Tenho acompanhado os debates em espanhol sobre o movimento “Occupy Wall Street” e vejo que há muita falta de informação e curiosidade acerca de como surgiu esse movimento, como se organiza e qual tem sido a posição dos anarquistas a respeito. A informação que compartilho vem de conversas com David Graeber, que foi um dos organizadores originais das assembléias em Nova York de onde surgiu o movimento, nossas próprias observações dos eventos “Occupy” em Austin, Texas, e dos debates entre ativistas anarquistas nas listas e fóruns de discussão aqui nos Estados Unidos, entre outras fontes¹.
Uma revista cultura canadense que critica os anúncios comercias – Adbusters – convocou, em sua edição de julho de 2011 e por sua mala direta de aproximadamente 90.000 pessoas nos Canadá e nos EUA, uma ocupação de Wall Street em 17 de setembro. Parece que Adbusters acreditava na idéia que é difundida na mídia ultimamente, acerca dos movimentos no Egito e Tunísia: que hoje em dia a revolução se arma por correio eletrônico e Facebook. Como resposta, formou-se uma coalizão de ONGs, sindicatos e grupos socialistas, que anunciaram uma “Assembléia Geral” em 2 de agosto em um parque perto de Wall Street (“Bowling Green”) para organizar a ocupação, que a Adbusters logo anunciou. A notícia se espalhou pelos meios militantes de Nova York. Uns tantos ativistas anarquistas de lá começaram a debater sobre como responder. A revista Adbusters tem certa fama e influência, era muito possível que chegasse muitos grupos ao parque devido a sua convocatória: deveriam, os anarquistas, assistir à assembléia para tentar instigar algo interessante? Alguns disseram que não queriam nada com algo convocado por socialistas e pela Adbusters, uma revista “progressista” um tanto burguesa. Outros decidiram ir, incluindo pessoas que haviam participado na Rede de Ação Direta (Direct Action Network – DAN) que coordenava as manifestações e ações diretas na América do Norte entre 1999 (Seattle) e 2003.
Quando chegaram os ativistas anarquistas e anti-autoritários ao parque em 2 de agosto, já estavam ali os do Workers World Party (“Partido Mundial dos Trabalhadores” – que os anarquistas conhecem como Stalinistas), com seus microfones e bandeiras, dizendo às pessoas ali congregadas que o plano (seu plano) era marchar à Wall Street imediatamente. Também haviam chegado os Trotskistas da ISO – International Socialist Organization (Organização Internacional Socialista), vários ativistas de movimentos estudantis e ativistas que haviam participado em um protesto (“Bloombergville”) contra o novo programa de austeridade implementado pelo prefeito da cidade de Nova York, que haviam se dispersado um pouco antes.
O coletivo de anarquistas caminhou entre os grupos buscando pessoas de possível afinidade política, reconhecendo rostos e camisas do “Comida, Não Bombas”, coletivos Zapatistas, a Cruz Negra, etc. Perguntaram a estas pessoas se queriam ter uma verdadeira assembléia para organizar uma ocupação, em vez de seguir aos líderes do WWP em uma marcha. Pouco depois, o grupo anti-autoritário – agora mais amplo – convocou uma assembléia para as 20 horas ali mesmo e a informação correu entre os demais grupos que estavam no parque. Entretanto, os WWP foram a sua marcha. Os ISO (os Trotskistas) se dividiram entre a marcha do WWP e a assembléia. Muitos estudantes e os ativistas de “Bloombergville” ficaram para a assembléia. Estiveram também um casal da Espanha que havia participado no movimento dos “indignados” durante os meses anteriores na Espanha, um homem da Tunísia que esteve lá durante a rebelião, e uma mulher anarquista da rede anti-autoritária VOID da Grécia, e todos compartilharam suas perspectivas e conselhos.
A primeira coisa que foi discutida na primeira assembléia foi a questão do processo: decidiram que a assembléia funcionaria por “consenso modificado”, quer dizer, primeiro se tenta chegar a acordos por consenso unânime, mas se depois de muito debate permanecer conflito não resolvido, ou seja, se pelo menos duas pessoas seguem bloqueando, com um voto de 2/3 será tomada uma decisão. Decidiram que houvesse uma Assembléia Geral todos os sábados para organizar a ocupação. Comitês foram formados (“working groups”): um grupo para organizar oficinas de formação em moderação/consenso, um grupo para organizar oficinas de desobediência civil, de como trabalhar em grupos de afinidade, de ação direta, etc. (hoje em dia existem muitos comitês mais – há mais de 35 comitês, incluindo um de saúde, uma biblioteca pública, uma junta médica, etc.). Decidiu-se inicialmente que os comitês seriam autônomos em seu processo interno, e que relatariam seus progressos e planos para a Assembléia Geral. No entanto, como a AG também decidiu que seria respeitado o princípio da “diversidade de táticas”, disse que se um grupo de afinidade quisesse preparar uma ação sem informar a AG por razões práticas ou de segurança, teria todo o direito de fazê-lo. Para que este modelo servisse, concordaram que, se um grupo de afinidade quisesse fazer algo muito combativo, que o fariam de tal forma a evitar, tanto quanto possível, colocar os outros ativistas em perigo, e por sua vez os outros ativistas não questionariam a decisão de realizar tal ação.
