[Florência: “Vetrina dell’editoria anarchica e libertaria”, 3 de outubro de 2015. Intervenção de Tomás Ibáñez no debate “Anarquismo e novos movimentos”.]
O caráter sócio-histórico do mundo humano faz com que sempre esteja imerso num processo de mudança, um processo cujo tempo é mais ou menos rápido segundo as épocas e, é óbvio que a nossa época experimenta um forte aumento dessa aceleração de mudança. O nosso mundo não só se está tornando líquido, como explica Baumen, bem como a sua fluidez evoca, por momentos, uma torrente que se precipita não se sabe bem para onde.
O antagonismo político não permanece à margem dessa aceleração de mudança e as manifestações de Seattle em 99, anunciavam, sem dúvida, o início de uma mudança de ciclo. Uma mudança de ciclo cuja genealogia remete a elementos antecedentes como, por exemplo, Maio de 68, ou o levantamento zapatista de 94, mas que não se manifestou com total claridade até 2000.
Esse novo ciclo promove, entre outras coisas, o crescente desenvolvimento de formas não institucionalizadas de ação política, substituindo partidos e sindicatos por movimentos, por redes e por coletivos sociais.
Creio que para entender as coordenadas do novo espaço subversivo há que recorrer a uma espécie de cocktail analítico feito de anarquismo e de pós-estruturalismo de tipo, principalmente, foucaultiano.
Agora, se essa mistura, esse cocktail, resulta útil para decifrar essas coordenadas é, precisamente, porque a nova realidade subversiva incorpora elementos provenientes, tanto do anarquismo, como do pós-estruturalismo.
À parte essas ilações, o que sim, podemos constatar é que os multitudinários eventos protagonizados pelos novos protestos, a proliferação de experiências de economia solidária, com as suas cooperativas e redes, ou a multiplicação de centros sociais autogestionados, confirmaram um amplo tecido alternativo que tenta escapar à lógica capitalista e construir, ao mesmo tempo, instrumentos de luta.
É, por isso, bem sabido, por todos, que esse tecido alternativo re-encontra alguns princípios anarquistas, tais como a horizontalidade, a ação direta, ou a crítica à representatividade, entre outros. Mas não creio que seja muito útil repassar aqui esses princípios, parecendo-me mais interessante debruçar-me em algumas dessas dimensões que, de modo geral, fazem parte dos novos espaços de subversão. Mencionarei cinco delas:
• Em primeiro lugar, é óbvia a grande importância que adquiriu o prefixo “auto”, como princípio organizador desses espaços. Autogestão e, incluso o imaginário da autogestão generalizada. Autodeterminação, no sentido de poder decidir sobre si mesmo, como individuo, ou como coletivo. Autonomia, mas autonomia de verdade, aquela que não pode ser outorgada e só se institui, exercendo-a.
• Em segundo lugar, ressalta o caráter pré-figurativo das políticas subversivas. De fato, considera-se que as ações desenvolvidas e as formas organizativas adotadas, devem refletir, já de si, as finalidades perseguidas; devem prefigurar as mesmas, pois o anarquismo defende que a forma da luta nunca é separável dos fins que a determinam.
• Em terceiro lugar, manifesta-se o caráter “do presente” das agendas políticas, os objetivos movem-se da sua localização no futuro para práticas presentes nas agendas políticas, os objetivos mudam-se, desde esse mesmo futuro, para as práticas inseridas na realidade imediata. Deste modo, o olhar descentra-se das macrotransformações totalizantes, para mudanças limitadas, mas radicais. A mudança radical já não é algo que está por acontecer, mas encontra-se, sim, ancorada no presente; a revolução já não se situa no final do caminho percorrido pelas lutas, mas sim é constitutiva da própria ação subversiva.
• Em quarto lugar, sem esquecer que o discurso é também uma prática, privilegiam-se as práticas que sobrepassam o âmbito discursivo, realçando a importância do fazer, mais precisamente, do “fazer em conjunto” e das ações concretas. Nesse sentido, como bem remarca o “Comité Invisível”, no seu último livro, o importante nas praças ocupadas foi o organizar-se, o inter-atuar, o “fazer em conjunto”, o conviver cotidiano, o construir coletivamente práticas partilhadas, mais que os discursos desgarrados na esfera do simbólico.
• Por fim, o quinto aspecto consiste no hibrido entre categorias que se consideravam, até há pouco, mutuamente exclusivas. Esse hibrido propicia uma mistura entre o político e o existencial, entre o teórico e o prático, entre a ética e a política, fusionando, definitivamente, a esfera da vida e a esfera política, como ocorre, por exemplo, nos espaços onde as pessoas vivem cotidianamente a autogestão.
