[Argentina] “O anarquismo foi uma batalha cultural”

O autor de “Cabezas de Tormenta” fala dos libertários de ontem e dos “ideais sensatos” que ainda sobrevivem.

Por Sandra Chaher

Depois de “El lenguaje libertario” (‘A linguagem libertária’, publicado na Argentina em 1998) – livro que compilou as modernas formas do pensamento libertário (não necessariamente anarquista) como as idéias de Michel Foucault, Paul Feyerabend, Agustín García Calvo, Horacio González, Dora Barrancos e Néstor Perlongher, entre outros – Christian Ferrer acaba de lançar “Cabezas de Tormenta”, muito mais pessoal do que o anterior, que aborda diretamente a questão do anarquismo respondendo, por um lado, às perguntas básicas de um leitor neófito enquanto esboça possíveis teorias de interpretação dos eventos a partir de uma perspectiva libertária.

Em 1996 havia publicado “Mal de ojo” (Mau olhado), o drama do olhar, em que faz uma crítica da técnica que só poderia ter sido concebida por uma mente imbuída de princípios libertários, e já estava escrito em um estilo de ensaio incomum; em “Cabezas de Tormenta” Ferrer leva a sério a confissão que é quase uma autobiografia e lança toda a poesia e lirismo que, diz ele, vêm de um ato de amor para a ideologia que o cobre desde a adolescência.

“O anarquismo tem sido a minha vida. Eu tinha que ser um anarquista, e nesse sentido não evolui em nada. Eu diria que quase estou congelado em meus 18, 20 anos”, diz no estudo do sótão de sua casa, um ambiente em que os livros são o único horizonte visual, e um computador e o dossel que cobre a janela.

Sandra Chaher > Como chegou ao anarquismo: a partir da prática, a partir dos textos?

Christian Ferrer < Não é fácil responder a isso. Existem várias formas de abordagem. Tradicionalmente, foi um movimento com apoio popular.

Sandra > Mas você não é tão velho.

Christian < Não (risos). Digamos que o tipo de recrutamento atual do anarquismo é por gangues, como banda, se transforma em um grupo de rock ou entre estudantes e se estende para essas áreas. Tem alguma necessidade existencial. Enquanto antigamente era uma escolha muito mais consciente. Mas estas não são as únicas maneiras de chegar. Em geral, há sempre um problema com autoridade, uma rejeição à autoridade.

Sandra > Esse foi seu caso?

Christian < Sim. Pode ser a autoridade paterna, a escolar, uma experiência em geral com a injustiça. A diferença com outros grupos políticos é que surge o problema das hierarquias. Também pode haver, por vezes, dificuldade de ordenar, saber que você tem poder de fazer e restringir. No meu caso, encontrei-me muito impressionado com a contracultura dos anos 60 e 70. Desde a adolescência, com o rock na Argentina, e mais tarde no Canadá, onde a recebi mais ideologicamente, mais de leituras. É diferente o que aconteceu com as pessoas aqui nessas décadas, os militantes, cuja formação não ocorre na contracultura norte-americana, mas no nacionalismo ou na esquerda clássica. Enquanto toda essa geração de esquerda tinha como objetivo central o poder, a contracultura norte-americana não tinha essa obsessão, o assunto era fundar uma nova espiritualidade.

Sandra > Como foi seu vínculo com os textos clássicos do anarquismo?

Christian < Não li a maioria. É muito comum. Tenho uma enorme biblioteca de anarquismo, mas eu li coisas aqui, ali. Aos anarquistas lhes bastava saber três ou quatro coisas e já estava claro para eles o que era o anarquismo: ser contra a hierarquia; pensar formas de organização que, se possível, tudo é decidido por consenso, o grupo de afinidade, que é a maneira de reunir-se e vincular-se, e uma série de três ou quatro hipóteses gerais usadas para agir no mundo.

Sandra > O que ficou do ideário anarquista clássico nos ativistas de hoje, inclusive os de longa data como estes grupos que chamou de gangues?

Christian < Primeiro, mudou o contexto: o modelo político o qual os anarquistas respondiam no final do século XIX e início do século XX estava associado à representação política, e os dois grandes inimigos do anarquismo eram a fome e a autocracia. Não que estes problemas tenham desaparecido: o Estado as vezes toma decisões autocráticas, mas não tem nada a ver com o que acontecia no século XIX, e a fome continua sendo uma preocupação geral como horizonte, mas já não é uma experiência cotidiana. Acho que o anarquismo tinha outro problema que pensar e o qual definiu como um assunto a ser resolvido, que chamamos de alienação existencial. Grande parte da doutrina anarquista visa lutar contra o que chamaram a hipocrisia burguesa: o casamento, a falta de liberdade para implantar possibilidades antropológicas de todo ser humano.

Sandra > A luta dos primeiros anarquistas foi mais moral do que política?

Christian < Não seria moral, mas ideológica. A palavra mais justa é que se tratava de uma luta cultural. Era uma batalha cultural avançada.

