Futebol e Antifascismo

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As arquibancadas de futebol são espaços de disputa entre torcidas de clubes rivais e no interior de uma mesma torcida. O aparecimento das torcidas organizadas acabou, sobretudo, nos chamados clássicos com a possibilidade de convivência entre torcedores de clubes distintos. Em alguns estados, como São Paulo, nem mesmo bandeiras são admitidas.

As torcidas organizadas (TOs) ocupam lugares reservados, pré-definidos por acordos feitos entre seus líderes, polícias estatais ou privadas, governantes de clubes e os administradores dos estádios. Fazem das partidas um espetáculo com suas bandeiras, faixas, coreografias e “gritos de guerra”. Seus líderes participam da política do clube e negociam apoio às forças interessadas no governo do time pelo qual torcem. Fazem parte do jogo entre situação e oposição que faz funcionar a política interna dos clubes.

As TOs são expressão do que há de mais desprezível no futebol. Só para citar um ou outro caso, a torcida organizada do Sport Clube Corinthians, o “time da democracia”, escreveu em letras garrafais “viado aqui não” em referência a um de seus ídolos que publicou uma foto onde dava um beijo na boca de outro homem; a torcida do São Paulo Futebol Clube, por muito tempo não gritou o nome de um de seus jogadores por ele, supostamente, ser gay. Há também referências diretas ao fascismo, como em um bar propriedade de uma grande organizada da Sociedade Esportiva Palmeiras, onde estão pendurados na parede, em meio a pôsteres de times campeões, uma foto do ditador Benito Mussolini, assim como uma frase de sua autoria.

O “Duce”, como era conhecido Mussolini, também gostava de futebol e torcia para a “Società Sportiva Lazio”. Os ultras da Lazio (como são conhecidas as torcidas organizadas da Europa) amam o fascismo e o nazismo.

Em 1998, em partida contra a Roma, que tem um grande número de torcedores judeus, levaram ao campo a faixa com o seguinte dizeres: “Auschwitz é sua pátria, o forno sua casa”.

Na mesma partida exibiram outra faixa com a inscrição: “Deus está conosco”, em deferência à frase estampada no cinto da farda do exército nazista.

Mais recentemente, os ultras fizeram uma montagem de Anne Frank com a camisa da Roma e espalharam os adesivos pelo estádio antes do clássico. Entre seus gritos de guerra favoritos estão o “Duce, Duce”, entoando o hino fascista all’ armi.

Entre os jogadores, seu maior ídolo é o meio campista Paoli Di Canio.

Di Canio fez parte dos ultras da Lazio e entre suas tatuagens, uma águia fascista cobre suas costas, e em seu braço está escrito Duce. Di Canio também, por diversas vezes, comemorou suas vitórias fazendo a saudação nazista para sua torcida. Fato esse que lhe rendeu algumas multas, mas que não impediu que, em 2001, ganhasse o prêmio “fair-play da FIFA”.

O prêmio, concedido a “todas as pessoas ou entidades que demonstraram ou fomentaram uma excelente conduta ou atividade desportiva profissional”, foi dado a Di Canio enquanto atuava no West Ham da Inglaterra, quando, durante uma partida contra o Everton, deixou de fazer um gol para que o goleiro adversário recebesse atendimento médico.

O prêmio demonstra a tolerância com o fascismo da instituição máxima do futebol.

Um jogador brasileiro, ao ser questionado sobre como era para ele jogar em um clube com uma torcida explicitamente fascista, disse que “esse tipo de coisa não chegava até ele” e que a única coisa que compreendia eram as imitações de macaco quando um jogador negro adversário pegava na bola, mas que isso era fato comum em toda a Europa.

Entretanto, cresce o número de torcidas antifascistas no futebol brasileiro.

Influenciadas por torcidas europeias como a Brigate Autonome Livornesi, do Livorno (Italia), a Bukaneros, do Rayo Vallecano (Espanha) e os torcedores do St. Pauli (Alemanha), elas se colocam contra a “modernização do futebol” defendendo o barateamento dos ingressos, o fim dos gritos de guerra contra gays, negros, imigrantes e, fundamentalmente, a perspectiva de que o verdadeiro inimigo não é o adversário, mas sim as “confederações, Polícia Militar e Ministério Público, (…) nosso enfrentamento é contra o capital”, como afirmou em uma reportagem uma integrante da Palmeiras Anti-Fascista.

Além do Palmeiras, clubes como ABC-RN, América-RN, Atlético Mineiro, Bangu, Botafogo-RJ, Botafogo-SP, Corinthians, CRB, Cruzeiro, Ferroviário-CE, Flamengo, Fluminense, Fortaleza, Grêmio, Guarani-SP, Internacional, Joinville, Londrina, Náutico, Paysandu, Remo, Santa Cruz, Santos, São José-SP, São Paulo, Vasco e Vitória possuem torcidas declaradamente antifascistas.

Essas torcidas corajosas combatem as tradicionais violências levadas a cabo pelas torcidas organizadas.

