> Memória. Há 13 anos, a “ANA” divulgava…
Por detrás do futebol atual existem poderosíssimos interesses políticos e financeiros, mas também alteridades de cores, paixões e êxtases expressados num corpo livre de um menino ou menina com uma bola no pé, ou numa simples arquibancada. A seguir, Renato Ramos, militante da Federação Anarquista do Rio de Janeiro (FARJ), fala um pouco desse sentimento, ou Futebol. Boa leitura!
Agência de Notícias Anarquistas > Para começar a nossa conversa gostaria que você matasse uma curiosidade minha. É verdade que além de você fincar uma bandeira negra no gelo da Antártica, também cravou uma do Fluminense? (risos)
Renato Ramos < Com certeza! A bandeira do Fluminense foi a primeira de um clube carioca a tremular no continente antártico. Antes da viagem, peguei uma bandeira oficial com uma amiga de clube e enfiei na mochila. Imagina se eu ia perder essa chance?
Participei da equipe de geólogos da UFRJ, UnB e UNESP que, entre 22 de janeiro e 25 de fevereiro de 1999, pesquisou a região de Botany Bay, na Península Trinity, no que foi o primeiro acampamento do Programa Antártico Brasileiro em terras continentais antárticas.
O “dia histórico” ocorreu em uma linda manhã de sol, com um vento frio e forte vindo do sul, que retesava o pavilhão tricolor hasteado na antena do rádio do acampamento. O branco do gelo, as rochas escuras e um céu azul cristalino como pano de fundo ao verde, vermelho e branco da bandeira. Um espetáculo!
Mas a primeira bandeira de um time brasileiro a tremular no continente antártico foi a do Palmeiras, levada pelo Professor Rocha Campos, da USP, quando este foi à estação norte-americana Amundsen-Scott, que fica exatamente sobre o Pólo Sul.
ANA > Você não acha que é uma contradição você ser anarquista e torcer pelo Fluminense, um clube criado por (e de) aristocratas? Não seria mais libertário, simpático e coerente torcer pelo Vasco, o primeiro clube brasileiro a vencer o preconceito e aceitar pobres, operários e negros no time? A ter o primeiro presidente negro da história? Ter um estádio que foi usado muitas vezes para manifestações populares? (risos)
Renato < Quem não tem contradições, que atire a primeira pedra! De fato, essa paixão por um clube de futebol é algo contraditório, ainda mais para um anarquista. Mas as paixões sempre geram sentimentos e reações contraditórias. Repito as palavras do tricolor Nelson Rodrigues: “Meu sentimento clubístico é anterior ao sexo, anterior à memória”. No meu caso, toda minha família é tricolor e, desde 4 anos vou ao Maracanã. Primeiro com meu pai, depois com os amigos e hoje com minha filha. Além do mais, dois tios-avôs foram jogadores do Flu nos anos 20 e 30, ainda como amadores. Fui de torcida organizada, a Garra Tricolor, que em meados dos anos 80 chegou a ser a segunda maior do Flu. Minha formação como torcedor foi durante os áureos anos 70 e 80, quando fomos campeões estaduais 8 vezes e brasileiros em 70 e 84. Vi jogar craques como Flávio, Lula, Gérson, Rivelino, Paulo César Caju, Carlos Alberto Torres, Pintinho, Edinho, Cláudio Adão, Romerito, Assis, Branco e muitos outros. Bons tempos!
Bom, quanto as suas “provocações”, o Fluminense realmente foi fundado em 1902 por rapazes de famílias ricas, da mesma forma que o Botafogo e o América, ambos fundados em 1904, e o próprio Flamengo, que teve seu departamento de futebol fundado em 1912 após a saída de 9 jogadores que haviam sido campeões (invictos) pelo Flu no ano anterior. Portanto, todos estes grandes clubes do Rio tiveram uma origem aristocrática.
Em relação ao Vasco, você só deu bola fora. Vamos por partes. Os primeiros clubes a aceitarem pobres, operários e negros no Rio foram o Bangu e o Andaraí, clubes formados por operários das fábricas de tecidos. O Bangu, no primeiro campeonato carioca (1906), tinha um time quase todo formado por ingleses, funcionários da Cia. Industrial Progresso do Brasil. Aos poucos os operários da fábrica foram tomando o lugar dos gringos e, nos anos 10, já eram maioria absoluta. O primeiro craque negro do futebol carioca foi tecelão Luís Antônio, do Bangu, que pela sua habilidade rompeu barreiras, chegando a ser convocado para a seleção carioca (1916) e para a seleção brasileira (1919). O Andaraí fez ainda mais. Em 1915, venceu a 2a divisão e disputou com os ingleses do Rio Cricket o acesso para a 1ª. Venceu e fez os grandes serem obrigados a engolir um time de operários e negros na divisão principal. Portanto, seu Vasco nem de longe foi o primeiro time a aceitar pobres, operários e negros.
