[Em julho de 2006 falecia Murray Bookchin, entre as mensagens que foram divulgadas em memória do importante teórico libertário havia uma que podia surpreender a quem tinha só um conhecimento superficial da causa kurda e sua luta anti-imperialista.]
J. Martínez (Solidaridad Kurdistán) | Periódico CNT
O PKK expressava ante a morte de Bookchin seu reconhecimento como um “dos maiores cientistas sociais do siglo XX”, o PKK reconhecia a contribuição que suas ideias haviam feito ao desenvolvimento da teoria socialista e expressava que suas “teses sobre o Estado, o poder e a hierarquia serão implementadas e realizadas através de nossa luta”, e seguindo estas ideias o PKK prometia levar à prática o confederalismo democrático.
O quê aconteceu para que desde uns primeiros escritos citando Stalin, Lenin ou Mao, agora a ênfase se colocara no libertário Murray Bookchin?
No ano de 1978 se constituía no Kurdistão sob domínio turco, o Partido dos Trabalhadores do Kurdistão (PKK). Esta agrupação política surgia com umas ideias muito claras, o estabelecimento de um Estado kurdo independente e socialista. O PKK em seus primeiros documentos refletia este ideário. Em seu Manifesto o PKK se definia como “uma organização política sob o guia do socialismo científico” e ainda crítico com políticas que consideraram oportunistas e revisionistas da URSS do momento, o PKK se mostrava partidário da luta socialista e de libertação nacional sob o auspício desta União Soviética.
Mas o desenvolvimento tanto da luta que o PKK realizará, como as mudanças na geopolítica internacional afetarão profundamente o programa e estrutura do partido kurdo. Diferente de outros movimentos políticos o PKK é capaz de realizar uma leitura crítica da realidade, o partido é capaz de analisar os acontecimentos ocorridos em torno do sistema soviético e as ideias do socialismo real e dos movimentos de libertação nacional. Neste sentido o Congresso do Partido de 1995 exemplificará pela primeira vez de forma mais evidente as mudanças que se estavam produzindo. A resolução deste Congresso qualifica o período do socialismo dominado pela influência soviética como uma fase de “socialismo primitivo e brutal” e advoga por um novo período na luta socialista. Não só isto, senão que o abandono da bandeira da foice e o martelo, ou a substituição do “Comitê Central” pela “Assembleia do Partido” evidenciarão este processo de evolução na concepção do socialismo do movimento de libertação kurdo.
Mas as mudanças mais importantes chegam no final dos anos 90, o processo de evolução ideológica do partido continua sobretudo pela mão de seu líder Abdullah Öcalan, e sua detenção em 1999 marcará um antes e depois na história do movimento de libertação kurdo.
A nova situação de Öcalan será aproveitada pelo líder kurdo como um espaço de negociação com o Estado turco e por sua vez será um amplificador para as novas ideias que estavam gestando no PKK e sobre as que Öcalan está trabalhando. Os documentos de defesa que o líder do PKK elabora tornam-se documentos de análise histórica e política que começam a desenvolver os novos paradigmas do movimento de libertação kurdo.
Mas ainda passaram uns anos até que o novo arcabouço teórico seja totalmente desenvolvido e amadurecido por Abdullah Öcalan, entre 1999 e 2004, em que se consolidam tanto as novas ideias como a nova estrutura do movimento de libertação kurdo, haverá um elemento fundamental que permitirá que precisamente o novo paradigma do movimento kurdo se desenvolva tal como agora o conhecemos.
Em 2002 Öcalan começou a estudar a obra de Bookchin, encontrando nela uma grande inspiração e recomendando sua leitura aos militantes e políticos kurdos, e já em 2004 Öcalan se mostra claro entorno a sua afinidade às ideias desenvolvidas por Bookchin em sua obra. Só um ano depois o novo ideário do movimento de libertação kurdo está já maduro e se lança oficialmente e em paralelo à reestruturação organizativa do movimento.
Em 20 de março de 2005 foi anunciada a formação da Koma Komalen Kurdistan (que depois será renomeada como Koma Civakên Kurdistan – União de Comunidades do Kurdistão) e o confederalismo democrático fica definido como o ideário desta nova organização e como o modelo para a libertação do povo kurdo e os povos do Oriente Médio.
O confederalismo democrático é já um sistema completo que conclui este processo de mudanças e impasse em que tanto o ideário como a estrutura do PKK pareciam encontrar-se, e começa um novo período marcado por estes novos paradigmas.
O confederalismo democrático não interpreta o direito de auto-determinação dos povos como o direito ao estabelecimento de um Estado-nação kurdo senão que considera que este não faria mais que “substituir as velhas correntes por umas novas”. Ante isto se propõe um modelo de auto-governo que se constroi sobre “a autogestão das comunidades locais e se organiza em conselhos abertos […]. Os próprios cidadãos são os atores de um governo deste tipo, não as autoridades estatais”, assim o expressa Öcalan.
Como visão integral da libertação da sociedade o confederalismo democrático tem um acentuado caráter anticapitalista. Em sua oposição à economia capitalista propõe um sistema econômico baseado nas “comunas ecológicas e econômicas”, bases para a criação de um sistema econômico que obedeça a dar resposta às necessidades fundamentais da sociedade e não à obtenção de benefícios, e que seja capaz de proteger o meio ambiente. A importância de criar uma sociedade ecológica é outro dos pilares do confederalismo democrático e é uma mostra clara da impressão que Bookchin teve sobre este.
Por último, desses pilares a assinalar temos que falar da libertação da mulher, a auto-organização das mulheres dentro do movimento é um elemento fundamental e a luta contra o patriarcado é parte fundamental do programa dos revolucionários kurdos, tal como o disse Öcalan, “sem a mulher livre não pode haver um Kurdistão livre”.
Nas quatro partes do Kurdistão o movimento de libertação kurdo está lutando para construir uma sociedade livre, Kurdistão Norte e Rojava são os exemplos mais claros, onde apesar da enorme repressão e da guerra, o confederalismo democrático está em marcha.
O movimento revolucionário kurdo junto a seus povos irmãos estão dando uma lição ao mundo. A modernidade democrática frente à modernidade capitalista, frente a história da ocupação, o colonialismo e a invasão, o povo kurdo está construindo uma sociedade democrática, igualitária e livre.
Fonte: Periódico CNT nº 416 – Fevereiro de 2015.
Tradução > Sol de Abril
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Não vejo muitas possibilidades da ‘esquerda tradicional’ brasileira – mesmo as que reclamam para si um viés ‘libertário’ adequado à ocasião, como o PSOL… chegar a adotar uma proposta clara como essa que reflete o municipalismo libertário de Bookchin e indica na sua organização mesmo a estruturação mais apropriada a quem realmente deseja construir um processo que se direciona a uma autogestão. No campo anarquista a coisa mais parecida com uma ‘proposta clara’ acabou – no meu parco entendimento do resultado – numa espécie de híbrido estranho com um ranço de partido político vintage bolchevique ainda que se declare, a cada momento, bakuninista que é aquilo que resultou da ‘Plataforma’… Eu gostaria muito de construir uma ‘federação organizada’ e ativa com propostas para a sociedade com a clareza de um programa municipalista – sem que isso significasse ‘atuar eleitoralmente’ mas sem abrir mão da pressão popular e do emponderamento dos ‘de baixo’ junto as instâncias administrativas reais do cotidiano e não nas ilusórias ‘câmaras’ e ‘parlamentos’… (junto NÃO é ‘dentro’ dos cargos…)