Por Renzo Dalessandro
Este mês marcou um ano do brutal genocídio israelense em Gaza e Rafah, cujo saldo foi de 1.500 civis palestinos mortos (539 meninos e meninas), milhares de feridos, 1,8 milhões de palestinos deslocados para além de mais de 370 mil meninos e meninas afetados psicologicamente. Os 50 dias de bombardeamentos de Israel era uma indiscriminada punição coletiva que nenhuma pressão internacional foi capaz de parar. Dentro de Israel, as manifestações de solidariedade de grupos de anarquistas com os palestinos foram abafadas. Amitai Ben-Abba, membro do grupo Anarquistas Contra o Muro de Israel, compartilha conosco sua visão e experiência de resistência contra a violência e o estado de Israel ao sul de Hebron. Anarquistas Contra o Muro nasceu da Segunda Intifada e da organização Ta’ayush¹. Ben-Abba aborda suas impressões e táticas sobre a resistência anarquista em Israel e nos dá uma visão interessante para a análise da conjuntura de resistência global.
Pergunta > Qual é a utopia que perseguem os anarquistas israelenses?
Resposta < Não é muito importante definir uma utopia, especialmente concebida como uma solução com um Estado ou dois Estados. Não falamos sobre essas coisas, pelo menos não publicamente. O que está sendo procurado é uma coincidência na resistência. Isto é, de fato, o significado de Ta’ayushque ‘conviver’ em árabe. Não há uma utopia ou uma finalidade, mas que você tem que criar o que você quer ver no mundo a partir da maneira em que você se organiza no presente. Nossa concepção é solidariedade, resistência e descolonização a partir da luta que está em nossas inter-relações.
Pergunta > Concretamente a posição política da Ta’ayush, é a recuperação de terras palestinas ou a integração dos palestinos em uma sociedade multicultural?
Resposta < Não é para uma integração. Nosso trabalho é de ação direta para a recuperação de terras. As famílias que têm um direito histórico à terra são acompanhadas por nós. Utilizamos métodos práticos e eficazes para tal recuperação: a tática é usar nosso ‘privilégio’ como cidadãos israelenses e, como família, entramos na terra, e quando os soldados ou colonos que se encontram perto da terra tentam nos retirar, opomo-nos através da desobediência civil, porque são terras Palestinas sujeitadas às leis de Israel. Depois que somos presos nós entramos em um processo legal hierárquico que vai subindo até chegar ao Tribunal. Lá se define se as terras são Palestinas e ao deliberar uma decisão de propriedade o exército deve respeitar esse direito. Então você tem que acompanhar as famílias em seu acesso à terra até que o exército permita. Estou fazendo uma simplificação, a verdade é muito mais complicada do que exponho, cada caso é diferente e esta é a tática que usamos em Ta’ayush.
Pergunta > Mas essas recuperações se dão no âmbito dos espaços jurídicos, administrativos e políticos propostos pelo mesmo estado de Israel. É possível construir um projeto político de resistência a longo prazo?
Resposta < Esta é uma dos nossas principais complicações. Isto é só uma tática e uma maneira de recuperar terras. Nós temos que criar resistências mais profundas junto com as famílias das organizações de base nessas cidades pequenas, como temos feito na aldeia de Khalid, ao sul de Hebron. Devo dizer também que o uso do ‘privilégio’ é bastante complexo e que o que fazemos visa construir uma anarquia de convivência, resistência e descolonização, além de muitas outras coisas no acompanhamento, trabalho e ações diretas. Também fazemos ações diretas para quebrar os bloqueios. O exército faz regularmente bloqueios nas ruas para impedir o acesso de palestinos a suas aldeias. As ruas são o único acesso que têm para entrar em suas terras e é o caminho para levar suas ovelhas para pastar, ou para obter água (porque o povo palestino não tem acesso à água e tem que comprar de tanques privados). Então o que fazemos é acompanhar as pessoas e remover bloqueios para permitir que passem. Isto nos conecta com as formas como essas pessoas organizaram os protestos contra a ocupação. Por exemplo, na aldeia de Sutzia, jogamos um papel em protestos contra a demolição de suas aldeias. Existem ordens de demolição em cada lugar das cidades pequenas. Agora mesmo, enquanto falo, os militares estão executando ordens de demolições em vários lugares. Neste caso nós estamos falando sobre uma vila de 200 habitantes e ainda fazemos campanha contra o exército para impedir a demolição desta aldeia.
Em termos do que pergunta, o aspecto utópico da solução, o exemplo que você está procurando, você vai encontrar nos Anarquistas Contra o Muro. Inicialmente, no protesto de Mes’ha, contra o muro do apartheid, onde os anarquistas e os palestinos do Comitê Popular vieram a viver juntos para propor uma forma de coexistência diária a partir da convivência durante as operações. Isso era algo muito raro e muito difícil de conseguir. Muitas coisas surgem para nos separar quando tentamos criar esta forma de resistência. Há um movimento inter-palestinos contra a ‘normalização’. Normalização é quando você trabalha com o ocupante, com o opressor, as pessoas tendem a normalizar essa situação de desigualdade. Isso acontece com ONGs ou grupos de diálogo que tendem a normalizar as condições. Você pode criar amizades e relacionamentos sem tentar desfazer as estruturas que permitem a injustiça, e este é um risco que corremos quando estamos a trabalhar nisto, podemos cair nisto e entendemos que este é um ponto de preocupação para muitos dos ativistas palestinos, que tomam suas precauções para trabalhar com os israelenses, mesmo quando estamos a dizer-lhes que somos totalmente contra a colonização e queremos demolir o estado de Israel, a liberdade de presos políticos, etc.