Agora, há uma questão muito importante em relação a esses clubes ligados às fábricas de tecidos, dentre os quais ainda podemos incluir o Carioca e o Confiança. Estes eram integralmente apoiados pela diretoria das fábricas, que utilizavam o futebol para distrair seus operários das péssimas condições de trabalho, das jornadas de 12 a 14 horas e dos salários miseráveis. Nos estatutos desses clubes, impostos pelos patrões, constavam artigos onde era proibida a discussão de assuntos políticos e religiosos entre os associados.
O Vasco, por sua vez, venceu a 2ª divisão em 1922 e subiu para a principal no ano seguinte. Chegou e ganhou o campeonato com um time formado por jogadores brancos, mestiços e negros, vindos do proletariado. Mas tinha um detalhe. O Vasco era a equipe dos riquíssimos comerciantes e empresários portugueses, como, aliás, o é até hoje. E esses portugueses, pragmáticos que eram, buscaram nos times de subúrbio os melhores jogadores, “empregando-os” como “funcionários” de suas casas comerciais. Quando os representantes dos outros clubes iam as firmas lusitanas procurar os “funcionários-jogadores”, estes sempre estavam realizando “serviços externos”, ou seja, treinando no campo da Rua Moraes e Silva, em São Cristóvão, sob o comando do técnico uruguaio Ramon Platero. Esse “amadorismo-marrom”, onde os jogadores recebiam salários, somado ao ressentimento de um time de pobres e negros ter sido campeão, fez com que os grandes clubes criassem uma outra Liga, da qual foi excluído o Vasco da Gama.
Mas, na minha opinião, o principal motivo que levou à exclusão do Vasco foi mesmo a “semiprofissionalização” de seus jogadores, pois, se fosse apenas por preconceito social e racismo (que certamente havia entre os outros 4 grandes), clubes como o Bangu, Andaraí, Mangueira, Vila Isabel, Carioca e outros, já teriam sido “ripados” do campeonato carioca anos antes.
E para não esquecer, o estádio do Vasco foi sim utilizado para manifestações populares. As manifestações oficiais de 1º de Maio durante o Estado Novo, onde Vargas era reverenciado pelos sindicatos amarelos e pelos trabalhadores embasbacados.
Recomendo para aqueles que gostam de futebol, a leitura do livro “Footballmania: Uma História Social do Futebol no Rio de Janeiro (1902-1938)”, escrito por Leonardo Affonso de Miranda Pereira e editado pela Nova Fronteira em 2000. É uma obra imprescindível para quem gosta deste tema e da qual tirei muitas das informações desta entrevista.
ANA > É, foram os portugueses do Vasco os primeiros a pagarem bichos aos jogadores por vitórias. (risos)
Renato < Eu já ouvi falar nisso. Parece que os comerciantes portugueses endinheirados pagavam prêmios por vitória aos jogadores cruz-maltinos, como forma de incentiva-los.
ANA > Por quê o Fluminense é conhecido como “pó de arroz”? É lenda que o clube não aceitava negros?
Renato < Foi devido a uma história engraçada e triste ao mesmo tempo. Em 1913, o jogador campeão pelo América, Carlos Alberto, que era mulato, transferiu-se para o Fluminense. Em um jogo do campeonato de 1914, um torcedor o xingou de “mulato pernóstico”. Ele, então, decidiu tomar uma decisão infeliz. Querendo se apresentar “de forma mais elegante”, passou pó-de-arroz na cara e entrou em campo. Com o decorrer do jogo, a maquiagem foi derretendo e, a torcida adversária percebendo o fato, começou a gritar “é pó-de-arroz, é pó-de-arroz” para o envergonhado Carlos Alberto. Com o tempo, a torcida do Fluminense assimilou o apelido, que ainda hoje acompanha o clube.
Não é lenda não. De fato, até meados dos anos 30, o Fluminense não teve nenhum jogador negro e pouquíssimos mestiços. Com a profissionalização, instituída em 1933, as coisas foram mudando e os negros ocuparam um lugar de destaque em todos os times. Para isso, contribuíram dois grandes jogadores negros: Leônidas da Silva, recentemente falecido, e Domingos da Guia.