Entre 2 de agosto e 17 de setembro os anarquistas que estiveram no início tentaram atrair mais ativistas anarquistas para que o movimento não fosse dominado por seitas autoritárias, e para auxiliá-los em oficinas de ação direta, consenso, etc. Mais pessoas chegaram da velha Rede de Ação Direta (DAN), alguns dos “War Resisters League”, U. S. Uncut, Food Not Bombs, a IWW, e outros insurrecionalistas. Muitos anarquistas, no entanto, se recusaram a envolver-se, dizendo que não tinham fé ou interesse no movimento por ser uma coalizão de gente com muita diversidade política, isto é, pessoas sem muita experiência política, reformistas liberais, marxistas, etc., e também porque acreditavam que uma ocupação não seria suficientemente combativa taticamente. É verdade que era, e continua sendo, uma coalizão muito ampla, com todos os desafios envolvidos. Os WWP se foram, mas muitos do ISO seguem envolvidos como indivíduos (ISO mandou que seus membros se retirassem, mas vários não obedeceram), e segue havendo ainda vários conflitos entre os anarquistas e eles. Por exemplo, tiveram que lutar pelo controle do site, e é por isso que existem duas páginas². Entretanto, milhares de pessoas se agregaram mais – cada vez que a polícia tenta reprimir, mais gente sai às ruas. A energia, a raiva e a loucura que se mostra em vez da habitual apatia têm surpreendido a todos nós. E parece que, embora haja pessoas muito diferentes politicamente, como já foi estabelecida a assembléia e seus processos, incluindo a “diversidade de táticas”, todos agitam a sua própria maneira, e até agora têm sido capazes de cooperar sem grandes problemas.
Tudo isso sobre o movimento em Nova York. A descrição anterior não se aplica necessariamente aos movimentos em outras cidades. Em todos os lugares se ocupa em consenso, organiza-se uma assembléia geral e comissões, e compartilha-se a idéia de que sejam “autônomos”. Mas, em alguns casos, a definição de autonomia não é muito precisa, e não respeitam o princípio da “diversidade de táticas”. Por exemplo, aqui em Austin, Texas, tem havido uma grande polêmica nas últimas duas semanas sobre um grupo de “sem-teto” que tentou fazer um protesto no lado oposto do protesto principal do “Occupy Austin” junto com um grupo de anarquistas que se solidarizam com eles. A assembléia geral do “Occupy Austin” denunciou o acampamento dos sem-teto, dizendo que estavam “seqüestrando” o movimento “autêntico” do Occupy Austin, cujo objetivo é simplesmente “apoiar o movimento de Wall Street”. Também disseram que este outro protesto “sujaria” o nome do movimento “real”, porque os sem-teto deveriam solicitar uma “permissão para acampar”, como eles fizeram. Claro que essa gente branca de classe média do primeiro protesto não reflete sobre como o privilégio ajuda-os a obter uma “permissão para acampar”, e também estão negando completamente a definição de “ocupação”. Finalmente os anarquistas aqui em Austin responderam apresentando uma proposta à assembléia geral em Nova York, solicitando uma palavra oficial em apoio ao acampamento dos sem-teto. Portanto, os Occupy Austin não podem dizer que estão “apoiando o movimento em Wall Street” se não apóiam os sem-teto. A assembléia em NY aceitou a proposta, e expressaram seu apoio em 15 de outubro. Vamos ver o que acontece… É muito provável que existam duas ocupações diferentes.
Conto-lhes essa história como um exemplo: o conflito em Austin tem sido somente um entre vários conflitos parecidos que estão surgindo no movimento nacional acerca de como e quanto o movimento responde à opressão e necessidades particulares das pessoas mais marginalizadas, das pessoas de cor, dos sem-teto, das mulheres, e dos indígenas cujas terras têm sido “ocupadas” por uma população colonizadora. Para visibilizar esta última questão, em Montreal, Canadá (de onde sou), foram feitas ações simultâneas em 15 de outubro: “Ocupar Montreal” e “Descolonizar Montreal”, organizadas pelos anarquistas. Em Nova York e outras cidades estão se formando assembléias gerais em espanhol que se coordenam com a assembléia geral em inglês, para melhor envolver as pessoas que tem por idioma o espanhol. Ou seja, há muito debate, muitas tentativas, e muitos caminhos.
