Por Iván Darío Álvarez
[Apresentação do coautor do Dicionário Anarquista de Emergência na Cúpula Mundial de Poesia pela Paz e Reconciliação na Colômbia.]
“Um mapa mundi que não inclua a utopia não merece sequer uma olhadela” – Oscar Wilde
Eu cheguei a pensar que ao abraçar a bela arte dos fantoches, escolhi uma opção de paz. Ao invés de ser um ator ou manejar uma marionete ou um objeto cênico, você poderia empunhar armas. Digo isto porque na minha juventude, nos primórdios dos anos setenta, os desejos de libertação coletiva passavam a considerar que neste país se fazia urgente uma transformação social radical.
Tudo parecia indicar que sob a tutela do voraz império ou das classes privilegiadas que governaram o nosso destino comum, a possibilidade de uma vida mais digna e justa, jamais chegariam. Portanto, você haveria que se unir aos de baixo, porque só a partir dali acreditávamos que iria surgir esse coro libertário, capaz de estourar para sempre os grilhões de séculos de opressão. Só faltavam amadurecer as condições objetivas e subjetivas, de modo que o velho mundo, cedo ou tarde, caísse e desse origem a uma etapa luminosa, que a partir daí surgisse esse novo homem, cuja maior encarnação desse mito na América Latina, tornou-se visível e nômade, graças a seres utópicos como Che. Com ele acreditávamos que a revolução estava ao virar da esquina. Hoje, melhor comprovamos com triste ironia que a mais repulsiva e dogmática reação pode estar vivendo ao largo, em frente ou ao lado de nossa casa.
Foi doloroso ver passar as páginas do calendário e as páginas trágicas de nossa história, para observar que a violência opressiva não acaba com a violência libertadora dos chamados rebeldes, mas, ao mesmo tempo e com o nosso pesar, engendrava novos monstros, com mais vítimas e carrascos, hoje tão difíceis de conjurar ou desterrar. Ou igualmente ver que o sangue derramado só serviu para aumentar a nobre árvore da memória que foi plantada tantas décadas atrás, no imenso jardim de tantos heróis mortos.
É certo que nós que sobrevivemos ao desamparo de tão grande horror, estamos mais velhos. E, no entanto, antes do desencanto geracional ou das idealizadas causas perdidas, ou a queda de tantos falsos e presidiários muros, não nos desmuralizamos. Quero dizer, não renunciamos a deixar cair ou sepultar a imaginação social ou política. Nessa passagem das lutas emancipatórias, nossa utopia não se armou como a dos outros, mas tornou-se arte e poesia graças ao encanto do teatro de bonecos. E no meio da guerra, seus horrores e indolências, nos autoconvencemos de que os fantoches são poesia, mesmo que nem sempre seu operador seja bom poeta.
Os fantoches em nosso país seguem sendo marginais, mas a partir do aceno das asas transparentes de uma efêmera “libélula dourada”, continuamos a acreditar que, como parte do desejo intemporal de sonhar que inspira o nosso ofício, e por ser uma parte vital do desenvolvimento da cultura, podem chegar a se converter em um desejo a serviço das maiorias, não só das crianças, porque o desejo de imaginar não é exclusivo delas. Nesse sentido, urge desamordaçar a criança que todos os adultos carregam amordaçada dentro de si.
Os Fantoches como criaturas sublimes da fantasia, abrem com suas piscadelas, um espaço de liberdade para todos os seres humanos. Desde longa data marionetistas têm prestado culto às musas libertárias que sempre enriqueceram a vida, impedindo com o seu canto, mumifica-las nos altares de pedra da uniformidade.
Nossa arte é, portanto, uma exploração da liberdade e a liberdade é esse olhar visionário capaz de investigar o desconhecido. Graças a essa frágil convicção de incendiários e profissionais da ilusão, que convertemos em obstinação e força ética, alimentamos obras que atestam uma ânsia irredutível, como por exemplo, “O doce encanto da ilha Acracia.”