ANA > Você concorda com a idéia de que o negro é mais talentoso no futebol que o branco?
Renato < Não, de forma nenhuma. O Pelé sim foi mais talentoso que todos os outros: brancos, negros, mestiços, amarelos, extraterrestres, etc. Meus ídolos futebolísticos de infância foram Rivelino e Edinho, e eu sofri durante anos com a categoria de craques como Zico, Roberto Dinamite, Leandro e outros. Há craques e perebas em todas as etnias. Bom, eu até hoje não vi nenhum oriental craque de bola, mas o motivo deve ser a falta de desenvolvimento do futebol naqueles países.
ANA > Eu discordo de você, onde tem negro jogando o futebol é muito mais técnico, vistoso. Pega um time africano e compara com um time oriental, ou mesmo europeu. A meu ver o futebol negro, notadamente o africano, é “libertariamente mais irresponsável” que o futebol branco oriental ou europeu, burocrático e sem fantasia. O problema que vejo é que o deus dinheiro já está chegando para aquelas bandas africanas, aí começam a estragar tudo. Outro vírus que está estragando o futebol africano são esses técnicos importados da Europa, que começam a engessar os jogadores com esquemas táticos. Mais uma coisa, você já viu jogador branco se destacar no basquete profissional americano? Só uma vez ou outra. Enfim, tenho muitas teses sobre esse assunto polêmico.
Renato < Pode até ser que algumas das seleções da África Negra joguem um futebol mais “moleque”, mas descompromissado com esquemas táticos rígidos. Mas isso está mudando rapidamente. Em nome da eficiência, as principais seleções africanas são dirigidas por técnicos europeus e a maior parte dos jogadores jogam no futebol europeu. A rigidez dos esquemas táticos exportados da Europa está matando aos poucos essa “irresponsabilidade” saudável dos jogadores africanos.
Mas veja só. A primeira Copa do Mundo que realmente acompanhei foi a de 1974. Todos ficaram encantados com aqueles “branquelos” de camisa laranja, que defendiam em bloco e atacavam como uns loucos, com quase todo o time, tocando bola como brasileiros, correndo como japoneses. Foi o “carrossel holandês”, talvez o esquema tático mais surpreendente, coletivo e solidário que já foi visto no futebol mundial. Foi uma pena a Holanda ter perdido aquela final para a Alemanha. Foi a vitória do futebol-força sobre o futebol-mágico, ainda que a Alemanha tivesse um cracaço como o Beckenbauer. Essa derrota já havia ocorrido na Copa de 50, com a trágica derrota do Brasil para a mediana seleção uruguaia em pleno Maracanã; em 54 quando o incrível time da Hungria perdeu para os mesmos alemães e, voltou a ocorrer em 1982, quando uma das melhores equipes brasileiras de todos os tempos foi eliminada pelo futebol defensivo e feio da Itália, que acabou campeã mundial. O futebol tem essas coisas, nem sempre o melhor time ou seleção ganha os grandes torneios. No basquete e no vôlei, nunca uma equipe muito inferior consegue ser campeã.
Agora, uma coisa você tem razão. O antes sem graça futebol inglês e francês (apesar do papelão nessa última Eurocopa) melhorou muitíssimo com a entrada de jogadores negros. A vitória francesa na Copa de 98 foi um “chapoletada” muito bem dada nos neo-fascistas xenófobos do Front National e outras excrescências do gênero. Era um time formado basicamente por filhos de imigrantes africanos, árabes, portugueses, etc.
Outro dia me falaram que na atual seleção holandesa, os brancos e os negros não se misturam, que há uma segregação consensual. Não duvido não. Será que isso ocorre também nas seleções inglesa e francesa?
ANA > Realmente Pelé era talentoso dentro de campo, mas fora de campo você já viu como o sujeito é metido em escândalos de corrupção, com as suas empresas? (risos)
Renato < O cara dentro de campo era o Pelé. Fora de campo é o Edson Arantes do Nascimento, que vive falando merda e dando “bola rolando”.
ANA > Os torcedores argentinos costumam dizer que o “Pelé é o rei do futebol, mas Maradona é o Deus”. O que você acha?
Renato < Cara, eu até vi o Pelé jogar no início dos anos 70, mas não me lembro de nada. Quem viu o Pelé jogar diz que não há a menor dúvida de que ele era muito melhor do que o “Pibe de Oro”. Muitos veteranos aqui no Rio dizem que o Zizinho ou o Garrincha estariam muito mais próximos do Pelé do que o Maradona.
