Marxismo, a linha auxiliar do burguesismo

É curioso perceber como o mito da vanguarda marxista ainda seduz tanta gente, como se houvesse escondido no interior do partido, um motor inevitável de luta revolucionária. Mas a história insiste em lembrar que a prioridade real nunca foi a revolução: foi o próprio partido. E isso não é bravata retórica, é literalmente o que Robert Michels descreveu em A Sociologia dos Partidos Políticos (1911), quando formula a famosa “lei de ferro da oligarquia”: qualquer organização centralizada tende a se conservar antes de cumprir sua finalidade declarada. O partido vira fim em si mesmo, preserva quadros, carreiras, jornais, estruturas, e cria mecanismos para impedir que a base altere essa estabilidade. Rosa Luxemburgo, apesar de marxista, já denunciava essa tendência em Greve de Massas, Partido e Sindicatos (1906), mostrando como a direção teme a espontaneidade porque ela rompe a “paz organizativa”. O partido passa a viver de controlar o imprevisto, e a revolução vira uma bandeira que justifica aumentar seu aparato.

A máquina precisa agradecer por existir, e para isso ela precisa sobreviver. O cinismo está justamente no fato de que a autopreservação vira o argumento moral da própria existência: “sem o partido, não há revolução”, quando na verdade é o partido que impede que qualquer revolta floresça sem sua tutela. Então não há contradição aqui. O partido não se trai quando protege sua burocracia; ele cumpre a lógica de sua forma. A revolução é apenas aquilo que se promete enquanto se constrói a jaula que irá contê-la. No fundo, a autopreservação partidária nunca foi um desvio. Sempre foi o objetivo.

Quando olhamos para o Brasil da Primeira República, a diferença entre “revolução” e “partido” fica ainda mais gritante. Os anarquistas eram majoritários no movimento operário, e suas práticas autônomas – assembleias horizontais, greves sem direção central, mutirões de resistência – eram tratadas pelo Estado como ameaça direta.

Mas a parte que a narrativa marxista tenta esconder é que os partidos que surgiram depois herdaram esse mesmo medo. Edilene Toledo, em Anarquismo e Sindicalismo Revolucionário (2003), mostra como já nos anos 1920 o nascente PCB denunciava lideranças anarquistas à polícia, classificando-as como “agitadores sem disciplina” e defendendo a centralização para “evitar o caos”. As greves de 1917, analisadas por João Décio Passos e por Alexandre Samis em Clevelândia (2004), revelam que quando o movimento operário se auto-organizava, o partido tratava isso como “desvio pequeno-burguês”. A ironia é evidente: a autonomia anarquista amedronta porque ela prova que o partido não é necessário.

E essa verdade é insuportável para qualquer vanguarda. Quando as massas se movem sozinhas, o partido perde função, perde aura, perde poder. Não é por acaso que o PCB sempre tentou enquadrar a história das greves como resultado de sua suposta orientação, mesmo quando sequer existia. O pânico diante da autonomia vem de longe. Castoriadis, em Socialisme ou Barbarie, mostra que partidos marxistas tratam a auto-organização como ameaça à ordem interna, porque o surgimento espontâneo de inteligência coletiva desautoriza a casta dirigente. No Brasil, essa tendência foi ampliada pelo autoritarismo estatal: anarquistas foram deportados (a famosa “Lei Adolfo Gordo”), presos, torturados e silenciados. O partido, por sua vez, aprendeu rápido: onde não pode destruir, tenta controlar. Onde não pode controlar, tenta apagar da memória. A autonomia anarquista sempre foi tratada como heresia, porque ela expõe a mentira fundadora do partido: a de que o povo precisa de tutela para lutar.

A tática é antiga, e sua sofisticação é quase cômica: quando não se consegue destruir a autonomia, tenta-se comprá-la. Literalmente. A cooptação de lideranças anarquistas e sindicalistas autônomas pelo partido marxista é documentada ao longo de todo o século XX, tanto na Europa quanto na América Latina. Na Rússia pós-1917, analisada por Paul Avrich em The Russian Anarchists (1967), o marxismo oferecia cargos administrativos para anarquistas influentes, prometendo “influência real”, quando na verdade queria apenas neutralizar figuras que poderiam organizar resistência.