Se o futebol ainda dá sobrevida ao intolerável fascismo do século XX em suas torcidas, o desafio hoje, para quem ainda vive a associação entre futebol e liberdade, é criar espaço para a explosão da incontável revolta da paixão pela peleja em meio a tantos professores, dirigentes, especialistas, bancos de dados, câmeras mil, interferências, aferições, eficiências e eficácias que têm transformado o jogo em um cálculo racional, que faz do jogador um executor tático e, o torcedor, um consumidor participativo que, no máximo, vai reclamar seus direitos num tribunal.

A recente irrupção de torcidas antifascistas é vital para combater o que há de terrível nos estádios de futebol. Todavia, para ampliar e intensificar as experimentações de liberdade, é preciso retomar uma outra relação, mais radical. A coexistência entre duas pelejas prazerosas: futebol e anarquia.

Futebol e anarquia

Em maio de 1998, há exatos vinte anos, em entrevista concedida à revista Utopia, Jaime Cubero contou como descobriu o anarquismo por meio das “peladas”, pelejas que aconteciam e ainda acontecem livremente, quase sempre sem juízes, nos campinhos espalhados pelos quatro cantos do Brasil.

Nascido em Jundiaí, 1927, Cubero mudou-se para a cidade de São Paulo em 1936, ano da revolução espanhola, momento da explosão de um dos maiores acontecimentos libertários do século XX e que contou com as atividades de Buenaventura Durrutti, anarquista apaixonado por futebol. Do início de sua chegada à cidade de São Paulo recordou: “eu tinha um vizinho espanhol que era anarquista e os filhos dele conviviam conosco (…) Esse meu amigo se chamava Liberto”. Ao lado de Liberto — filho de José Liberto, amigo do anarquista Florentino de Carvalho —, aos onze anos de idade, depois das longas jornadas de trabalho numa fábrica de calçados, Cubero estudava trechos de textos redigidos por anarquistas.

Mais adiante, no início da década de 1940, a dupla de ataque que cresceu no Jardim Bertioga, em São Paulo, seguiu impossível. Depois de inventarem, em 1942, o Centro Juvenil de Estudos Sociais, em 1945, na festa de celebração da união de Liberto e Aurora, irmã de Cubero, ambos falaram abertamente em favor do amor libertário. Foi assim que, presente à comemoração, animado pelas considerações, Edgar Leuenroth, então notório militante libertário, inventor do jornal A Plebe, finalmente chamou Cubero para participar dos encontros do Centro de Cultura Social de São Paulo (CCS-SP).

A entrevista de Cubero, na qual relata sua chegada à anarquia, expõe que ainda há muito a se investigar e escrever sobre a relação entre futebol e a revolta libertária.

O Bangu Atlético Clube, fundado em 1904, no Rio de Janeiro, é considerado por muitos historiadores como uma equipe tradicionalmente operária (fato contestado por anarquistas, visto que a agremiação foi criada por um proprietário, o inglês Andrew Procter); pouco se sabe ainda sobre as resistências dos trabalhadores libertários em vestir a camisa de clubes financiados por patrões. E há muito pouco registro sobre a história de clubes como o argentino Martires de Chicago, homenagem aos militantes libertários que morreram executados pelo Estado em Haymarket, início de maio de 1886, data que, apesar das atuais solenidades estéreis organizadas por partidos e sindicatos, ainda permanece rememorada planetariamente como dia da afirmação da luta anarquista contra o Estado e os proprietários.

Hoje, diante da salutar ampliação das torcidas antifascistas, é preciso lembrar a intensa relação entre anarquismo e antifascismo.

Em breve texto, Edgar Leuenroth, depois de rememorar que os combates contra os fascistas fizeram com que inúmeros libertários fossem presos, enviados a campos de concentração e executados — “assim foi na Itália e na Alemanha, em Portugal, na Espanha, na Argentina, e assim aconteceu onde quer que o fascismo tenha aparecido” —, e diante dos acontecimentos no Brasil, arrematou: “recorrendo-se ao noticiário dos diários, folheando-se as coleções da imprensa libertária, ter-se-á conhecimento dos esforços que os anarquistas vem desenvolvendo, ininterruptamente, na campanha antifascista. Nessa luta continuam empenhados os anarquistas (…) Quando constituía perigo, quando era crime combater o fascismo, os libertários jamais interromperam a campanha contra esse elemento liberticida, aqui representado pelo integralismo”.

Conhecido como “A revoada dos galinhas-verdes”, um episódio da história de combates anarquistas contra o fascismo, ocorrido em 1934, na Praça da Sé, merece ser relembrado. Ao saberem da organização de uma marcha integralista marcada para o centro da cidade, milhares de militantes, em especial, anarquistas da Federação Operária de São Paulo, entre eles Edgar Leuenroth, compareceram ao local. A presença maciça dos libertários fez com que os integralistas abandonassem a marcha. Muitos deles fugiram correndo, deixando para trás, no chão, suas camisas verdes, uniforme integralista.