Bueno, a questão do patriotismo argentino é algo meio exacerbada. Se não existisse o Maradona, eles certamente diriam que o Di Stefano era melhor que o Pelé. O Pelé foi o maior jogador do mundo para o mundo; o Maradona foi o melhor jogador do mundo para a Argentina e para muitos que não viram o Pelé jogar.
ANA > Como estamos falando sobre jogadores, um dia desses depois de várias doses etílicas, resolvi descobrir qual o jogador profissional que mais carregava em si, e nos campos de futebol, um espírito anárquico. Cheguei a conclusão que o jogador era o Higuita, aquele goleiro da seleção colombiana. O cara fora e de dentro de campo era extremamente generoso, criativo, cheio de ousadia… A jogada mais anárquica que vi na vida foi a dele, na Copa dos EUA, se não me engano, onde ele defendeu uma falta perto da área dando um coice pra frente. Aquilo foi louco! (risos)
Renato < O Higuita é uma figuraça mesmo. O lance ao qual você se refere foi num amistoso Inglaterra x Colômbia, no falecido estádio de Wembley, quando ele, quase na linha do gol, deixou a bola descendente passar sobre sua cabeça e a defendeu se jogando para frente e batendo nela com os calcanhares. Foi uma jogada épica, ousada e artística, coisa que nem peladeiro teria coragem de fazer. São brilhos cada vez mais raros desse maravilhoso futebol sul-americano, que se europeíza a cada dia.
ANA > Futebol é ópio ou paixão do povo brasileiro?
Renato < Futebol sempre foi ópio e paixão. Voltando no tempo, nos anos 10, vemos anarquistas como Lima Barreto, Pedro Matera, Astrojildo Pereira e outros escrevendo artigos atacando violentamente o futebol e o Carnaval pelo seu caráter alienante das classes trabalhadoras. Nessa década e na seguinte, houve no Rio uma verdadeira “febre do futebol”, quando foram criadas várias centenas de pequenos centros esportivos por toda a cidade, principalmente nos subúrbios. Esses pequenos clubes de identidade regional, ou seja, criados por moradores de um certo bairro ou mesmo rua, começaram a envolver um número cada vez maior de trabalhadores, que na cabeça dos sindicalistas revolucionários, deveriam estar nas suas associações de classe lutando por melhores condições de vida e pela Revolução Social. Vale ressaltar, também, a “febre do Carnaval”, que nessa mesma época fez surgir centenas de sociedades carnavalescas e blocos, muitas delas com estreitas ligações com os clubes de futebol. Pesquisando a Secção Carnavalesca do jornal A Pátria, no ano de 1923, listei quase 100 blocos e sociedades, algumas com nomes hilários como “Felismina minha Nega”, “Caprichosos da Estopa”, “Embaixadores do Agrião” e “Bloco Outro, Você e Eu”.
Apenas no início dos anos 20, vemos alguns sindicatos revolucionários tentando utilizar o futebol para aglutinar a classe trabalhadora. Em 1922, o jornal anarquista Luta Social, convocava os trabalhadores conscientes para um festival na Quinta da Boa Vista, onde haveria uma partida entre dois clubes pequenos. O diário anarquista A Voz do Povo, em 1920, divulgava os resultados dos jogos e, o jornal O Intransigente, estimulava os pequenos clubes de futebol.
Alguns times eminentemente proletários foram fundados, como o Operários FC (1916), o União Botafogo FC (1921) e o Primeiro de Maio FC (1919). Não sabemos se estes eram ligados a alguma associação de classe, mas não é de todo improvável.
Infelizmente, esses centros esportivos, em sua maioria, eram um fim em si mesmos, e não um meio de aglutinar os trabalhadores em prol de uma luta revolucionária, nem ao menos de reivindicações imediatas.
Os clubes de futebol, as sociedades carnavalescas e os cultos religiosos serviam, ao mesmo tempo, como válvula de escape e como anestésico para a dura rotina vivida pelos trabalhadores e suas famílias em suas parcas horas de lazer, ainda mais naquela época, quando o sábado era dia normal de trabalho.
