Jorell Meléndez
[Algumas ideias sobre como anarquizar o pensamento histórico e ir contra a História. Jorell Meléndez é o autor de Vozes libertárias: As origens do anarquismo em Porto Rico (3ª ed. Lajas: Editorial Akelarre e o Centro de Estudos e Investigação do Sul Oeste de Porto Rico, 2015) e co-editor, junto a Nathan Jun, de Without Borders or Limits: An Interdisciplinary Approach to Anarchist Studies (Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2013). Apresentou sobre o tema do anarquismo em Porto Rico, Estados Unidos, Canadá e Europa. Seus trabalhos foram publicados em Caribbean Studies Journal, Latin American Perspectives, Theory in Action: The Journal of the Transformative Studies Institute e Kalathos: Revista Transdisciplinaria, como em periódicos e páginas da web. Atualmente se encontra cursando seus estudos doutorais na Universidade de Connecticut. Sua página web: www.jorellmelendezbadillo.com.]
O que segue são algumas ideias sobre como pensar a(s) história(s) de outra maneira. O nome de pensamentos surge como um rechaço à noção de teses a qual se nutre da autoridade daquele que as dita. Os pensamentos que seguem não pretendem armar um corpo teórico complexo, ser um guia ou apresentar alguma novidade, senão melhor expor algumas ideias que trago comigo e estou digerindo faz um tempo. Vale a pena dizer que não pretendem ser ideias completas senão que, como todo pensamento, são um trabalho em processo.
(1) Em sua obra, Against Method, Paul Feyerabend apontou até uma (des)organização epistemológica para poder desenvolver novos saberes e conhecimentos. Creio que é partindo de tal noção que se poderia organizar um pensamento histórico que rechace o positivismo ainda existente. A história como disciplina se institucionalizou de maneira dialógica com outros saberes que foram legitimados pelo racionalismo científico europeu até a segunda metade do século XIX.
Junto com o projeto de modernidade europeia que tentará impor-se hegemonicamente através do globo como referência única à “ilustração” do ser humano, a história ancorou sua validade social como uma das justificações científicas de tal expansão. É precisamente esse suporte científico o que deve, a meu entender, ser desarticulado para criar outro tipo de história.
(2) No final do século XIX, a história se consolidou como disciplina dentro de entornos acadêmicos. Os espaços de educação superior eram, e seguem sendo, regidos por estruturas de poder hierárquicas que excluíram tudo o que não se produzira dentro deles. É por tal razão que um grupo de eruditos, por exemplo, pôde deixar fora das narrativas históricas a culturas, civilizações, saberes e ideias por não ser compatíveis com o projeto de modernidade europeu.
Edward Hallet Carr, em sua obra Quê é a história?, individualizou a gênesis da história resumindo-a como tudo aquilo que é documentado pelo/la historiador/a. Me parece então que o pensamento histórico anárquico não deveria limitar-se aos saberes produzidos dentro da academia senão fomentar um diálogo transhistórico com comunidades epistemológicas que existiram e existem fora da torre de marfim. Isto, por sua vez, promove uma pluralização de interpretações e contradições que problematizariam não somente a história senão nossa percepção das relações sociais nas quais estamos submergidos.
(3) A história como saber se consolida de maneira dialógica com outras disciplinas que partiam do racionamento científico da época enquanto que simultaneamente as excluía. Quer dizer, criaram-se barreiras disciplinárias que compartamentalizaram o saber acadêmico para que estes pudessem legitimar-se simbioticamente. Para começar a sacudir os pilares científicos da história creio necessário uma aproximação que transgrida os cimentos destas disciplinas – como a antropologia, ciências políticas, sociologia, psicologia, entre outras – através de um diálogo trans- e inter-disciplinar.
(4) Da mesma maneira, como apontou Michel-Rolph Trouillot em Silencing the Past, a história segue regida por uma concepção teleológica do tempo sob a equação linear de “passado-presente-futuro”. Isto persiste ainda quando vários pensadores notaram, o tempo tal e como o conhecemos hoje em dia é uma construção social que não data mais além da revolução industrial. O passado então se constrói desde a imediatez do presente e a capacidade do/a historiador/a de criar narrativas, contos ou mitos. Ainda assim, como afirma Robert Darnton, devemos sacudir qualquer noção de familiaridade com aqueles que viveram no passado, pois estavam submergidos em imaginários sociais muito diferentes do nosso. Uma vez reconhecido isto, uma história anárquica deveria aspirar a entabular conversações trans-históricas com sujeitos históricos do passado desde o presente.
