[Espanha] Fernando Carballo, o preso político anarquista que acumulou mais anos em cárceres franquistas

Por Miguel Muñoz| 08/08/2020

• Carballo foi detido em agosto de 1964 junto ao escocês Stuart Christie por tentar atentar contra Franco

• Sua vida esteve protagonizada pela prisão. Desde a primeira vez que entrou no cárcere, em 1940, até janeiro de 1977, passou 26 anos cumprindo diferentes condenações

• Já em liberdade participou no primeiro comício da CNT após a ditadura pronunciando umas recordadas palavras: “fúria libertária”

“Detenção de dois perigosos terroristas. Seu objetivo era desenvolver uma campanha de violência em Madrid e outras cidades espanholas”. Assim intitulava o diário La Vanguardia em sua capa do dia 16 de agosto de 1964. Seus nomes e suas fotos, de frente e de perfil, ocupavam grande parte da página. Stuart Christie e Fernando Carballo. O primeiro, um jovem escocês que chegou a Madrid pedindo carona. O segundo, um carpinteiro nascido em Valladolid. Ambos, anarquistas. Foram detidos em Madrid quatro dias antes, em 12 desse mês. Christie é atualmente um editor e escritor de livros nos quais contou sua história. Sobre Carballo, que faleceu em 1993, se encontra menos informação recente. Poucos sabem que é considerado como o preso político que acumulou mais anos nos cárceres franquistas.

E é que a vida de Fernando Carballo esteve protagonizada pela prisão. No total, desde a primeira vez que entrou no cárcere, em 1940, até a última vez que saiu, em janeiro de 1977, passou 26 anos cumprindo diferentes condenações. Com apenas 16 anos foi detido pela primeira vez por roubar um saco de amendoim em um contexto da Espanha do pós-guerra e fome. Em 1946, segunda passagem pelo cárcere, por resistir a um guarda noturno que queria lhe tirar o azeite (de comércio ilegal) que levava. Em 1948, de novo detido e condenado a 13 anos de prisão por pertencer a “Socorro Rojo Internacional”. Passou 7 anos privado de liberdade. E finalmente, a mencionada detenção em 1964, pela qual cumpriu sua condenação mais longa.

Carballo foi acusado de tentar atentar contra Franco junto a Christie. Um Conselho de Guerra o condenou a 30 anos de prisão e ao escocês a 20. Ele mesmo resumia o vivido em uma entrevista concedida ao El País pouco depois de ser liberado em 1977. Nela reconhecia que tinha explosivos:

“Eu me dedicava à propaganda. Efetivamente tinha explosivos plásticos, fulminantes e ácido sulfúrico, mas me faltava clorato mesclado a 50% com açúcar. (…) não há ninguém que possa averiguar o pensamento ou a intenção. Talvez como antifranquista eu necessitava ter aquilo. Acaso algum dia tivesse chegado o momento de usá-lo, ou não, mas não se pode forjar uma acusação sobre essa base. Efetivamente, a única acusação foi posse de explosivos. O problema é que nessa época havia mais de um grupo que ia diretamente por Franco. Inclusive, no partido Espanha-Rússia, que se celebrou no estádio Bernabéu em 1964, houve um explosivo preparado que não chegou a explodir porque puseram fulminante normal, quando tinham que ter posto especial. Por isso, quando em nosso julgamento, nos acusaram de que íamos tentar algo contra Franco, e daí saiu a campanha internacional de protesto, porque acreditaram que nos pediriam a pena de morte. (…) Eu fui detido em agosto e o partido se celebrou em junho. Meu contato, Stuart Cristie, tinha uma mão vendada. Eu teria que perguntar se doía, mas não me entendeu. Então, quando fui pegar-lhe o braço para levá-lo a parte e me desse o que trazia, propaganda ou o que fosse, ou explosivos, caíram-me em cima dez homens de pistola em mãos. Ali mesmo queriam que falasse, mas não podia falar: haviam posto meu fígado na boca com um soco”.

Filho de um anarcossindicalista fuzilado em 1936

Para entender a vida de Carballo há que regressar à sua infância. Assim também o considera seu filho, Luis Carballo, em conversa com a mídia. Ele se encarregou de compilar documentos, recortes de imprensa e fotografias da vida de seu pai. Conta também com um manuscrito, inacabado, escrito por seu próprio pai, relatando suas vivências desde seu nascimento, em 1924, até 1940, data de seu primeiro ingresso na prisão.

“Em princípio, este escrito vai ser muito duro para mim. Porque terei que recordar, toda uma vida que melhor seria poder esquecer faz muitos anos. Mas tenho a obrigação de deixar plasmada minha vida e experiências”, começa o texto.