A gradual evolução do futebol brasileiro, iniciada pela a conquista dos campeonatos sul-americanos em 1919 e 1922; o 3o lugar na Copa de 1938; o vice na Copa de 50 e os 5 títulos mundiais, tornaram o “nobre esporte bretão” algo extremamente arraigado na cultura do nosso povo. Mas os clubes continuam sendo a grande paixão. Quem já foi a um clássico (de preferência um Fla x Flu) de final de campeonato, com o estádio (de preferência o Maracanã) lotado com 120 mil pessoas, todo aquele colorido, aquela tensão antes e durante o jogo, a explosão de um gol, pode imaginar o que é isso.
ANA > Você encontra ainda fantasia, poesia, alma… nesse futebol profissional, cada vez mais burocrático e chato?
Renato < Para quem já viu jogar tantos craques, em uma época que os times tinham (imaginem só!) um ponta esquerda e um ponta direita de verdade, correndo e driblando, fica difícil encontrar fantasia no futebol. Há não muitos anos atrás, havia jogadores que passavam toda a carreira ou vários anos em um mesmo time (Garrincha, Pelé, Newton Santos, Zico, Roberto Dinamite, Edinho), que se identificavam com o clube e a torcida. Hoje o cara joga uma temporada no clube, se destaca e é imediatamente vendido para a Europa. É um negócio milionário, dirigido por empresários mafiosos e dirigentes corruptos.
Não é necessário ser anarquista para se revoltar com o que se tornou o grande negócio que é hoje o futebol, e o esporte de maneira geral. Mesmo torcedores sem qualquer conscientização política se revoltam com os cambalachos da CBF; com a roubalheira dos cartolas dos clubes e dos empresários do futebol; com jogadores enganadores que ganham salários milionários e não querem nada com o seu trabalho; com políticos que usam o futebol para se promover.
Mas o torcedor, de qualquer classe social ou nível de conscientização política, é um apaixonado pelo futebol em si, pela beleza deste esporte. É um apaixonado pelo seu clube e por suas glórias; pela sua torcida e pela rivalidade com as torcidas de outros clubes; pela seleção brasileira jogando uma Copa do Mundo. A maioria das pessoas, e eu me incluo, teve algumas das maiores explosões de alegria e algumas das mais profundas tristezas assistindo a um jogo de futebol.
Eu jamais me esquecerei da primeira vez que entrei no Maracanã, em um Flu x Vasco no já distante ano de 1969. Me lembro como se fosse hoje que, ao sair do túnel escuro no colo de minha mãe, vi aquele estádio ensolarado coberto de bandeiras coloridas e, quando o tricolor entrou em campo, aquela imensa nuvem de talco que se elevou no ar. Não me recordo nada do jogo em si, só sei que demos uma traulitada de 3 x 0 no “bacalhau”. Também ficarão gravados na minha memória os gols nos últimos minutos que nos deram ou tiraram títulos; as goleadas impostas ou sofridas; as jogadas incríveis de craques e pernas-de-pau.
Não adianta, quem gosta de futebol vê até jogo de Terceira Divisão, como eu fiz em 1999 indo a todos os jogos do Fluminense no Maracanã, e até viajando para Juiz de Fora para ver uma pelada contra o Moto Clube debaixo de chuva (pelo menos ganhamos de 1×0).
ANA > A meu ver é uma aberração um clube de futebol usar na sua camisa um patrocínio. Acho que descaracteriza, suja o uniforme. Mas o que acho mais estúpido é o que vem acontecendo agora com as seleções de futebol, onde a Nike impôs um padrão de uniforme para as equipes que patrocina. Acredito que isso também aconteça com outras marcas esportivas. O que pensas sobre isso?
Renato < O clube de futebol é uma empresa capitalista como qualquer outra. Só que, na maioria das vezes, é uma empresa capitalista mal gerida, com dirigentes amadores e/ou corruptos. Por serem mal geridos, dentro, obviamente, da ótica capitalista; por normalmente estarem atolados em dívidas tributárias e trabalhistas; pelo fato dos torcedores estarem se afastado dos estádios devido à violência e, conseqüentemente, as receitas cada vez mais diminuindo, os clubes sobrevivem através dos patrocínios e da grana do televisionamento dos jogos. Acho que o único clube que não tem patrocínio na camisa é o Barcelona, que se dá ao luxo de não macular seu uniforme por ter receitas suficientes vindas de um número imenso de sócios, de estádios sempre lotados e da venda de seus produtos no mundo inteiro.
Já soube que relançaram um uniforme do Flu igual ao utilizado em 1975-76, tempo da “máquina tricolor”, o time dos sonhos de minha infância. Não tem nenhum patrocinador, nem sequer a marca da empresa de material esportivo. Já encomendei a minha.
