[Itália] O chamamento do bosque

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Uma experiência concreta dos jovens frequentadores da Pequena escola libertária Kether de Verona.

Para precisar, nas colinas de Avesa-Montechhio veronese.

“Vai filho, vamos, que voltamos para casa… tem a mamãe que te espera, você o tinha prometido…”. A evidente perplexidade de um pai que vem pegar o próprio filho na escola e ele tem a intenção de desacatar uma ordem preestabelecida para voltar ao espaço educativo que tinha apenas deixado, choca-se com a determinação de Alessandro, do primeiro ano primário, e contra a sua firme resposta, “eu fico aqui, tenho coisas para fazer, nos vemos mais tarde, tem o bosque que me chama”.

A possibilidade concreta de poder “cabular a família” é um elemento decisivo que acompanha a escolha dos jovens frequentadores do percurso da Pequena escola libertária Kether de Verona, nascida de uma ramificação, claramente orientada para as práticas de autocrescimento, não adultocêntricas, da experiência que vêm de uma década de Kiskanu. Os onze meninos/as e seis acompanhantes de caminho e de matérias do grupo Kether, desde abril de 2013 vivem uma situação educativa totalmente independente, imersos nas verdes colinas de Avesa-Montecchio veronese. O traçado, como sempre nesses casos, é em subida, cheio de obstáculos e guiado por forte determinação, mas justamente por isso, reserva aos participantes situações e ensinamentos incidentais “para a vida” de muito valor.

Ao lado do espaço da pequena escola libertária, um grande bosque de vegetação primária, rico de plantas entrelaçadas, de caminhos estreitos com precipícios e cavernas (aqui viviam pequenas comunidades Neanderthal, e é incisivo prescrutar a pré-história, fisicamente nos lugares onde ela ocorreu), e de animais, atrai como um imã a fantasia viva e a ação concreta e material dos estudantes.

Em pouco menos de três meses de trabalho auto-organizado em assembleias, um trecho grande de pulmão verde foi limpo e reordenado pelas exigências do jogo, do encontro, da ritualidade do grupo. Foram colhidos fiapos, garrafas, bitucas, para-lamas de carros dos anos 1970 jogados por mãos ignorantes em decênios de maltrato, no meio do bosque abandonado, considerado como um lugar de “dejeto natural”, a obstinada e alegre companhia de Kether buscou lugares ideias para manifestar sua intenção construtiva. Minas de pedras de “carvão fóssil” (muros de arrimo secos) que desabaram por ausência de manutenção, provocaram durante dias filas de “formigas operárias” que recolhiam e recolocavam como pedras ao longo das margens dos caminhos reabertos, pedras visíveis até pelo claro-escuro da lua (assim nos explicaram os meninos/as em assembleia). “Bases avançadas” no bosque para o “alerta javali”, pontos de restauro, alguns “mercados de gravetos”, um “poço mágico” que durante dias se encheu com a água da chuva carregada de sedimentos, onde pode-se brincar de jogos de água que nunca se adequarão às lógicas assépticas na volta à vida ao apartamento, constituem o “espaço impensável” aberto ao evento, recuperável através de análises coerentes de re-observação e re-frequentação do espaço urbano e agreste sustentadas por pensadores como Henri David Thoreau e Colin Ward.

Qual lei?