Fernando nasceu em 1924 em um povoado de Valladolid. No texto narra o ambiente prévio ao Golpe de Estado de 18 de julho de 1936. E descreve a figura chave de seu pai, Aniceto, trabalhador ferroviário e implicado no movimento obreiro. “Jamais poderei esquecer os conselhos das amizades de meu pai, com o qual demonstravam o grande carinho que lhe dedicavam, “Aniceto vá embora, se não te matarão”, ele sempre respondia, “eu não fiz nenhum mal a ninguém. Por que tenho que fugir covardemente?”, assinala o documento.

“Em 3 de outubro de 1936 o sequestram e o assassinam, o vi só um instante, abrir e fechar a tampa do ataúde, seu estômago era um buraco e sua frente um agulheiro de um tiro”, continua Carballo. Aquela noite, seus irmãos e ele passaram buscando-o por todas as prisões de Valladolid “utilizadas pelos fascistas”. Também em delegacias e os tribunais. Após isso, de madrugada, foram à casa de uns companheiros de seu pai. “Seriam as oito da manhã do dia quatro de outubro quando chamaram à porta, para nos comunicar que nosso pai estava vivo e se encontrava nos calabouços da Academia de Caballería, fomos velozmente, íamos tão contentes para vê-lo, quando na rua nos topamos com um secretário do tribunal que conhecia a nossa família e nos ver tão contentes nos perguntou o motivo, e ao comentar-lhe a grata novidade aquele ancião de barba branca e cabelos brancos se pôs a chorar e nos disse que por desgraça não era verdade, que o haviam encontrado morto”, segue o relato.

“Depois de passar o que qualquer pessoa humana pode imaginar, fomos com ele, ao depósito de cadáveres do hospital. Tão só deixaram passar a minha irmã Avelina que com 15 anos era a maior dos três irmãos, eu o pude ver apenas uns instantes antes de subi-lo ao carro dos mortos. Mas ainda não haviam completado sua obra. Depois veio o roubo e saque de nossa moradia familiar, deixando-nos na mais absoluta indigência, quer dizer, na rua”, acrescenta a dolorosa história.

“Meu pai sempre foi uma pessoa enamorada de seu pai, era um ferroviário assassinado. Meu avô era comunista mas militava na CNT, porque UGT lhe parecia light. Trabalhava nos caminhos de ferro do Norte da Espanha. Ele era professor de oficina e foi assassinado, como pessoa ativa. Meu pai sempre o levava a todas as tertúlias e reuniões. Se fixou muito nos poucos anos que esteve com ele. Estava muito sofrido, o condenaram à luta, de não haver vivido essas circunstâncias não teria sido tão ativo”, explica seu filho, Luis, a este meio.

O manuscrito também adentra em sua primeira experiência na prisão, com apenas 16 anos. Um exemplo: “Para o resto dos presos, devido a minha pouca idade, era praticamente um brinquedo para eles, sempre encontravam uma desculpa para tirar-me de meu confinamento, e me cuidavam como autênticos pais. A grande maioria eram a flor e nata da intelectualidade do povoado espanhol, professores, músicos, pintores, escritores, médicos, poetas, etc. Estas pessoas eram para o regime elementos subversivos e perigosos, que ironia, que perigoso que pode chegar a ser um livro”.

A vida no cárcere

Luis Carballo nasceu em 1965. Em um “Valladolid muito fascista”. E um ano depois da detenção em Madrid de seu pai. Sua mãe, Juana, estava grávida quando Fernando foi encarcerado. Era o segundo filho da família. “Em casa foi um drama, na família por parte de minha mãe eram conservadores, se ocultava, nunca se falava de meu pai…”, explica. Conforme foi crescendo foi “pegando” algumas coisas ainda que sem atrever-se a perguntar demasiado.

Luis recorda de aqueles anos “a pressão tanto da família e do entorno”. Sua mãe foi à Alemanha para trabalhar uns meses. Por fim, durante um natal, com 7 ou 8 anos, Luis foi levado por sua mãe ao cárcere. Era a única época do ano na qual deixavam entrar as crianças. “Eu alucinei, era em Burgos e estava cheio de personalidades políticas e artistas. Era como um brinquedo para todos os presos, foi um dos dias mais felizes de minha vida. Se perguntavam coisas, porque na rua sempre diziam que os maus estão no cárcere e os bons fora. Então claro, dizia que meu pai era dos bons e toda essa gente era genial”, assinala Luis.

À saída de Fernando do cárcere, em janeiro de 1977, em Alicante, muitos meios de comunicação se fixaram em sua história. Fizeram eco da notícia periódicos como Diario 16: “Em liberdade o mais velho prisioneiro do franquismo”, intitulava em sua edição de 15 de janeiro; El País: “Quando me detiveram eu não podia fabricar explosivos” ou La Verdad de Alicante, entre outros: “O preso comum necessita mais ajuda que o preso político”, assinalava este diário local. Essa reivindicação sobre a má situação dos presos foi uma constante em suas intervenções em liberdade.

