Clifford Harper, o poder das ilustrações anarquistas

Ao longo de muitas décadas de produção prolífica, as poderosas imagens de Clifford Harper (Chiswick, Londres, 1949) nos contam, juntas, uma história eloquente.

De Montserrat Álvarez

Recentemente, vi a foto de uma manifestação em Londres. Um grupo de manifestantes carregava uma faixa com um desenho de Clifford Harper chamado “Solidariedade”. Não é o primeiro nem o único caso de uso desses desenhos sem citar o autor, e geralmente sem saber disso. Talvez o instinto os conheça livres de lucro ou de reconhecimento. Sabe-se que o instinto não está errado. O reconhecimento, no entanto, é sempre justo.

Essas imagens poderosas começaram a aparecer em fanzines underground, cartazes e revistas anarquistas na década de 1970. O autor é autodidata, nascido em Chiswick em 1949, filho de cozinheira e carteiro, expulso da escola aos 13. Na década de 1960, tornou-se figura importante na cena dos squaters (ocupas) em Londres e, nas décadas seguintes, ilustrador para publicações radicais e também para jornais diários de grande circulação, notadamente o The Guardian, onde trabalhou de 1990 a 2014 e através do qual suas obras rapidamente se tornaram populares com um público mais amplo.

Uma das obras de Clifford Harper que ilustram esta página representa um sonho, o de outro possível mundo alternativo: seu título é “Sonho Alternativo”. Produzida em 1977 e publicada na edição 20 da revista Undercurrents, fundada por Godfrey Boyle, que desafiava os usos da tecnologia na sociedade moderna e defendia uma “ciência radical” para um futuro mais humano. No meio de um cenário sombrio, degradado por prisões, confrontos com a polícia, campos infestados de agrotoxinas, poluição, guerras, há uma estrada no final da qual o sol nasce vigorosamente, e ao lado da estrada uma placa de madeira nos recebe: Bem-vindos ao território libertado de Albion. “Bem-vindo à Terra Livre de Albion”.

O caminho para esse sonho, buscado, entre outras coisas, em comunas e ocupações, provou ser longo e difícil, cheio de obstáculos, confusões, inimigos abertos e falsos aliados. Harper já disse isso à sua maneira num dia de setembro de 1982, na entrevista memorável com Adam Cornford reunida no livro The Education of Desire. [Ilustrações Anarquistas de Clifford Harper], publicado em Londres em 1984:

 – Nas comunas e ocupações passavam hippies de classe média. Iam para a casa dos pais no fim de semana para tomar banho, lavar roupas e comer uma boa comida, e voltavam na segunda-feira de manhã para continuar lutando contra a ideologia dominante ou algo assim. Havia um que recebia um cheque semanal do pai, um milionário de Zurique. Ele me confessou em segredo. Era risível. Não sei onde estão esses desgraçados agora, mas tenho certeza de que nenhum deles está lutando para derrubar o Estado.

Existem várias fases no estilo gráfico de Clifford Harper. Desde a década de 1980, ele adquiriu uma força próxima de George Grosz ou Fernand Leger. Mas, como um todo, sua obra remete a uma tradição de xilogravura, a de Felix Vallotton e Frans Masereel e, também, de William Morris e Walter Crane. Só que as obras de Harper não são gravuras, mas desenhos feitos com caneta e tinta, que ele geralmente dá textura “raspando” o original: com orgulho de ser autodidata, Clifford Harper inventou a própria técnica.

Separadamente, a força de cada um desses desenhos difíceis, limpos de sentimentalismo, captura o olhar como um ímã. Ver vários juntos, por outro lado, adiciona algo misterioso. Sem saber, a mão seguiu um fio inconsciente ao longo de várias décadas e, hoje, todos esses desenhos nos contam uma história.

Uma história bela e desconfortável, ambientada em tempos implacáveis. Reconhecemos muitos dos protagonistas. Oscar Wilde, Kropotkin, Makhno, Emiliano Zapata, Durruti, Emma Goldman, Sacco e Vanzetti… Mas a maioria não tem nome. Lutam na Guerra Civil Espanhola e na Comuna de Paris, levantam as armas em motins, marcham nas ruas, resistem em greves, estão em navios piratas, em fábricas, nos campos, em gráficas, em tavernas, no fogo e barricadas de todas as revoltas.

É uma história de arados e rodovias, de enxadas de fazendeiros e fumaça de metrópoles, de minas de carvão e escritórios cinzentos. Isso acontece em vilarejos antigos de silêncio perigoso e no barulho e fúria das cidades modernas, enquanto gatos escalam paredes cheias de pichações punk nos cantos escuros do século XX. A mesma linha firme percorre perfeitamente tanto o mundo de hoje quanto o de ontem nas muitas obras dessa vasta galeria, porque a história que nos contam é tão antiga e nova quanto a humanidade.

Algumas ilustrações, especialmente as primeiras, são dinâmicas, com linhas diagonais violentas, cheias de movimento. Outras, as mais conhecidas, são sólidas, estáveis, com traços grossos como sulcos na terra, marcando traçado trágico ou momentos vibrantes de força e fraternidade. Outros traços são misteriosos. Na última, geralmente é crepúsculo ou noite. Às vezes, todas as pessoas parecem ter desaparecido e estamos completamente sozinhos no universo profundo e desabitado. Vemos o último casal, em intimidade sagrada, ou em uma comunhão silenciosa com a luz de uma vela. Há uma janela, um caminho que desaparece no horizonte, um pássaro que se afasta, uma saída de emergência impossível, a sombra da liberdade desejada e temida.

Fonte: https://www.abc.com.py/edicion-impresa/suplementos/cultural/2022/11/13/clifford-harper-la-potencia-de-la-grafica-anarquista/

Tradução > CF Puig

agência de notícias anarquistas-ana

Ilhotas boiando.
Sob um céu vasto e sereno
este mar tranqüilo.

Fanny Dupré

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