E é exatamente quando o “esperado vira do avesso” que aparecem possibilidades inigualáveis de autoaprendizado. O bosque, “do alto”, aparentemente “uniforme”, frequentado “de baixo” reserva surpresas e elementos de diferença sempre radicais. A chegada de habitantes e visitantes que se viam somente em duas dimensões nas páginas dos livros, tais quais um enorme veado macho com tantos galhos nos cornos ou o insistente grunhido de grupos de javalis em busca de raízes e arbustos para rasgar e comer, ter que condividir um território que exige o respeito com seu frágil equilíbrio ambiental, cria as premissas para um repensar de nossa posição no interior da assim dita “Natureza”. Os desenhos e as histórias contadas pelos meninos/as falam serenamente desses encontros sem véu. As suas animadas discussões refletem o grau de sensibilidade amadurecido em meses de contato direto com um mundo ainda não colonizado, não impermeabilizado, não submetido às estratégias de aniquilação ou de regulamentação do domínio da espécie. No período de reabertura da temporada de caça, tantos pontos de interrogação saem de seus olhos, tantas perguntas saem de suas bocas. Não é fácil dar uma explicação (mesmo se houvesse uma) às exigências deles por respostas, preparadas sobre um abismo de raiva cega e de justa reação infantil, quando, ao longo dos labirínticos sendeiros do grande bosque, se encontram verdadeiros bandos de paramilitares com fuzis de caça, roupas de camuflagem, acompanhados de matilhas de cães ferozes e treinados para a procura de “qualquer coisa que se mexa”, suportados pela escabrosa convicção de “estarem do lado da lei”. “Sim, mas de qual lei vocês falam?” Os encastra prontamente o indomável Andrea, “não certamente daquela do bosque… aqui cada um se vira sem armadilhas ou fuzis, cada um contra o outro por si próprio se precisarem ter uma luta pela sobrevivência…” “Você não pode entender menina”, é a lenga-lenga paternal do guerreiro maculado: “tem também uma ordem do prefeito contra os javalis e os animais selvagens perigosos, você acha que somos maus, ou… que somos indispensáveis?”

A resposta coletiva não pode ser que um uni sonoro maus, que ecoa pelo vale estreito e fechado, e é preciso de muito esforço para evitar um confronto direto com interlocutores que tem muito bem organizada a sua estratégia de “caça ao nocivo”, custe o que custar.

A colheita de ossos de animais ao longo dos caminhos pedregosos, de penas e plumas de pássaros ou o enterro de um veado ferido, que veio morrer no jardim da pequena escola, são lições ímpares, baseadas na experiência direta e no crescimento conjunto através do agir, de um autêntico sentir empático por tudo aquilo que nos circunda, dificilmente aplicáveis em outros contextos de estudo. Crianças habituadas ao cimento, aos jogos virtuais, às situações marginais dos bairros, se reencontram, por vontade própria, a escavar um último alojamento para um animal desconhecido, a colocar uma flor ou a escrever uma lembrança em seu túmulo, a emergir para a realidade de um território que muda a cada mês, de estação para estação, onde o outono é de cor e sol vivos e se pode ainda jogar futebol de camiseta, o inverno é frio ao ponto de ter de recolher lenha no grande bosque e acender o fogo de manhã para poder ir à sala de aula. Onde para poder entrar e sair da escola sem ter depois que refazer toda a limpeza do local, é necessário retirar em “turnos inventados” a neve, sempre em grande volume nestas vertentes.

Giuseppe, Lucio, Alessandro, Elia, Nicolas, Alessandro, Lorenzo, Filippo, Andrea, Pietro e Alexandra estão criando a “escola” deles a partir daquilo que é importante para eles, seguindo aquilo que percebem como podendo ser significativo para o futuro deles, para além das famílias, exames, presença/ausência nas aulas, obrigações de matérias e comissões de julgamentos. Sabem bem que o mundo dos adultos os espera à frente, como o caçador no sendeiro do bosque, mas amadurecem individual e coletivamente estratégias de respostas, conhecem algumas variações de caminhos e frequentam sãs vias de fuga, longes das visões dolorosamente coercitivas da “posse do troféu”.

Giulio Spiazzigiuliospiazzi@gmail.com

www.liberautonomia.com
www.kether.it

Fonte: rivista anarchica – maio 2013

Tradução > Carlo Romani

agência de notícias anarquistas-ana

pingos roxos
em meio às águas verdes
pétalas de ipê

Marcio Luiz Miotto (Pitu)