Em seu ensaio “Amor y anarquismo”, a socióloga Laura Fernández Cordero revisa as experiências anarquistas que faz mais de um século enfrentaram os protocolos de intimidade e família fixados pelo Estado e a Igreja para contrapô-los com as atuais discussões em torno ao matrimônio, a identidade sexual e a violência de gênero.
A efervescência anarquista que acompanhou o surgimento do movimento obreiro na Argentina durante 1890 e 1930 não se limitou a discutir os métodos da greve e a iniquidade de classes: também houve margem para propor debates sobre a crise do matrimônio burguês – sob a convicção de que era uma instituição que implicava graus de submissão e prostituição – e a conveniência de promover uma sexualidade sem restrições.
Na realidade, o ideário de amor livre e mulheres emancipadas – outro dos bastiões do discurso anarquista – manteve um núcleo subversivo mas não conseguiu escapar do sinal dos tempos e terminou preso no paradoxo da liberdade sexual ao mesmo tempo que rechaçava a homossexualidade e não reconhecia para o gênero feminino um modelo alternativo à maternidade.
Em “Amor y anarquismo” (Siglo XXI Editores), Laura Fernández Cordero explora estas contradições e traça um percurso por algumas experiências que, submersas na promessa de uma revolução social em marcha, buscaram reformular a noção de amor e erotismo – como o evidenciam as situações de sexo múltiplo que aconteceram em uma colônia anarquista no Brasil – ao mesmo tempo que denunciavam a sequência de violência nas fábricas e no âmbito doméstico. Eram os anos de “a Patagônia trágica”.
Socióloga e pesquisadora do CONICET, Fernández Cordero coordena atualmente o programa de Memórias políticas feministas e sexo genéricas que leva adiante o Centro de Documentação e Pesquisa da Cultura de Esquerdas (CeDin) da Universidade de San Martín.
Télam: Como se explicam os lemas de amor livre levantados por agrupações anarquistas que ao mesmo tempo combatiam a homossexualidade?
Laura Fernández Cordero: O livro se aprofunda no anarquismo mas seus temas, como a preocupação pela sexualidade ou o lugar da mulher não são exclusivos deste movimento, mas são compartilhados por muitas expressões libertárias utopistas e emancipatórias. É certo: o anarquismo promovia o amor livre mas ao mesmo tempo condenava a homossexualidade. Igualmente o anarquismo dialoga e discute com um contexto. E é assim como compartilha essa marca de época que se visibiliza no acento heterossexual e o combate da homossexualidade como uma aberração. O século XX é o momento no qual se constrói a noção de que o homossexual é uma pessoa e está orgulhoso desta identidade, enquanto que entre o XIX e as primeiras décadas do XX a homossexualidade estava atravessada pela ideia de enfermidade. Isso se evidencia também na utilização do vocabulário para referir-se aos homossexuais: sodomitas, pederastas, uranistas…
T: Que outras marcas de época registra o pensamento anarquista?
L.F.C.: Gostaria de ter detectado que o anarquismo fosse libertário em todos os temas. No entanto, não foi isso o que encontrei ao longo da pesquisa, na qual além da condenação à homossexualidade, aparecem também viés moralistas no discurso de algumas mulheres. Um dos paradoxos do anarquismo destes anos é que se dá um discurso de liberdade sexual em um contexto onde há pouco desenvolvimento dos métodos anticonceptivos e onde o aborto está criminalizado. Por outro lado há uma preocupação pela saúde antes da questão da liberdade sexual, que leva a um processo de forte medicalização. Tanto é assim que a Argentina tem até 1936 uma lei de psicoprofilaxia. Estas coisas marcam todo o tempo a tensão entre o ideário da liberdade sexual e as condições de possibilidade para exercê-la.
T: Nessa época era mais difícil agitar bandeiras sobre a emancipação da mulher, diferentemente das épocas atuais nas quais recrudesceu a violência de gênero?
L.F.C.: Não posso deixar de interpor meu olhar de socióloga para perguntar-me onde estão as cifras que permitam falar de um crescimento da violência de gênero através do tempo, antes que de uma visibilidade de uma problemática que já estava presente. Creio que há um componente de recrudescimento, mas também é a visibilidade do tema a que parece gerar uma leitura distinta, como de fenômeno novo. Isto tem o agravante de certas hipóteses que sustentam que a violência cresce porque nós mulheres nos empoderamos, quer dizer, parece que a culpa sempre é nossa.
T: Os lemas de liberação sexual defendidas pelo anarquismo conservam algo de seu substrato subversivo?
L.F.C.: O que não envelheceu esse slogan que tem as anarquistas de “anarquia, liberdade e as mulheres a esfregar”. Creio que o trabalho doméstico reverbera como uma assinatura pendente. E também sobrevive essa tensão entre a teoria do amor livre e o fato de encontrarem-se os varões com mulheres desejantes. Quanto se bancam hoje os homens a uma mulher desejante, que é parte do discurso que eles mesmos propagam? E isso leva a outra questão: quanto se banca hoje o varão reconhecer-se no lugar do opressor? Toda essa questão da politização do lar foi em seu momento muito instalada pelo anarquismo e outros movimentos. Os anarquistas manifestam muito cedo isto de que não haverá uma sociedade nova se não podemos pensar as formas do amor e a família, claro que com os limites que marcavam a época. Outro aspecto que hoje se mantêm tem que ver com a maneira de posicionar as mulheres: antes de tudo são mães. O anarquismo, nesse sentido, é fortemente maternalista.
T: Em que medida a discussão sobre o matrimônio burguês e a monogamia pode dissociar-se da matriz capitalista?
L.F.C.: O ideário básico propõe que o matrimônio é uma instituição capitalista, burguesa, que organiza os afetos, a sexualidade, a paternidade, a maternidade e a herança. Há no entanto outras vozes dentro do anarquismo que propõem a possibilidade de construir famílias libertárias dentro dos limites do capitalismo. O mesmo no amor livre, onde se propõem modelos alternativos que hoje se poderiam equiparar com o que se chama poli amor. Todos os experimentos desenvolvidos pelos anarquistas demonstram que não resulta tão simples tomar distância do capitalismo. Nossa sociedade está muito baseada em sistemas de parentesco e em alianças matrimoniais, incentivadas inclusive pelo Código Civil que se aprovou recentemente.
Tradução > Sol de Abril
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