Em uma época na qual ainda não se falava de “tetos de vidro”, Amparo Poch rompeu a vidraçaria inteira.
por Eduardo Pérez | 21/02/2019
“Um passo mais e se acabou”. Estamos no cume do Coll d’Ares, um porto de montanha nos Pirineus que une Camprodon (comarca do Ripollés, Girona) com Prats de Molló, na comarca francesa do Vallespir. Em meio da agitação de seres humanos que cruzam a fronteira esta manhã de fevereiro de 1939, com a derrota marcada em sua frente (a frente catalã acaba de cair), entre a multidão se deteve uma pequena figura.
Antes de dar o passo ao país vizinho, Amparo Poch fecha os olhos. Como boa cientista que é, sempre foi reflexiva, e considera que este momento, no qual sua vida vai mudar para sempre, merece um olhar para trás. Por sua mente passa sua vida, uma constante sucessão de barreiras que ela superou uma após a outra.
MULHER E MÉDICA
“A mulher (…) necessita buscar e encontrar a si mesma em variadas atividades, na profissão escolhida, no estudo a que se consagrou, na oficina, na fábrica e na Universidade. Vai às clínicas, ao lado das máquinas, às naves em que ressoam os motores e às aulas em que se anseia ciência; e para isto a incomodavam suas amplas saias pesadas, que reduziu; seus laboriosos e pesados penteados, que suprimiu”.
AMPARO POCH. A VIDA SEXUAL DA MULHER. MARÇO DE 1932
Recorda seu pai, José Poch, capitão do Exército. Em 1917 Amparo lhe pediu permissão para estudar Medicina, sua vocação. “Não é carreira própria de mulher”, decidiu o sério rosto de José desde seus imponentes 1,90 de estatura. A jovem cedeu no momento e se licenciou em Magistério, mas ao terminar, em 1922, estudou Medicina. Foi a segunda mulher em licenciar-se na Faculdade de Zaragoza. As 28 matérias foram concluídas com 28 registros de honra, e recebeu o prêmio extraordinário de sua promoção por seu trabalho “Valor diagnóstico do exame do líquido cefalorraquídeo“. Estabeleceu uma consulta em Zaragoza, centrando-se na proteção da infância e na educação sanitária para as mulheres obreiras. Em Madrid, onde se transladou em 1934, abriu uma clínica em Puente de Vallecas e trabalhou para a Mútua de Médicos do Sindicato Único de Saúde da CNT.
Poch também recorda os comentários, os olhares, as piadas, por falar “onde e quando não devia”, por vestir-se “como um homem”, por amar livremente. Ela falou onde e quando quis falar, se vestiu como quis e amou a quem quis enquanto quis. Se casou em 1932, mas o matrimônio se dissolveu pouco depois.
Recorda a pressão para que não se metesse em política, porque isso era tarefa masculina. Ela fez parte da CNT e do Partido Sindicalista, formado pelo veterano ex-dirigente cenetista Ángel Pestaña e que apostava, frente à postura majoritária de seus companheiros, por ter um pé nas instituições estatais. Junto as também cenetistas Lucía Sánchez Saornil e Mercedes Comaposada, fundou em 1934 a organização Mujeres Libres, dedicada à emancipação da mulher obreira, que quatro anos depois contaria com 20.000 filiadas. A médica zaragozana se destacou como articulista da revista da organização, colaborando principalmente com conteúdos relacionados com a higiene e a saúde. Sempre atenta às necessidades das trabalhadoras, Amparo Poch presidiu também o Grupo Ogino, encarregado de divulgar esse sistema de controle de natalidade.
UMA PACIFISTA EM GUERRA
“Não dê ouvidos aos hinos nacionais nem às palavras retumbantes que lhes falem de falsos deveres patrióticos, mas a essa outra voz doce e profunda que sai do próprio coração e ensina o preceito intangível de amar a todos os seres e todas as coisas. (…) Que fazem falta casas grandes e bem iluminadas; pontes, estradas e ferrovias; barcos sem canhões que unam os homens em vez de exterminá-los”.
AMPARO POCH. TEMPOS NOVOS. JUNHO DE 1935
Uma das últimas iniciativas de Poch antes de que estourasse o conflito bélico foi participar na criação da seção espanhola da Internacional de Resistentes à Guerra, que promovia o antimilitarismo e o antibelicismo. Como em tantos outros casos, uns meses depois esta mulher inimiga das guerras estava envolta em uma. Assim que produziu-se o golpe militar, se organizaram as milícias antifascistas, Amparo Poch exercia como médica no Regimento Ángel Pestaña. No entanto, não durou muito na frente, pois lhe foram atribuídas responsabilidades governamentais.
Desde agosto de 1936 até os fatos de maio de 1937, foi diretora de Assistência Social no Ministério de Saúde de Federica Montseny, assim como membro da Junta de Proteção de Órfãos de Defensores da República, sendo uma de suas tarefas organizar as expedições de centenas de crianças refugiadas ao México, França ou à URSS. Após deixar seus cargos, se transladou a Barcelona e dirigiu a Casa da Mulher Trabalhadora até que, a cargo de uma nova expedição infantil, teve que dirigir-se até os Pirineus em fevereiro de 1939. Desta vez para não voltar.
Rodeada de soldados feridos, de civis paralisados pelo frio, na passagem pelos Pireneus, Amparo volta a abrir os olhos, já úmidos. Dá o passo definitivo para entrar na França. Não olha para trás. A Espanha já não é um país para mulheres livres. Tampouco para esta médica hiper-ativa que, em uma época na qual ainda não se falava dos “tetos de vidro”, havia destroçado a vidraria inteira.
Tradução > Sol de Abril
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