(5) Uma aproximação anárquica deve reconhecer a ideia de diferença. Quer dizer, as categorias como classe, grupos ou camadas sociais, civilizações e nações, entre outros, promovem uma noção estática de igualdade entre seus membros. Em troca, estas formas organizativas de pessoas, aparte de ser impostas pelxs historiadorxs – e não necessariamente ser representativas das realidades de tais sujeitos históricos – ignoram as relações hierárquicas e de poder que coexistem dentro delas. No estudo da história obreira em Porto Rico, por exemplo, o fato de ser parte da classe trabalhadora em princípios do século XX não impedia a criação de hierarquias entre obreiros destros e não destros, líderes e o obreiro comum, o masculino sobre o feminino, a heterossexualidade sobre a homossexualidade, o branco sobre o negro, entre outras.
(6) Fazer história não deve depender de sua utilidade no presente. Quer dizer, ainda que a história se utilizou para forjar mitos nacionais, a ideia da nação em si mesma, histórias do procerato e demais, o conhecer/criar o passado pode partir da mera curiosidade intelectual do/a investigador/a. A noção utilitária da história está de mãos dadas com suas origens cientificistas.
(7) Não há tal coisa como a objetividade do investigador/a, pois, em palavras de Joan W. Scott, toda história é política. E ainda que, como mencionamos anteriormente, a história não deve depender de sua utilidade, sim pode ser utilizada como uma arma. Por exemplo, o sistema de produção capitalista junto às relações sociais e simbólicas que reproduz pode ser remontado a um momento e espaço histórico específico. Por onde, a historização de como se desenvolveu pode ajudar a desarticular a percepção do capitalismo como um sistema holístico junto com sua aparente totalidade, o qual leva a pensar outras alternativas.
(8) Da mesma maneira que se reconhece a disciplina da história como um produto da modernidade europeia que silenciou e tentou apagar saberes e epistemologias alternativas, uma história anárquica deve subverter tal ação e tentar aprender desde a alteridade. Como historiador de Porto Rico e do Caribe, tento reconhecer que as ideias que alguns indivíduos desenvolveram em tal região geográfica, ainda quando foram importando ideias da Europa, foram resinificadas no Caribe para dar-lhe sentido a suas realidades. Em palavras de Jane Anna Gordon, estas ideias foram criolizadas. Isto, por sua vez, também deve reconhecer que tal região contêm seus próprios saberes e conhecimentos que foram desenvolvidos desde a exclusão e a alteridade.
(9) O silêncio pode, então, converter-se em uma categoria de análise em si mesmo. María Josefina Saldaña-Portillo argumenta que o silêncio é onde a alteridade e a universalidade convergem. A dificuldade está em encontrar tais silêncios. Uma vez encontrados, historizar o silêncio poderia dar-nos a oportunidade de explorar o inimaginável e provar os limites de nossa imaginação histórica.
(10) Uma história anárquica deve aspirar a pensar o impensável. Ainda que as estratégias possam variar, creio que seria efetivo tentar repensar as categorias que utilizamos, incluindo, por exemplo, o termo história e anarquia. A linguagem e as categorias que utilizamos podem limitar nossa capacidade de repensar situações, ideias ou símbolos.
Então, uma história anárquica deve questionar precisamente seu propósito começando pelo significado das categorias que lhe dão vida.
Nota: Devido à natureza informal deste escrito, a maneira em que foi pensado e arriscando-me a não ser o suficiente cientificamente rigoroso, não se incluíram notas com as citações mencionadas no texto. Ainda assim, para facilitar ao leitor qualquer revisão dxs autorxs citadxs, aqui as obras mencionadas no texto:
Carr, Edward Hallet. ¿Qué es la historia? Barcelona: Editorial Ariel, 2001.
Darton, Robert. The Great Cat Massacre and Other Episodes in French Cultural History. Nueva York: Vintage Books, 1984.
Feyerabend, Paul. Against Method: Outline of an Anarchist Theory of Knowledge. 4ta ed. Londres y Nueva York: Verso Books, 2010.
Gordon, Jane Anna. Creolizing Political Theory: Reading Rousseau Through Fanon. Nueva York: Fordham University Press, 2014.
Saldaña-Portillo, María Josefina. The Revolutionary Imagination in the Americas and the Age of Development. Durham y Londres: Duke University Press, 2003.
Scott, Joan W. Gender and the Politics of History. Edición revisada. Nueva York: Columbia University Press, 1999.
Trouillot, Michel-Rolph. Silencing the Past: Power and the Production of History. Boston: Beacon Press, 1995.
Fonte:
http://editorialakelarre.blogspot.com/2015/06/una-historia-anarquista-no-una-historia.html
Tradução > Sol de Abril
Conteúdo relacionado:
agência de notícias anarquistas-ana
Gotas de sangue
estão prestes a pingar:
pitangas maduras.
José N. Reis
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!