Diante da atual proliferação do termo antifascista, hoje usado até mesmo por líderes de partidos políticos que por longo período perseguiram libertários, é fundamental retomar sua precisão para os anarquistas. Para além de sublinhar a importância do antifascismo, Leuenroth afirmava que aos anarquistas não interessam os grupos que tenham somente um interesse transitório, político, na luta antifascista, visando “apenas arredá-lo do caminho que devem percorrer em busca do poder”.

Em outras palavras, antifascismo para os anarquistas vibra somente se intensificado por uma atitude antipolítica. O jogo para os libertários é outro.

Um drible

Contam-se muitas histórias sobre futebol e anarquia. No Brasil, o anarquista Roberto Freire, o Bigode, a partir da coexistência e das conversas com Jaime Cubero, nos anos 1980 e 1990, descreveu Liberto em seu Os cúmplices. “Liberto tinha um rosto de traços fortes, pela clara e algumas sardas. Cabelos quase loiros e longos, que lhe caíam sobre a testa. O sorriso era aberto, mostrando dentes fortes e grandes através dos lábios grossos. Seu pai, um espanhol, trabalhava numa fábrica de sapatos da Mooca e moravam na região, no bairro Jardim Bertioga (…) Além do anarquismo, apaixonou-se também pelo futebol. Mas tranquilizou o pai, afirmando ser o futebol um jogo bastante autogestivo, pelo menos o de várzea, que só se joga por amor e por pura solidariedade”. Atualmente,

Em O curto verão da anarquia, Hans Magnuz Enzensberger registrou a deliciosa história, episódio infame da finta, do drible aplicado na polícia pelo anarquista Buenaventura Durrutti, libertário que, hoje, estampa a camisa do “Radical Contra Futebol Clube”, equipe inventada no Rio de Janeiro por amantes da peleja. Junto com Ascaso, em meados da década de 1920, com a cabeça a prêmio, Durrutti escapou de Buenos Aires disfarçando-se entre os passageiros da primeira classe de um navio que deixava a capital da Argentina. Contudo, logo chamou a atenção dos demais, visto que não tirava o chapéu para entrar no refeitório e tampouco utilizava talheres para descascar frutas. Ascaso então o avisou:

“Tome cuidado, eles já estão de olho em você. Estão tramando alguma coisa. Precisamos inventar uma história. Vamos dizer que somos artistas!

Já sei! Vamos dizer que somos atletas. Astros do futebol basco!

E assim agiram, como se fossem jogadores, uma ideia fantástica. Os passageiros caíram na história. No desembarque, a terceira classe naturalmente teve que passar pelo pente fino, mas na primeira exigiram apenas passaporte, carimbaram-no e devolveram com um ‘por aqui, senhor’. Logo eles estavam fora do navio”.

A referência ao futebol basco não é fortuita, visto que, nos anos 1920 e 1930, ao lado do Barcelona, o Atlético de Bilbao era a grande força do futebol praticado em território espanhol. Após a guerra devorar a revolução, a partir do início da década de 1940, o Real Madrid, time do Estado, impulsionado pelo general Franco e por seu assecla, Santiago Bernabéu, então oficial do exército e presidente do clube, pouco a pouco, tornou-se um dos maiores campeões espanhóis e do mundo.

A virada

Futebol é paixão e liberdade! Futebol é desmesura e revolta! Futebol é anarquia!

Hoje, o futebol está reduzido a um imenso empreendimento lucrativo em um mercado que movimenta milhões e produz a disseminação da suposta conduta correta.

Isso sufocará o que é próprio dele: a inventividade, atualmente reduzida a uma tecnologia de produto construído por uma elite de milionários proprietários, gestores, técnicos e jogadores sobre um contingente cada vez mais subordinado a condutas de consentimento aos governos da ordem e orquestrado em exibições nos estádios para elites endinheiradas e torcidas organizadas.

Às crianças e aos jovens pauperizados, resta ver o jogo na televisão do boteco ou pelo “gato” em algumas residências. O futebol, aos poucos, volta a ser uma empresa capitalista para diversão de grã-finos como nos seus primórdios. Hoje, o jogador deve ser apenas um empresariado prestador de serviços, de bem com as torcidas organizadas, vestindo boas roupas, bonecos ventríloquos circulando entre elites e burguesia. A história de cada um vira um programa a ser cumprido.

Mas o futebol é a irrupção do inesperado, ainda que seja no último minuto.

As dependências dos estádios devem ser para todos. É preciso acabar com as torcidas uniformizadas, ainda que para tal seja importante, nesse momento, a presença das torcidas antifascistas. E que estas não se conformem em ser tolerantes com o pluralismo. Sabemos, e não é de hoje, que as leis serenamente acomodam as condutas fascistas, nazistas e neonazistas.

Seguimos na torcida para comemorar a virada surpreendente desse jogo. De virada é mais gostoso!

Fonte: Hypomnemata 200 | Boletim eletrônico mensal do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária | nu-sol.org

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Alaor Chaves