Na Espanha de 1936, como mostra Vernon Richards em Lessons of the Spanish Revolution, ministros da CNT que aceitaram integrar o governo republicano acabaram justificando medidas contra as próprias milícias autogeridas. No Brasil, Jacob Gorender em Combate nas Trevas (1987) descreve vários episódios nos anos 1950-60 em que quadros do PCB procuravam lideranças não alinhadas oferecendo cargos sindicais, assentos em comissões, verbas de “formação política” e até indicações para secretarias municipais – sempre com a mesma proposta: “vocês têm força, mas precisam de direção”. Essa cooptação não é erro, é método. É a forma mais eficiente de matar um movimento sem derramar sangue. Incorporar o dissidente transforma o conflito político em carreirismo. Castoriadis diz que partidos centralizados transformam opositores em funcionários. É a realização plena da oligarquia: absorver o que ameaça, domesticar o que resiste.

O mais perverso é que muitos aceitam acreditando que “poderão transformar por dentro”, quando o que acontece é o contrário: a máquina os transforma. O partido não oferece cargos por generosidade, mas por medo. Ele compra lideranças para esvaziar a revolta e proteger seu monopólio simbólico. E o resultado é sempre o mesmo: o movimento perde radicalidade, o partido ganha controle, o Estado respira aliviado.

Há um padrão quase teatral no comportamento dos partidos marxistas diante de revoltas autônomas: primeiro ignoram, depois atacam, e quando percebem que não conseguem controlar, tentam reescrever a origem. O que era espontâneo vira “expressão da linha justa”, o que era autônomo vira “reflexo da consciência amadurecida pela vanguarda”. Luxemburgo já descrevia essa mania em 1906: o partido odeia a espontaneidade porque ela quebra a hierarquia. Castoriadis reforça: partidos marxistas precisam monopolizar a explicação da história para manter autoridade. No Brasil, isso aparece de forma cristalina nos relatórios internos do PCB analisados por Gorender, onde eles afirmam que “a maturidade das massas em 1953” era fruto de sua orientação – apesar de terem sido pegos de surpresa pelas greves. Edilene Toledo mostra que, nas greves de 1917, o partido sequer existia, mas décadas depois quadros comunistas tentavam narrar aquele movimento como “proto-consciência proletária” causada pela futura vanguarda.

É quase uma paródia historiográfica. E o pior é que funciona, porque quem controla o jornal controla a memória. Michels explica isso de forma brutal: a direção partidária precisa controlar também o discurso para justificar por que deve permanecer no comando. A revolta, quando não pode ser destruída, vira troféu.

Não existe limite ético nessa apropriação simbólica: o partido reescreve a história para parecer indispensável. O que nasce fora dele é enxertado como se fosse filho legítimo. E assim, pouco a pouco, a imaginação popular se estreita. O povo luta, o partido leva o crédito. O partido recebe ministérios, o povo recebe repressão. É a velha alquimia burocrática: transformar energia social em capital político. Quando olhamos para esse padrão, fica evidente que não há aqui “erro tático”, mas a expressão natural da forma-partido. Ele vive de capturar aquilo que não criou.

Depois de toda a retórica revolucionária, o destino final do partido marxista sempre foi o mesmo: ocupar o Estado. Moshe Lewin em The Soviet Century mostra que, já em 1919, o partido marxista-bolchevique tinha como objetivo fundamental consolidar sua administração, não expandir a autogestão dos sovietes. Sheila Fitzpatrick, em Everyday Stalinism, revela como mobilizações autônomas eram tratadas como “desvios perigosos” que ameaçavam a ordem administrativa. Edward Hallett Carr, mesmo simpático à revolução, reconhece que o partido dissolveu sovietes independentes para garantir seu monopólio.