Acracia em nossa imaginação é parte desse segredo utópico que já passamos para várias gerações de espectadores, é uma Arcadia da paz que agora vive em sua memória, é o território livre da imaginação, que felizmente não tem mesmo um lugar determinado na cartografia autoritária que ainda divide o mundo em nações. Mas nós sabemos que para chegar lá, temos que remar muito, não é necessário passaporte, ou atravessar polícias aduaneiras, bastar ter uma atitude não dominante em todas as áreas da vida cotidiana. Anarquia não tem vocação para pátria, por isso não tem fronteiras, nem têm amos, não há deuses, nem dinheiro, nem grandes personalidades, muito menos patriarcas, profetas ou messias. Não, acracia não é um estado, mas um estado generoso de espírito. Lá, o único medo que reina, é o medo de qualquer forma de poder. Medo absoluto a toda monstruosa fauna exótica dos poderosos, que com seu bajulador perfume, pervertem e contaminam todas as relações humanas. Na Acracia a poesia se confunde com a utopia. Nessa geografia imaginária todas as celebrações giram e se aglutinam em torno de todas as artes, o ato criativo é sempre um lugar de festa e de encontro da comunidade, uma experiência pessoal e coletiva, um teste único de vida compartilhada. Em Acracia se sonha que a arte não será um luxo para poucos, mas uma necessidade para muitos como um elixir que abonará a sua existência, para que esta se converta em uma bela flor que cresce com os novos ventos que sempre traz liberdade. Mas isso não significa que seja condescendente, ou renuncie ao seu papel crítico e transgressivo. Sabemos que a beleza em essência requer rigor e espírito rebelde e contraditor. Arte e liberdade são irmãos inseparáveis, por isso dizia o avô Barbas Vila: “Separar a arte da liberdade, é reduzir pela metade o coração da beleza”.
Na Acracia paz é a grande utopia, resume a mais seleta das grandes esperanças humanas, mesmo sabendo que nada está isento de ter um calcanhar de Aquiles ou natureza imperfeita. Já advertia o grande desmancha-prazeres e insone incorrigível Cioran: “Há sempre de estar com os oprimidos, mas nunca se esqueça que eles são feitos do mesmo barro que os opressores”. Mais além de sua lúcida e sentenciosa advertência, viver é conviver, e o grande desafio de nossa existência é a convivência. Assim, na Acracia a mais dura batalha ética é travada contra si mesmo, contra o desejo tirânico de submeter os outros. Ali se presume que o habitante anarquista tenha a virtude da sabedoria, o não-mando, e muito menos a obediência. Porque a Acracia vive de acordo com o velho preceito de Antonio Machado que nos diz: “Ninguém é mais do que ninguém, porque por muito que um homem valha, nunca terá o valor mais alto, do que o valor de ser um homem”.
Todo o ser humano é movido por ilusões ou conflitos, na Acracia isso não se ignora e se faz todo o possível para tornar o impossível possível e fazer desaparecer todas as causas que poderiam torpedear e quebrar a harmonia autoritária.
Estamos longe da ilha Acracia. A vida é bela, mas o mundo está feio em todas as partes. Temos de fazer muito para poder reencantá-lo, o ser humano ainda está para ser inventado. Seguimos ancorados na pré-história. Desde o passado não parece haver um só dia em que em qualquer canto do mundo não são içadas bandeiras da guerra ou se façam apologias diversas da barbárie. A Colômbia não é exceção. A governos mais centralizados ou totalitários correspondem instituições burocráticas e militares cada vez mais rígidas e intocáveis. Por isso as utopias libertárias são mais vigentes que as pseudo utopias – democráticas ou autoritárias, que até hoje não têm feito nada além de repetir em todo o mundo, a mesma cantiga da velha e inflexível ordem burguesa. Mas continuamos a suspeitar que o capitalismo selvagem ou socialismo real, restringem a liberdade e sempre que lhes convenham afogam a justiça. E se não há liberdade do lado da justiça social, é evidente que não pode haver paz. A paz com esses dois imprescindíveis atributos, é por isso que a grande utopia que seguirá viverá agora e para sempre. Ela permanece acesa em nossos corações e precisa encontrar seu espaço para iluminar ainda mais o futuro.
Até agora vive em nossas obras que nós inventamos em nosso desejo sonhador de marionetistas, em nosso trabalho de artesãos da fantasia e na memória de nosso modesto público, que pôde viver e se agitar nos sonhadores limites do palco, graças ao fogo que invocam os fantoches, esses cúmplices sagrados da utopia, que também mantém viva a chama da imaginação, apesar da longa história infame de uma civilização quebrada, que não só está matando o homem com o progresso e guerras, mas também a natureza. O planeta azul está doente. Mas o desejo de paz continua vivo, sobrevive contra todos os demônios da guerra. A imaginação não se rende. Sem paz não há vida. A luta pela paz é uma luta pela vida.
Fonte: http://www.festivaldepoesiademedellin.org/es/Festival/25/IICumbre/07.html
Tradução > Liberto
agência de notícias anarquistas-ana
Ao sol das cinco
a sombra da minhoca
surge devagar.
Masatoshi Shiraishi
Excelente texto. Espero que cheguemos logo a Acracia.