Sandra > Ficou sem responder como se expressa o ideário anarquista histórico, em quem hoje se assumem como anarquistas.

Christian < Em princípio, é um ideal de vida comum, de boa vizinhança. Quando não se pode ter uma boa vizinhança se inventam leis, constituições e polícia para levar as coisas adiante. Em segundo lugar, é um ideal de luta pela bondade humana, ou seja: acredita que o homem, por ser bom, pode agir com benevolência, é, portanto, uma tentativa de matar tudo o que está errado ou ruim na história evolutiva humana. Terceiro, é um ideal de igualdade relacional entre os seres humanos. Quarto, de liberdade pessoal que ninguém tem o direito de restringir, particularmente o Estado. E, finalmente, é um ideal que sustenta que a hierarquia corrompe a alma, e como tal propõe uma sociedade amigável e não hierárquica. São ideais que me parecem sensatos.

Sandra > Um anarquista hoje vive de acordo com essas idéias?

Christian < É uma questão de coerência, e na verdade a pergunta deveria ser o que significa levar uma vida anarquista em um mundo que não é anarquista? É o mesmo problema para um verdadeiro cristão. Os anarquistas tentam realizar alguns de seus ideais, mas isso não significa dizer que eles são puritanos ou principistas, ainda que muitos o sejam. Esses ideais são orientadores éticos da vida e, especialmente, os conselheiros do olhar.

Sandra > Você se reúne regularmente com outros militantes?

Christian < Às vezes encontro, tanto à Federação Libertária Argentina como à Biblioteca José Ingenieros.

Sandra > De que falam nessas reuniões?

Christian < Mas garota, isso é um segredo (risos).

Sandra > Até que ponto se pode pensar o anarquismo como uma opção de construção de uma sociedade, tendo em conta o tema central de questionamento do poder e da hierarquia?

Christian < Acho que a pergunta tem um problema: a suposição de que um movimento político tenha que ter soluções para toda uma sociedade. Todos os partidos políticos acreditam, ou anunciam para o eleitorado, que tem a solução para uma série de eventos que vão desde a dívida externa à segurança em casas noturnas. E é uma mentira, não têm idéia. Eu acredito que quando pedem a um movimento político que tenha uma solução para tudo, se está reconstruindo o modelo de hierarquia, de representação e de mentira política, o qual estamos acostumados. O anarquismo não tem porque ter resposta sobre todas as formas de organização social. Uma vez em uma conferência perguntaram a Malatesta: “Depois da revolução, quem vai cuidar de chegar a farinha para as padarias, e que os trens cheguem no horário?”. E Malatesta respondeu: “Eu não tenho idéia. Tudo o que sei é que as pessoas se reunirão por vontade própria e decidirá por sua própria escolha como quer fazê-lo”.

Sandra > Portanto, não há uma resposta para “o dia depois da revolução”?

Christian < Sim existe, essa é a outra parte da resposta. O anarquismo foi um movimento construtivo. Qualquer anarquista de muita idade lhe dirá que é o maior princípio de ordem. O anarquismo tem construído ateneus, bibliotecas, sindicatos, grupos de afinidade, atividades culturais, greves, lutas sociais. O problema é que ele sempre foi mais eficaz como uma crítica ao poder. Creio que o anarquismo tem tido sempre dois corações: um turbulento, jacobino, de destruição da ordem vigente e de crítica ao poder, e outro amoroso, construtivo, que desenvolveu desde imagens de vida mais desejável até experiências comunitárias sem matrizes pela hierarquia, ou instituições de resistência e luta que ao mesmo tempo são pensadas como a base para uma nova sociedade. O que os anarquistas esperam, e a palavra espera é muito poderosa – é preciso pensar na espera de algo grande – é simplesmente o colapso do mundo hierárquico, tal como uma vez o Império Romano ruiu, tanto como os cristãos aguardam a chegada de um mundo melhor. Se eu digo que é uma longa espera é porque é impossível de eliminar. Não se eliminou o anarquismo, isso é um mistério. Eu acho que se sempre volta a aparecer é porque há algo nele que expressa uma virada, ainda que mínima, em termos demográficos.

Sandra > No livro fala de fé.

Christian < Sim, é. E na espera há esperança, que é ativa, ao contrário da paciência ou da ilusão. Não sei, não tenho outras respostas. Os anarquistas sempre têm feito a pergunta sobre o futuro, o depois, mas a mim não preocupa tanto isso, tampouco a revolução. O anarquismo é, acima de tudo, uma boa maneira de viver, e isso é feito a partir de exemplos morais.

agência de notícias anarquistas-ana

O amanhecer,
Só cinco folhas douradas
No topo da Árvore
Rodrigo Vieira Ribeiro

 

One response to “[Argentina] “O anarquismo foi uma batalha cultural””

  1. Peterson Silva

    Gostei muito desse cara. Só não concordo muito com esse ideal meio positivista/cristão de tirar tudo de ruim que há no ser humano, além da ideia hegeliana/marxista de que haja uma história “evolutiva” humana.