, comenta-se, Que ninguém o guardasse em cova nem o pranteasse, Abandoando sem lágrimas, sem exéquias, doce tesouro De aves, que o espreitam famintas. As ordens – propalam – do nobre Creonte, que ferem a ti E a mim, a mim, repito, são estas, que vem para cá Com o propósito de anunciar as ordens aos que ainda não as conhecem Explicitamente. O assunto lhe é tão sério Que, se alguém transgredir o decreto, Receberá sentença de apedrejamento dentro da cidade (Antígona)

Antígona, um mito antigo, enfrenta o estado representado por Creonte, e confronta sua narrativa pela qual o cadáver do seu irmão não pode receber ritos fúnebres por ter ofendido as leis em vigor. Antígona impede que o corpo de seu irmão apodreça sem ritos fúnebres e que seja comido por animais. Que os próprios parentes recolham seus mortos atesta também: o estado mata, mas a comunidade cuida. Antígona também se torna igualmente criminosa por isso. Na necropolítica, cuidado é crime. Porém, dessa forma, não temendo mais, em seus próprios termos, nem a morte nem a loucura, parece apontar um princípio de uma ética para além do estado e da noção necessariamente excludente de humanidade.

Morrerei, sim. Se minha morte vier mais cedo, eu a receberei de bom grado. Minha vida tem sido apenas miséria. Se me punires, não farás mais do que acelerar minha chegada ao túmulo. Mas não honrar meu irmão, isso sim seria intolerável. (Antígona)

As analogias param por aí. Não devemos sustentar que o ocorrido foi uma tragédia, pois não foi, foi planejado e executado de acordo com o plano. Nisto, o governador não mentiu. Em todo caso, Claudio Castro disse que os policiais que morreram em confronto são heróis. Não quero disputar heroísmos. Mas se há uma ação que em meio a tudo isso possa ser saudada são daqueles e daquelas que passaram a madrugada buscando os corpos dos seus parentes, amigos ou apenas vizinhos em meio a mata. Estas pessoas nos permitem enfrentar o medo que nos é sistematicamente imposto como política de morte.

Fonte: https://lasintec.unifesp.br/produ%C3%A7%C3%B5es/colabora%C3%A7%C3%B5es-externas/camila-jourdan-sobre-o-massacre-de-estado-rio-de-janeiro-29102025

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Carlos Seabra

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