Sobre a Nike e a seleção brasileira, além dos uniformes serem feios e padronizados, há ainda a imposição que a Nike faz em relação a jogos amistosos internacionais, onde rola muita grana e politicagem. Eu gosto de ver a seleção brasileira em duas ocasiões: quando joga com a Argentina e em Copa do Mundo. Para as copas, guardo desde 1986 uma camisa amarelinha já toda gasta e um tanto apertada, que uso de 4 em 4 anos. Não quero camisa da Nike nem de graça, ainda mais depois da comprovação de superexploração de trabalhadores, homens, mulheres e crianças, na Ásia.
ANA > Na sua opinião quem hoje escreve melhor sobre futebol?
Renato < Apesar de ser torcedor daquele clube que recentemente perdeu a final para o Santo André em pleno Maracanã lotado (risos), o cronista que eu mais gosto atualmente é o Renato Maurício Prado, que escreve n´O Globo. Mas nada que se compare àquela maravilhosa parcialidade do tricolor Nelson Rodrigues, que assim dizia: “O ser humano é capaz de tudo, até de uma boa ação. Não é, porém, capaz da imparcialidade. Só acredito na isenção do sujeito que declarar que a própria mãe é vigarista.”
ANA > Eu acho que hoje quem melhor escreve sobre futebol no Brasil é o Tostão. Mas quem continua imbatível é o uruguaio Eduardo Galeano. Você já leu “Futebol – ao Sol e à Sombra”, dele? É magnífico! E nem precisa gostar de futebol para se deliciar com o livro. Além daquele livro que você citou, indicaria outros?
Renato < É verdade, o Tostão foi craque de bola e é craque em suas colunas. Há o Fernado Calazans, que também escreve umas crônicas legais. Ainda não li esse livro do Galeano. Boa dica.
Tem um livro que eu adoro que são as “Histórias de Sandro Moreyra”, editado pela Editora JB em 1985. São pequenos “causos” futebolísticos hilários que ele vivenciou (e inventou) ao longo de sua carreira de repórter. As principais vítimas eram o Garrincha e o Manga, goleiro do Botafogo nos anos 60.
Vai lá um dos “causos”: “No tempo do grande Santos, de Pelé, um fanático torcedor do Fluminense discutia com Chico Anísio tentando convence-lo de que seu time era tão poderoso quanto a campeoníssima equipe paulista. Ia comparando jogador por jogador, o tricolor sempre achando os seus melhores, até que chegaram a Pelé.
– Bem, quanto à camisa 10 não há discussão – disse o Chico Anísio.
– Sei não – respondeu o tricolor – O Joaquinzinho anda jogando um bolão…”
Recomendo também o livro “O Profeta Tricolor – Cem Anos de Fluminense” (Companhia das Letras, 2002), com mais de 80 crônicas maravilhosas de Nelson Rodrigues.
ANA > O que você acha da idéia do governo Lula em ajudar os clubes de futebol? Clubes esses que arrecadam milhões de dólares com venda de jogadores, não pagam INSS e outras benesses…
Renato < Eu acho exatamente a mesma coisa que a intenção do governo Lula em dar dinheiro público para patrocinar as campanhas dos partidos políticos. Um absurdo!
ANA > E da idéia do Ricardo Teixeira de demolir o Maracanã e construir outro estádio mais moderno? Recentemente eu li na Folha de S. Paulo, um artigo que dizia que existe uma tentativa do “sistema futebolístico” de elitizar o futebol, de transformá-lo em programa de endinheirados. E que o povo assista pela televisão, aliás, daqui a pouco só vamos assistir futebol pela tevê paga. O que acha disso…
Renato < Pois é, demolir e construir outro estádio moderníssimo, luxuoso, com shopping centers, camarotes para os ricos e restaurantes caros. Muitas obras, um monte de empreiteiras, muita grana rolando e o Ricardo Teixeira e os políticos “enchendo a burra”. Eu sou contra a demolição do Maraca até por questões sentimentais. Já não gostei nem quando colocaram aqueles assentos de plástico, o que diminuiu a capacidade do “maior do mundo”. Preferia a arquibancada de cimento, o calor humano era maior.
ANA > É incrível. Historicamente os fascistas e os políticos em geral sempre usaram o futebol para manipular a população. Esses caras não entendem nada de futebol, mas de multidões e poder são craques. Hitler, Franco, Mussolini, Pinochet, Figueiredo e outros mais foram mestres nessa manipulação. Enfim, você viu o que o governador de Minas Gerais, Aécio Neves, fez no último jogo do Brasil em Belo Horizonte contra a Argentina, onde colocou para dentro do estádio milhares de endinheirados, e distribuindo “santinhos” com o seu nome? Parece que em Portugal, com essa Eurocopa, os políticos estão tirando muito proveito também.