Sua chegada à Madrid, onde foi recebido por uma comitiva da CNT, que desembocou em uma manifestação e algum detido pela polícia, também foi coberta em meios como o diário Ya. Daí voltou à Valladolid, onde a imprensa local como El Norte de Castilla referiu o acontecimento. “A reconciliação nacional depende do que façam os que têm o destino do país em suas mãos”, declarava a esse meio. Os dias posteriores Carballo foi objeto de várias entrevistas em profundidade em revistas como Triunfo, Interviu, Gaceta Ilustrada, Cambio 16, Cuadernos para el diálogo ou a prestigiosa publicação satírica Ajoblanco.

Anos depois, em 1993, o programa documental emitido por TVE, Objetivo, matar a Franco, recordava também sua história junto à de Christie. Depois disso, pouca coisa. Parece que sua história se esfumou da lembrança midiática.

Primeiro comício da CNT, San Sebastián dos Reyes

O único registro audiovisual de Fernando Carballo disponível pertence a uma data histórica para a CNT. É o 27 de março de 1977. Esse dia, na praça de touros de San Sebastián dos Reyes, aconteceu o primeiro comício da organização anarcossindicalista após a morte de Franco. E Carballo interveio entre tremendos aplausos dos participantes:

“Vou me dirigir com duas palavras a esta praça, a esta pracinha cheia de fúria libertária. A vós esses jovens libertários que foram capazes de vencer o fascismo franquista (….) vós sois os que tens que liberar a Espanha, os que tens que fazer uma Confederação potente, os que tens que fazer um movimento libertário capaz de arrasar o fascismo e o capitalismo (…) Companheiros espanhóis, companheiros do universo que é nossa pátria, não destroceis vossas mãos aplaudindo o orador, destroces vossas mãos para destruir o fascismo internacional”.

“Desde a CNT se lhe prestou apoio, ajudando-o a ele ali dentro e a sua família fora”. Quem fala é Miguel Mulet, um antigo militante anarcossindicalista daqueles anos. Esteve em Madrid no recebimento organizado. “Ele saiu como teria saído qualquer pessoa, aturdido. Saiu a um mundo que não era o que ele havia conhecido antes de entrar no cárcere. Apesar disso se adaptou bastante bem. Conheceu a realidade do momento, o ajudamos no que pudemos economicamente como montando uma oficina para que tivesse ocupação”, recorda Mulet a este meio. O sindicato distribuiu também campanhas pedindo sua liberação. Carballo havia se filiado em princípios dos anos 60.

O comício da CNT em San Sebastián dos Reyes e outro posterior em Montjuic, em Barcelona, em 22 de julho desse mesmo ano foram um êxito de participação. “Houve tanta repercussão que, a partir desse momento nos infiltraram e destroçaram a CNT. Foi espetacular, ninguém o esperava. Isso fez com que nos dinamitassem desde dentro”, destaca Mulet.

Essa “explosão” da CNT tem duas palavras chave: “Caso Scala”. Um polêmico caso judicial após um incêndio em uma discoteca de Barcelona que provocou quatro mortes em janeiro de 1978. Detiveram vários destacados sindicalistas esse mesmo dia e nos meses posteriores, acusando diretamente ao movimento libertário. Numerosos testemunhos e historiadores assinalam a implicação de infiltrados policiais, destacando o nome de Joaquín Gambín. O documentário El Entusiasmo, de Luis E.Herrero e realizado em 2018, narra com profundidade todo estes anos.

O filho de Fernando Carballo destaca a baixa que houve na militância a nível geral após estes acontecimentos. E recorda o cansaço de um pai que havia passado a metade de sua vida no cárcere. Ainda em Denia, cidade onde se transladou pouco depois, manteve contato com o movimento laboral dos pescadores.

Luis tem claro que a história de seu pai, em comparação com a de outros lutadores, está esquecida. “Me dá muita raiva que tenha caído assim no esquecimento um lutador pela liberdade. Os anarquistas somos as pessoas mais esquecidas, não interessamos a ninguém, a nenhum regime nem sistema. Os anarquistas sempre são os grandes esquecidos da história. Como meu pai houve bastante gente, por exemplo Ángel Rodríguez, que passou 20 anos seguidos no cárcere por distribuir propaganda”, explica. Reclama, ademais, que dentro do movimento anarcossindicalista se reivindique muito mais a memória das pessoas que estiveram aí lutando contra o franquismo.

Fonte: https://www.cuartopoder.es/espana/2020/08/08/fernando-carballo-el-preso-politico-anarquista-que-acumulo-mas-anos-em-carceles-franquistas/

Tradução > Sol de Abril

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Ricardo Silvestrin

One response to “[Espanha] Fernando Carballo, o preso político anarquista que acumulou mais anos em cárceres franquistas”

  1. jacob

    companheiro ponta firme! a sua memória segue viva em nossa luta.