Pergunta > Me dá a impressão de que, assim como vocês estão evoluindo em seus conceitos e táticas, o estado de Israel também; uma das táticas que nós vemos, pelo menos no México (embora não exclusivamente) é que o estado considera o anarquismo e anarquistas como terroristas, isso também ocorre com vocês?
Resposta < Sim, definitivamente. Muitas vezes eles nos chamaram “apoiadores de grupos terroristas”. Quando removemos os bloqueios nas estradas podem nos acusar de apoiar o terrorismo, mesmo se for um ato completamente humanitário permitir que pessoas levem água para sua aldeia. Então, se você fizer isso você está em risco de ser acusado de apoiar terroristas. Nossas táticas como anarquistas israelitas geralmente não são tão militantes como os anarquistas em outros contextos como o mexicano, o espanhol ou italiano, que estão mais próximos à luta na rua e sabotagem. Nós nos limitamos ao acompanhamento e talvez seja um problema que não corremos os mesmos riscos dos palestinos quando, nas manifestações, os palestinos estão atirando pedras, não participamos. Criamos situações em que os militares devem cumprir com regulamentos de tiro e não aonde podem disparar contra pedras. Mas não estamos envolvidos em táticas, desenhos ou nas confrontações das organizações de base dos palestinos.
Pergunta > O que resta do espírito utópico comunista anarquista dos kibutz na resistência dos anarquistas israelitas pro-palestina?
Resposta < Há uma longa história do anarquismo israelita, mas em geral, não há nenhuma continuidade ideológica entre nós e os primeiros anarquistas dos kibutz. Claro que sabemos deles, mas não há uma inspiração direta. Sem dúvida há vários exemplos interessantes. Trumpeldor, um famoso lutador sionista, identificou-se como anarco-socialista e comunista, mas na minha perspectiva isso era na realidade um projeto colonialista que cooptou muitos anarquistas europeus dentro do sionismo que expulsava os palestinos de suas terras.
As terras apropriadas pelos kibutz foram confinadas exclusivamente para a mão de obra Hebraica, que não usavam força de trabalho palestina e que boicotavam, inclusive, seus produtos. Eles eram militantes do deslocamento palestino, colaboraram com o mandato britânico. A esquerda foi ainda mais dura do que os primeiros sionistas ultradireitistas. Talvez houvesse alguma continuidade durante os anos 50 e 60, havia um grupo cultural anarquista em Tel Aviv, que eram de refugiados da segunda guerra mundial. O anarquismo israelense atual vem, segundo penso, do queer punk do início dos anos 90 e o final dos anos 80. Existem outros exemplos interessantes como famílias metade israelenses e metade palestinas cujos irmãos começaram a aparecer na cena punk no final dos anos 60 e início dos 70. Então do meu ponto de vista, o anarquismo de Tel Aviv, no final da década de 90 até 2000 foi retomado pelos “anarquistas contra o muro” como uma representação da solidariedade israelense com a resistência palestina.
Pergunta > Que lições que você pode retirar de sua experiência com o zapatismo que podem ser úteis para ambas as resistências?
Resposta < Há tantas coisas para aprender do zapatismo, tão incríveis e além das minhas expectativas. Eu vim a conhecer um pouco do que li sobre os Zapatistas, a resistência indígena e anarquismo na América Latina e não posso deixar de pensar que não é nada do que os outros pensam, ou mencionaram, eu sinto que é completamente diferente ao que foi dito. Depois de passar algum tempo nas comunidades zapatistas, vejo que não há nenhum zapatismo na Palestina. Ativistas internacionais que conheci queriam um zapatismo palestino, mas não é o que temos. Os zapatistas estão muito bem organizados, cada cidade está pronta para se defender por si mesma. Os zapatistas são bem formados politicamente e trabalham muito duro, o que me impressionou muito. Acho que os anarquistas podem aprender muito com os zapatistas, principalmente em relação a organização e a disposição de trabalho, a questão da delegação de poder e rotação de figuras de autoridade por ciclo de tempo pode ser útil especialmente quando organizamos a resistência contra o Estado. Este é apenas um exemplo, eu acho que o zapatismo não pode ser importado para a Palestina. Quando vejo as realizações e a capacidade mostrada aqui, adoraria que as pessoas dos subúrbios tivessem essa incrível capacidade de organização e compreensão da economia em um processo lento, mas estável, para não deixar sua cultura e suas tradições. Então tem sido muito instrutivo para mim.