Tem havido debate constante entre anarquistas nos EUA sobre se deveríamos participar, e como. Em todas as cidades há anarquistas que se envolvem porque mesmo que o movimento não seja tão radical quanto queiram, o vêem como uma oportunidade de compartilhar ferramentas, experiência, inspiração, e uma análise mais profunda e histórica sobre a situação social, econômica e política atual. Também, em todas as cidades, há anarquistas que se abstêm. Conta um companheiro em um dos vários debates:
“Anarquistas por todos os lados se queixam e criticam o reformismo do movimento Occupy. Considero esta atitude legítima e problemática ao mesmo tempo… Nós que temos estado envolvidos nos movimentos anarquistas há muito tempo tendemos a ser céticos quanto a movimentos sem uma ideologia bem definida, e com razão… Mas este cinismo às vezes nos cega a eventos e ações que buscam capturar o imaginário popular de uma maneira que não podemos predizer ou controlar.
Algumas das ações mais emocionantes durante a rebelião na Grécia foram, a princípio, condenadas por anarquistas pela “inocência” das pessoas que participaram, mas logo se transformaram em assembléias gerais amplas, onde assistiam trabalhadores, aposentados, donas de casa, imigrantes e os anarquistas. Os anarquistas abriram o espaço e asseguraram que se escutassem diversas vozes. As palavras e ações que logo surgiram destas assembléias populares não eram as mais “sofisticadas” ideologicamente, mas eram palavras e ações que surgiram de encontros autenticamente populares, que respondiam a problemas práticos, legítimos e reais, em vez de puros discursos… A verdade é que acredito que deveria emocionar-nos que as pessoas de fora de nosso “meio militante” esteja tomando as ruas e manifestando um discurso tão radical quanto “Ocupar”… Se isto não é uma oportunidade para radicalização em grande escala, não sei o que poderia sê-lo…
A ISO e seu grupo são adeptos de seqüestrar coalizões. Isso é devido a serem autoritários e vanguardistas. Não proponho que façamos como a ISO, mas creio que deveríamos nos meter em coalizões, agitar e tentar instigar o movimento para uma direção mais libertária e radical, e não excluir a cada um que não leve um moicano ou tenha o mesmo vocabulário sofisticado como nós…
Isto posto, em qualquer coalizão, está claro que se deve ser muito cuidadoso com a infiltração de pessoas de direita. Por um lado creio que vale a pena nos envolvermos no movimento simplesmente para evitar que os direitistas o dominem. A ala anti-imigrante da direita “libertária” tentou infiltrar o movimento contra a guerra, com lemas como “Que regressem as tropas, que os coloquemos na fronteira”… Se a direita se apodera deste movimento durante sua formação, poderia ser bem perigoso. Não queremos estar em coalizão com estes desgraçados, mas tampouco não queremos deixá-los apoderarem-se e guiar o movimento.
E ao final pode ser que fracassemos. Talvez iremos investir muito tempo e energia neste fenômeno para logo terminar sem conquistar nada. Mas se não se morre, e ao invés disso nos mantemos ali apenas observando, que fracasso maior seria esse! Queremos ser agentes ou espectadores da história?”
Creio que podemos constatar que a presença e a influência anarquista neste movimento tem sido significante – pela influência anarquista em sua organização inicial e como os anarquistas têm conduzido suas formas e processos internos desde então. Além disso, o fato de não haver “demandas claras” (uma crítica comum nos meios comerciais) tem a ver com o fato da maioria das pessoas envolvidas não ter nenhuma ponta de fé no Estado para resolver a situação econômica. Muitos dizem “não vamos reivindicar nada do Estado, nem respeitar sua autoridade para pedir-lhe coisas; o desafio é buscar outra maneira de fazer a sociedade aqui e agora mesmo”. De certa maneira esta posição é implicitamente anarquista, e muita gente envolvida não tem uma linha política clara, nem uma clara análise histórica do Estado ou do capitalismo. Nós os anarquistas levamos tudo isso em conta, refletimos e debatemos, e ao final cada qual decide de maneira autônoma se quer envolver-se ou não, e respeitamos as decisões dos demais.
Escrito em 21 de outubro de 2011 em Austin, Texas, EUA, por Erica Lagalisse
[1] Veja também um artigo próprio de David Graeber (em inglês) em: http://www.nakedcapitalism.com/2011/10/david-graeber-on-playing-by-the-rules-%E2%80%93-the-strange-success-of-occupy-wall-street.html
[2] http://www.nycga.net/, http://occupywallst.org/
agência de notícias anarquistas-ana
Um cão sonolento
esticou as patas
e soltou um vento
Eugénia Tabosa
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!