No Brasil, o padrão se repete: o PCdoB assume ministérios e secretarias em governos de conciliação (neoliberalismo progressista); o PCB, quando legalizado, atua como força moderadora; e quadros marxistas-leninistas se tornam gestores de políticas estatais. Nada disso é acidente. O partido precisa do Estado como plataforma de poder. E é por isso que tenta controlar revoltas, cooptar lideranças e reescrever a história: a revolução só interessa se produzir um Estado administrável por ele.

A autonomia, por outro lado, é indomesticável. E o Estado, seja burguês ou “popular”, não tolera indomesticáveis. No fim, a função do partido marxista é pacificar a revolta, não expandi-la. A revolução que nasce do povo é perigosa porque não tem dono; a revolução que nasce do partido é segura porque já vem com lugar definido no organograma. O ciclo se fecha aqui: autopreservação, medo da autonomia, cooptação, apropriação simbólica e, finalmente, estatização. O partido se torna aquilo que dizia combater. E quando isso acontece, a revolução – a verdadeira, aquela que emerge da vida comum – é a primeira vítima.

…………

Marighella foi importante, claro, mas nunca representou o marxismo-leninista brasileiro enquanto força histórica coerente. Ele representou sua exceção. E quando um movimento só consegue apresentar exceções como prova de sua vitalidade, isso já diz muito sobre a própria falência estrutural.

Marighella rompeu com o PCB justamente porque o partido era covarde, burocrático e submisso ao legalismo burguês. Ele denunciou o colaboracionismo, rompeu com a linha soviética, rejeitou a passividade frente ao golpe e escolheu a via da ação direta armada. Ou seja: tudo o que ele fez foi recusar o marxismo-leninismo realmente existente no Brasil. Carlos Marighella não é um produto do PCB. Ele é o resultado de sua falência. O PCB chamou sua postura de “aventurismo pequeno-burguês”, a mesma expressão que usavam contra anarquistas desde 1920. Quando alguém usa Marighella como trunfo do ML, está usando o exemplo de um dissidente que foi rejeitado, perseguido e expulso pelos próprios marxistas-leninistas. É quase irônico.

E os anarquistas? Morreram antes. Literalmente. Basta abrir a hemeroteca da Biblioteca Nacional e revisar os jornais entre 1906 e 1935: prisões, espancamentos, deportações em massa, destruição de sindicatos, censura à imprensa libertária, fechamento de escolas racionalistas. O movimento anarquista foi esmagado ainda na Primeira República, quando era majoritário no sindicalismo brasileiro. A repressão começou cinquenta anos antes de Marighella nascer para a luta política. A Coluna Prestes marchou em 1925; as Ligas de Resistência anarquistas já eram perseguidas desde 1909. O Estado tratou o anarquismo como inimigo interno muito antes da esquerda estatista sequer sonhar em existir. Marighella pôde pegar em armas na década de 1960 porque havia uma estrutura urbana, industrial e política que ainda permitia clandestinidade. Os anarquistas de 1910 enfrentaram o Exército no meio da rua, sem sigilo, sem apoio internacional, sem Cuba para treinar guerrilha, sem URSS para financiar.

Dizer “e os anarquistas?” como se eles “não tivessem lutado” é desconhecer completamente a história da Primeira República, das greves de 1917, da Insurreição Anarquista de 1918, das campanhas contra o trabalho infantil, das greves gerais em São Paulo, Rio e Rio Grande do Sul. Eles lutaram tanto que foram destruídos. A diferença é simples: enquanto o anarquismo foi exterminado por representar ameaça real ao Estado e ao capital, o marxismo-leninismo brasileiro foi gradualmente absorvido pela própria máquina estatal que dizia combater. É por isso que existe PCB legalizado, PCdoB governista e quadros ML ocupando ministérios. É por isso que você não encontra hoje uma “Organização Marighellista” viva, você encontra um partido adaptado.

A existência de Marighella honra a luta; a trajetória histórica dos MLs explica por que ele precisou romper com eles para lutar de verdade.

A.n.a.r.q.u.i.s.t.a.s.

agência de notícias anarquistas-ana

Canção sem letra:
assobio nos becos
desafia hinos de Estado.

Liberto Herrera

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