Pergunta > Como podem definir o anarquismo que representam politicamente?
Resposta < Eu não o definiria de forma alguma, porque todas as pessoas enxergam as coisas de forma diferente. Além disso, nós somos muito poucas pessoas falando sobre os anarquistas israelenses. Há dois aspectos para dimensionar, o primeiro é qual o tipo de anarquismo das intifadas palestinas? E que tipo de anarquismo se pode entender do lado israelense e judeu de uma perspectiva mais acadêmica? No caso do segundo, se podem mencionar pensadores anarquistas judeus como Martin Buber, mas eu não diria que ele tinha ou tem qualquer influência em nossas práticas. Então não poderia defini-lo com o anarquismo israelita ou judeu, mas prefiro dizer que os anarquistas de Israel têm se expandido muito bem nas lutas que levam.
Há muita experiência em relação aos direitos das mulheres, também na defesa dos direitos dos animais que é um grande assunto em Israel. Em termos da resistência popular palestina, talvez a atitude colonialista tenha impulsionado algo do anarquismo, mas você não pode dizer que é anarquista em um sentido de uma organização descentralizada. É interessante que, nos últimos meses, houve um ressurgimento da resistência palestina militante, pessoas que estão jogando coquetéis molotov em uma resistência que não se destina a ser pacifista e isso não é levada em conta pela esquerda israelense ou Palestina, uma vez que ela é muito descentralizada. Eles são simplesmente grupos de pessoas saindo para atacar os soldados e assentamentos e ninguém os organiza.
Uma das únicas fontes que podem ser confiáveis é a extrema esquerda israelense, porque eles estão interessados em nossa luta e se veem afetados por ela. O anarquismo israelita e a extrema esquerda estão separados da luta popular palestina fundamentalmente pelos nossos princípios de ‘não-violência’, por nossa incapacidade de resistir a um mesmo nível de risco e nossa reivindicação que essa resistência palestina seja pacifista ao estilo de Gandhi, mesmo não havendo nenhuma evidencia, há algumas pessoas que trabalham nesse sentido, mas a um nível de massas, a definição da violência da resistência palestina é completamente diferente, como podemos defini-la. A maioria dos palestinos vive num contexto tão diferente para nós e nossos protestos pacíficos. Os graus de contenção que vivemos em nossas diferentes formas de resistir definitivamente nos separam.
Pergunta > Ultimamente desde o zapatismo se analisa o confederalismo democrático curdo como uma forma de organização política interessante para refletir e com o qual se construir pontes: como percebem vocês – como o movimento anarquista – esta proposta?
Resposta < Pelo meu conhecimento não estamos absolutamente envolvidos; é curioso que estando perto estão tão longe de nós, porque existem muitas guerras que nos separam. Eu pessoalmente estou fascinado com a proposta do confederalismo democrático e espero conhecê-la melhor. Sabemos que os italianos estão mais envolvidos. Falaram-nos da “Rojava Calling”, uma proposta italiana (em inglês para mundializarla) que faz um tipo de acompanhamento em Rojava e nos parece muito interessante a ideia de pessoas de diferentes religiões lutando juntos, que sejam as mulheres que levam a defensiva contra o Estado Islâmico. É interessante ver uma proposta que tem princípios anarquistas funcionando. Na verdade, há em Israel um novo grupo de anarquistas-comunistas, cujo nome é “unidade”, que realizou protestos na Embaixada da Turquia, apoiando o PKK.
Pergunta > Finalmente, depois de sua experiência nas comunidades zapatistas pensa que se pode conseguir mais pontes de solidariedade entre o movimento anarquista israelense e o zapatismo?
Resposta < A influência que o zapatismo teve no meu pensamento político, depois desses meses, sem dúvida, terá uma influência sobre o meu comportamento político e na minha maneira de ver as coisas e organizar-me em Jerusalém, talvez essa seja a pequena ponte que foi construída em mim mesmo. Talvez para as bases camponesas as informações que eles têm de Israel são bastante bíblicas, então, talvez as pontes possam ser reforçadas através das organizações aderentes a Sexta.
Sobre essa ideia, a sociedade civil palestina espera muito mais pressão internacional contra Israel. Há o movimento Boycotts, Divestment and Sanctions (BDS) buscando a imposição de sanções sobre o estado de Israel, e esta é uma maneira interessante para os ativistas de outros países para se envolverem com o trabalho de solidariedade na Palestina. De fato, Israel admitiu publicamente que este movimento é uma ameaça, posto que as pessoas estão boicotando produtos israelenses, instituições públicas, tais como universidades, boicotando esportes israelenses, e promovendo as sanções de outros Estados; há muitas ações concentradas para expressar solidariedade com a sociedade civil palestina e muitas pessoas no México podem envolver-se com este movimento, sem dúvida.
[1] Ta’ayush é um movimento judaico-árabe criado no ano de 2000, que significa “viver juntos”, ou “coexistir” e agrega uma rede de organizações árabes, judias, israelenses e palestinas para reflexão e ações não violentas na escalada de violência na região.
Tradução > Liberto
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