Renato < O Império Romano já manipulava a população através do “Panen et circencis” (pão e circo). Botavam aqueles gladiadores se matando papa distrair o povão. Os ditadores também fizeram isso. As vezes se deram muito mal, como Hitler que, ao tentar provar a supremacia da raça ariana nas Olimpíadas de 1936, foi humilhado pelo velocista negro norte-americano Jesse Owens. Cuba e, antes dela, a URSS, utiliza o esporte como propaganda do regime. No Brasil, a ditadura militar tentou capitalizar em cima da conquista do tricampeonato. Quem não se lembra da seleção sendo recebida em Brasília pelo general Médici. Você já disse, os jogos da seleção na atual eliminatória para a Copa de 2006 são distribuídos pelo país por critérios politiqueiros. É o toma lá, dá cá. Quem não se lembra do Ricardo Teixeira chorando na CPI do futebol quando suas falcatruas afloravam. E o que aconteceu com ele? Nada! Ele é muito bem protegido pela FIFA, pela Nike e pelos políticos.
ANA > Uma coisa que me intriga, é porque a relação das mulheres com o futebol é extremamente diferente, tanto no jogar como no torcer. Já conversei com algumas mulheres anarquistas sobre isso, e elas dizem que o futebol é uma coisa machista, que só podia ser coisa de homem mesmo. O que você pensa sobre isso?
Renato < De fato, muitas mulheres não gostam de futebol. Talvez achem o esporte machista porque, no Brasil, o futebol de fato é um esporte masculino, desde a infância. Mas nos Estados Unidos, as meninas jogam bola desde pequenas, e os esportes considerados “de homem” são o baseball, o hockey e o basquete.
Mas conheço muitas mulheres que adoram futebol, que vão a estádio e curtem muito. Minha filha é tricolor “roxa” e adora ir ao Maraca gritar – “Juiz, ladrão, porrada é solução!”
ANA > Você não acha que um dos motivos do futebol ser tão burocrático hoje se deve ao fato da maioria dos jogadores ter saído de “escolinhas de futebol”, diferente daquela época romântica onde um “camisa 10” era quase um ser sagrado, inteligente, imaginativo, em que aprendia a jogar nos terrenos baldios, nas praças, nas ruas, e também da presença de jogadores da classe média?
Renato < Não tenho a menor dúvida. Na maioria das escolinhas de futebol e nas divisões de base dos clubes, a criatividade, a ousadia e a liberdade das crianças é gradualmente esmagada e substituída pela ditadura da disciplina tática e do preparo físico. Os terrenos baldios, que foram a verdadeira escola dos maiores craques brasileiros, estão acabando por conta do crescimento desenfreado das cidades, da especulação imobiliária e a própria violência urbana, que muitas vezes impede a criança de ir para a rua bater sua bolinha.
Sempre houve no futebol uma minoria de jogadores oriundos da classe média, sendo que muitos deles se destacaram, como Rivelino, Tostão, Zico, Edinho, Sócrates, Raí, Leonardo, Ricardo Gomes, Bebeto; e alguns se destacam como o Diego, o Kaká, o Roger, entre outros.
ANA > É notório que os jogadores de hoje são tapados politicamente. Eu não conheço nenhum jogador brasileiro que tenha posições políticas “radicais”, que usem da sua fama para promover alguma luta. Mas o que você acha dessa babaquice de certos jogadores endinheirados que doam cestas básicas para comunidades carentes? (risos)
Renato < Radicais eu também nunca vi, mas houve alguns com maior consciência política, como o Sócrates, o Bobô, o Afonsinho, o … É, contam-se nos dedos. Alguns jogadores que vieram de famílias pobres e que conseguiram ficar ricos com o futebol, desenvolvem projetos interessantes em comunidades carentes, com prática esportiva, alimentação, reforço escolar, atendimento médico e odontológico, etc. É bem melhor do que os que fazem caridade para aparecer em foto de revista de celebridades ou para apoiar políticos safados.
