“O idealismo é necessário, mas não baseado em irrealidades ou em quimeras, mas sim na capacidade real de aplicar as ideias necessárias à transformação do que nos rodeia. Há que decifrar os limites dos próprios mitos, sejam ideológicos, teóricos ou de qualquer espécie; descobrir a falsidade dos pensadores de referência e passar a aplicar as ideias que nos são próprias tendo em conta que por muitos antecedentes que o que propões tenha, e por mais referências que faças a experiências passadas (a história deve entender-se como uma pista, não como uma reminiscência), a verdade é que esta experiência, esta em concreto, ninguém a tentou fazer antes; só tu e os que te acompanham. O discurso exclusivamente auto-referencial dilui-se e o que fica é a dura realidade. É dura, mas é tua.”
– Excerto do texto “Anarquia a pie de calle (I)”, publicado na web regeneracionlibertaria.org por um membro da Federação de Anarquistas de Gran Canarias.
Faz já mais de dois anos que o projeto de comunidade La Esperanza começou a andar. Dois anos desde que, em princípios de 2013 e no seio das lutas contra os desalojos que ganharam força com o 15M, a Federação de Anarquistas de Gran Canarias (FAGC) contatou com a proprietária de uma série de blocos de moradias desabitados no município canário de Santa María de Guía. Por aquela época, a FAGC se encontrava desenvolvendo várias iniciativas neste campo, destacando o Grupo de Resposta Imediata contra os desalojos e a Assembleia de Inquilinos e Desalojados. Os pisos de Santa María de Guía se encontravam em processo de ser embargados por uma dívida hipotecária com o grupo Bankia. Esta situação, unida aos vários roubos de material que haviam sofrido as moradias, fez com que conseguissem chegar a um acordo com a proprietária para que cedesse temporariamente os pisos ao projeto que a FAGC pretendia iniciar. Uma iniciativa de moradias para famílias sem recursos e em situações altamente complicadas.
Hoje em dia, em meio do pantanoso mundo dos processos judiciais, a propriedade destes blocos seguiu um tortuoso caminho até chegar em mãos do SAREB (o famoso “banco mau”), que no momento que se anulam todos os recursos abertos, poderá iniciar o processo de desalojo de La Esperanza. Apesar disso, desde 2013 o projeto seguiu crescendo a grandes passos, e atualmente a totalidade das 71 moradias com que contavam os blocos estão ocupadas, com capacidade de cerca de 250 pessoas, das quais 150 são menores de idade. Mas além de ser um espaço habitacional, La Esperanza nasceu com a intenção de criar um projeto social mais amplo, uma verdadeira comunidade. Neste sentido, se propõe uma forma distinta de afrontar a convivência e a gestão e construção da vizinhança. Como eles/as mesmos/as comentam, as moradias estão socializadas, com o que a propriedade se encontra em regime comunitário. Isso supõe, portanto, que os trabalhos de manutenção recaem sobre o conjunto dos habitantes de La Esperanza, que os autogestionam na base de suas próprias capacidades. E também implica que quando alguma família deixa a moradia, ao encontrar-se em uma situação laboral e econômica mais folgada, o piso volta à comunidade e esta o põe a disposição de uma nova família com necessidades. Posto que a iniciativa surge para tratar de dar solução estável a casos extremos de pobreza (famílias sem recursos nem renda, normalmente com filhos/as e em situações fodidas como longos períodos de desemprego ou casos de violência de gênero), não se cobra um aluguel pelas moradias, senão que unicamente se colabora com uma cota de 25 euros por mês (voluntária, em que cada um/a colabora mais ou menos em função de suas possibilidades) para poder enfrentar a compra das grandes cubas de água com as quais se abastece La Esperanza. Estes problemas no abastecimento de água, que se unem aos da luz, fazem com que a poupança e a economia destes recursos seja algo imprescindível em seu dia a dia.
Todas as decisões que afetam ao conjunto da comunidade se tomam nas assembleias, que se realizam uma vez por mês (exceto em casos de urgência) e das que partem as comissões que se encarregam do trabalho prático cotidiano. Como já assinalamos, a ideia deste projeto é que suponha uma mudança no conjunto das relações de vizinhança, de modo que trata de potencializar que todos os conflitos entre moradores/as que surjam, se resolvam de forma direta entre os/as afetados/as, ou com o apoio da assembleia se for necessário, mas sem recorrer “a nenhuma forma de violência, seja pessoal ou institucional”. Neste sentido, também existem outros projetos convivenciais como são uma horta comunitária ou o trabalho com os/as numerosos/as meninos/as da comunidade.
Se nestes últimos meses a ocupação se converteu em notícia destacada em vários meios de comunicação, notícia que foi crescendo como uma grande bola de neve, foi em grande medida porque assim o quiseram os/as habitantes de La Esperanza. Após todo este tempo de caminho percorrido, seus problemas se agudizaram na forma de perseguição por parte da Guarda Civil. Os/as moradores/as da comunidade denunciam que, de um tempo para cá, estão sofrendo constantes gravações desde imóveis próximos por parte das forças da ordem, assim como que várias pessoas sofreram identificações ou inclusive detenções arbitrárias (que acabam derivando em sanções administrativas, com o que isso supõe para uma pessoa que vive em La Esperanza é por sua falta de meios econômicos). Partindo deste ponto, se iniciou uma campanha de difusão da comunidade, com a que dar voz à situação atual do projeto, suas necessidades e suas próximas metas. E antes de tudo, apresentar suas conquistas. Porque se algo gostaríamos de destacar deste caso é o que conseguiram, como o trabalho cotidiano de toda esta gente gerou, a partir do nada, uma ferramenta de transformação social e resolução de problemas reais muito válida. A autogestão e o trabalho de base funcionando no dia a dia, enfrentando problemas e seguindo em frente.
Voltando sobre seus próximos passos, desde La Esperanza se está tratando de regularizar o abastecimento básico das moradias, a saber, água e luz, que como já dizemos, atualmente resolvem precariamente. Por outro lado, e ante a nova situação que se gerará quando o SAREB seja plenamente proprietário das moradias, desde a assembleia de habitantes da comunidade já afirmam sua intenção de lutar contra o possível desalojo propondo a opção de converter as moradias em pisos de proteção oficial sob regime de aluguel social (subordinando este aluguel a 20% da renda familiar). Mas o que sim deixam claro, é que não vão deixar de lado seu funcionamento interno, sua gestão horizontal e autônoma de sua vizinhança. Mas tudo isto é coisa do futuro, e esperamos poder retomar este tema nos próximos meses com boas notícias.
Para atualizar a informação sobre La Esperanza e, se quiser, ver como apoiar esta iniciativa, recomendamos visitar a página web da Federação de Anarquistas de Gran Canarias,anarquistasgc.net.
Fonte: http://www.todoporhacer.org/comunidad-esperanza
Tradução > Sol de Abril
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