Estes cinco elementos são tão afins ao anarquismo que se entende, perfeitamente, que este cresça à medida que se desenvolve este novo espaço subversivo. Mas, são também estas as próprias condições do novo cenário ideológico, político e social que favorecem o auge do movimento libertário.
Contudo, para não entrar em divagações, prefiro “guardar” essa palavra e limitar-me-ei a assinalar que alguns dos elementos chave da nossa época, por exemplo as novas tecnologias de informação e de Comunicação, não só possibilitam o desenvolvimento e fenômenos sociais que carecem de estruturas hierárquicas, como também põe fim ao monopólio da eficiência que ostentavam essas mesmas estruturas.
Mas nem tudo são rosas. “O lado escuro” do novo cenário social desperta a suspeita de que, talvez, o atual desenvolvimento do anarquismo e dos novos movimentos sociais esteja a favorecer, mesmo sem querer, o acontecer dessa nova época que traz consigo, não duvidemos, sofisticados dispositivos de dominação.
Por exemplo, a exigência anarquista de que o locus das decisões se situe no âmbito local e de que sejam os próprios interessados quem tome, com exceções casuais suponhamos, em similar diretividade à dos novos princípios da governamentalidade, que estão a inspirar os procedimentos da “boa governança”.
Procedimentos estes que consistem, entre outras coisas, em dar voz aos interessados, em delegar poder, em partilhar conhecimentos, em conceder certa autonomia e em oferecer possibilidades de autogestão, tudo isto com a finalidade de re-legitimar os atos do governo e, ao mesmo tempo, de aumentar a sua eficácia.
Ainda assim, a ênfase que o anarquismo coloca na liberdade, encontra certas ressonâncias no descobrimento por parte do neoliberalismo, em que o valor da liberdade aparece como potenciador do rendimento e como ferramenta de submissão.
De fato, a liberdade e a autonomia utilizam-se, hoje, para aumentar a eficácia do poder, as estruturas hierárquicas flexibilizam-se, ou chegam a romper-se, para aumentar a submissão dos sujeitos, ou o rendimento dos trabalhadores. Este governar em nome (mas sobretudo com base) da liberdade, permite conseguir que sejam os próprios governados e os próprios trabalhadores quem contribua para melhorar os mecanismos, mediante os quais (estes mesmos) são governados e explorados.
Esse utilizar da liberdade indica, sem dúvida, que o jogo das relações existentes, entre o poder e a liberdade, não se reduzam a uma relação de exclusão mútua, mas uma relação bem mais complexa do que era suposto, tradicionalmente, pelo anarquismo.
O fato de que se manifestem algumas consonâncias entre o anarquismo e os novos dispositivos de dominação, exige provavelmente uma reflexão crítica que dá lugar a questões sobre eventuais reformulações.
Por exemplo, frente à instrumentalização da liberdade, o anarquismo deveria deixar de se referir genericamente à liberdade e expressar-se, sempre, em termos de equaliberdade, isto é, de modo a que a liberdade e a igualdade formem um único e inseparável conceito que inclui, indubitavelmente, a liberdade coletiva e individual, ao mesmo tempo que exclui totalmente a possibilidade de pensar a liberdade sem a igualdade e/ou a igualdade sem a liberdade.
Deste modo, creio que haveria de fomentar a reflexão anarquista sobre a natureza do poder na sociedade atual e, nesse sentido, a análise que faz o “Comité Invisível”, quando fala da mudança do poder, na sociedade atual, dos parlamentos e da esfera da política institucional, para as infra-estruturas é extremamente valiosa.
De fato, se ontem e, como dizia Foucault, uma parte do poder estava inscrito nas pedras do Panóptico, hoje, esse está inscrito nas grandes infra-estruturas, como as vias e as redes de comunicação e de transporte de pessoas, de objetos, bem como de tecnologia, de informação, etc. Já não é necessário recorrer à ideologia, nem à força quando é a própria tecnologia que, ora dita, ora executa as nossas condutas.
Não é por acaso que alguns dos novos movimentos atacam as grandes infra-estruturas. Contudo, não basta atuar em termos reativos frente aos grandes projetos. Para tornar possível uma eventual transformação radical da sociedade, requerem-se estratégias que tenham em conta o fator sócio-tecnológico em toda a sua complexidade.
E, para concluir, acho que os novos movimentos sociais e o anarquismo renovado se fecundam mutuamente e partilham um amplo repertório comum. Contudo, ainda necessitam um grande esforço de criatividade política, criatividade essa que se irá manifestando, pouco a pouco, ao ritmo de práticas de insubmissão, mais do que à luz.
Tomás Ibañez
Tradução > Ofélia
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