ANA > Quando você participava de torcida organizada, recebia benesses dos dirigentes do fluminense, tipo ingressos de graça, ônibus, como acontece hoje? Porra, hoje até torcida organizada tem patrocínio? (risos)
Renato < Cara, eu nunca recebi ingresso quando era da Garra Tricolor. Esse lance de “torcedor profissional” ainda não era algo muito consolidado nos anos 80. Os dirigentes até deviam dar ingressos e alguma ajuda de custo para as excursões, mas nada comparável a hoje em dia, quando as torcidas organizadas se tornaram verdadeiras tropas de choque a serviço de dirigentes, de políticos e dos torcedores profissionais. A galera era bacana, não era de briga e a torcida se desfez quando o pessoal foi se formando na Universidade, arrumando trabalho, essas coisas. Ainda hoje os remanescentes da velha Garra se encontram às vezes na “arquiba” e assistem ao jogos juntos. Agora mais carecas, barrigudos e levando xs filhxs.
Vou te contar uma coisa. Havia no Vasco há alguns anos atrás uma torcida organizada chamada “Anarquia”. Era até grandinha e tinha uma enormes bandeiras negras com o “a na bola”, que eu gostava de ver entrar no Maracanã. Essa torcida e algumas outras menores foram incorporadas na marra pela “Torcida Jovem do Vasco”, que impôs pela força uma hegemonia nas arquibancadas cruz-maltinas. E nunca mais os bandeirões com o “a na bola” tremularam no Maracanã.
Hoje, as torcidas organizadas são verdadeiras gangues, com uma hierarquia muito bem definida e rígida, cujo objetivo principal não é mais incentivar o clube, mas sim sair na porrada com as torcidas de outros clubes e, as vezes, com torcidas até do mesmo clube, como ocorre com as do Flamengo. Cada uma delas tem uma “elite” com algum poder dentro dos clubes e que se sustenta com a grana da venda dos ingressos dados pelos cartolas e/ou políticos. A maioria dos membros dessas grandes torcidas organizadas tem mais afinidade e amor pela própria torcida organizada do que pelo clube de futebol. São estas uma das principais responsáveis pelo afastamento dos torcedores dos estádios, visto que ninguém gosta colocar a vida em risco apenas por usar o uniforme de um clube.
ANA > Você tem alguma história curiosa, engraçada para contar sobre futebol?
Renato < Tenho algumas. Em 1980, obriguei meu pai a ir comigo à estréia do Cláudio Adão no Flu, em um jogo contra o Serrano FC, em Petrópolis. O pequeno estádio Atílio Marotti completamente lotado e, na hora que o Flu entrou em campo eu me levantei. Um segundo depois estourou um morteiro onde eu estava sentado e os fragmentos atingiram a barriga do meu pai que havia continuado sentado, causando-lhe algumas queimaduras. Ele se levantou “puto nas calças” e disse: – Vamos embora! Eu olhei prá cara dele e disse que não saía de lá nem morto e que o esperaria no alambrado do campo até ele voltar da farmácia. No intervalo ele retornou com os curativos e eu todo feliz com o 3 gols que o Cláudio Adão havia marcado disse: – Agora sim podemos ir.
Entre 1983 e 1984, havia passado uns 3 meses nos Estados Unidos durante as férias, fazendo um curso de inglês. Saí de lá no inverno e cheguei no Rio em fevereiro durante um dos verões mais quentes do século XX. Cheguei e, no dia seguinte, estava no Maracanã para um jogo do Flu contra o Santos, pela 1ª fase do Brasileirão (que acabamos campeões). Tive a infeliz idéia de sentar na parte onde o sol batia, para “tirar o mofo” da temporada no hemisfério norte. O cimento da “arquiba” devia estar com mais de 60ºC de temperatura e eu lá, suando por todos os poros. Resultados: tive um princípio de insolação, queimei o traseiro de ficar dois dias sem poder sentar direito e, para completar, perdemos o jogo por 1 x 0.
ANA > Bem, gostei desse papo. O futebol como à vida carregam muitos mistérios. É coisa de alma, emoção, não dá para explicar sentimentos. Valeu Renato! Se quiser “dar algum lançamento”, fique a vontade…
Renato < Já falei demais. Minhas saudações libertárias e tricolores para todxs aqueles/as que tiveram a paciência de ler esta entrevista até o final. Mas podem ter a certeza de que foi o maior prazer faze-la, visto que reuniu dois temas que adoro: Anarquismo e Futebol.
e-mail: farj@riseup.net
agência de notícias anarquistas – ana
– como a senhora explicaria a um menino o que é a felicidade?
não explicaria – respondeu.
daria uma bola para que jogasse.
(pergunta feita por um jornalista à teóloga alemã Dorothee Solle)
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!