Anarco, Lilith, Azul, Gaia…

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[Memória: o texto abaixo foi escrito-divulgado em 9 de maio de 2002]

Para algumas sociedades, principalmente as indígenas, os nomes carregam uma carga muito forte de significados e valores. E para algumas famílias anarquistas também.

Jaime Cuberos, anarquista já falecido, diz no livro Três Depoimentos Libertários que “era muito usual dos anarquistas no começo do século colocar nomes com um sentido libertário, para evitar colocar nomes bíblicos ou cristãos”, em seus filhos.

Naquela época, não era muito difícil encontrar um Liberto, Ideal, Amor, Aurora… numa assembléia anarquista.

Hoje, essa tradição não é muito comum nas famílias libertárias, mas ainda é possível encontrar alguns nomes “instigantes”. Numa pesquisa rápida, nos deparamos com crianças chamadas “Crust”, “Acratéia”, “Libertária”, “Vida”.

Bárbara M. Baltazar, uma libertária de Santos, grávida de seis meses, diz que seu filho, ou filha, iria se chamar “Anarquia”, mas como seu companheiro achou muito “radical”, preferiu colocar o nome da criança de “Gaia”. Nome da antiga deusa grega pré-helênica que simbolizava a Terra Viva, Alegre e Divertida.

Já Patty, uma americana, também grávida, cinco meses, chamará sua filha de “Azul”. “Não há uma razão particular porque escolhi esse nome. É que gosto muito do nome “Azul”. É um nome muito livre e diferente”, explica.

Mas alguns anarquistas, depois de adultos, subvertem o próprio nome de origem. É o caso do “famoso” anarquista colombiano “Biófilo Panclasta”, que nasceu em 1879 Vicente R. Lizcano, mas em 1904, já adota o pseudônimo de “Biófilo Panclasta”. Biófilo (Bio: vida. Filo: amigo) Panclasta (Pan: tudo. Clasta: Destruidor). Ou seja, “Biófilo Panclasta”, amante da vida e destruidor de tudo!

Outro caso é do anarquista “Albert Libertad”, que além de mudar o nome, botou fogo em todos os seus documentos, e saiu perambulando pelo mundo, “sem lenço e sem documento”, com a cara e a coragem, divulgando o anarquismo.

Conversamos com dois anarquistas, Rogério Nascimento, de Campina Grande (PB), e Mari Farias, de Curitiba (PR), que adotaram nomes libertários para os seus filhos. A seguir, trechos dessa conversa.

Agência de Notícias Anarquistas > Por quê colocar nomes “diferentes” em seus filhos?

Rogério Nascimento < Primeiro, pensamos que o fato de sermos obrigados a imprimir um nome a um ser é uma das violências sutis de uma sociedade hierarquizada, patriarcal e preconceituosa. Segundo, procuramos driblar este ato violento nomeando-os de forma a subverter o princípio autoritário de marcar um ser com expectativas que lhes são alheias. Terceiro, procuramos, através de seus nomes, nossos sonhos que incluem a formação de um novo ser que possa ter a possibilidade de se inventar a si mesmo e de ser a sua própria culminação. Quart o, buscamos deixar claro para este novo ser, desde a sua mais tenra idade, o fato de o amarmos de uma maneira, a mais intensa possível, de maneira que até seu nome foi gestado com o maior carinho possível.

Mari Farias < Escolher o nome para alguém é muito conflitante, a meu ver, e até mesmo autoritário. As pessoas deveriam escolher o seu nome ou modificá-lo em certa idade. Porém, vivemos nessa sociedade e optamos por escolher um nome que representasse algo que tivesse um significado. Como seria uma mulher que nasceria em uma sociedade patriarcal, mas em uma família anarquista, escolhemos um nome libertário.

ANA > Que importância vocês dão para os nomes?

Rogério < De fato, eu preferia que não existisse nenhum tipo de documento. Sou totalmente favorável à maneira de algumas sociedades indígenas, em nomearem seus membros através de seus feitos, de eventos a eles relacionados, ou a partir de algumas características pessoais. Desta maneira, as pessoas podem ser conhecidas por nomes diversos, de acordo com o momento ou as mudanças a que ela está suscetível.

Mari < Acredito que, por infelizmente vivermos numa sociedade em que para ser reconhecido de fato é necessário esse aparato burocrático, documentação… nos submetemos a este ritual autoritário de ter que escolher para uma outra pessoa um nome que ela irá ter que usar o resto da vida, gostando ou não. Mas já que temos que fazer isso, tentamos à nossa maneira anárquica dar um outro enfoque, escolhendo nomes que representem o ponto de vista a nível histórico, cultural, a resistência e luta a esse sistema.

ANA > E se no futuro eles não gostarem dos nomes?

Rogério < Que fazer? Na realidade, os nomes dos filhos na sociedade atual falam mais dos pais que dos filhos. Então, se alguém se chama Bakunin, Jesus, Lênin ou outro personagem, corre um grande risco da criança quando adulta se afastar afetivamente da ideia que os pais quiseram imprimir, uma vez que, neste caso, trata-se de nomes de outras pessoas que findam sendo modelos. No caso de nomes como Aurora, Ideal, Amor, Anarco, Anarquia, penso que inexistem modelos, uma vez tratar-se aqui de ideias e não de pessoas.

Mari < Acredito que até o momento ela goste do nome, apesar de estar com sete anos. Já respondemos várias entrevistas para as escolas que ela frequentou contando o significado do nome. Ela até brinca dizendo que é poderosa!

ANA > Já rolou algum caso de “amiguinhos” dos seus filhos tirarem um sarro dos nomes deles?

Rogério < Até onde eu sei não. Há um estranhamento inicial, mas depois se acostumam. Ainda mais porque todos eles sabem o significado de seus nomes e dizem quando inquiridos.

Mari < De amigos não, mas uma vez em um consultório médico pediatra, o mesmo ficou assustado quando leu o nome na ficha, e perguntou se eu sabia o significado, o que respondi que justamente por saber o significado é que havia escolhido.

ANA > Quais os nomes e idades de seus filhos, o significado…

Rogério < O mais velho é Ramon,12 anos; em seguida vem Rárami, com 10 anos, o significado do nome é dia de sol; depois vem o Anarco, homem livre, com 8 anos e a última, Pétala, com 3 anos. Em novembro chegará mais uma menina. Ainda estamos pensando no nome.

Mari < Nós escolhemos Lilith, e ela tem sete anos. Na verdade Lilith é um mito que representa o arquétipo da relação homem-mulher. É um mito arcaico anterior ao de Eva. Diz o mito que o amor de Adão por Lilith, foi logo perturbado; não havia paz entre eles porque quando eles se uniam na carne, evidentemente na posição mais “natural” – a mulher por baixo e o homem por cima – Lilith mostrava impaciência. Assim perguntava a Adão: “por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo?&rd quo; Talvez aqui houvesse uma resposta feita de silêncio por parte do companheiro. Mas Lilith insiste: “Por que ser dominada por você? Contudo eu também fui feita de pó e por isso sou tua igual”. Ela pede para inverter as posições sexuais, para estabelecer uma paridade, uma harmonia que deve significar a igualdade entre os dois cosmos e as duas almas.  Adão responde com uma recusa seca.

Lilith, a mulher que não é pedaço de homem, não nasceu de sua costela, foi criação independente, era cheia de sangue e saliva (menstruação e desejo) reivindicou sua igualdade não se admitiu inferior e submissa.

Para nós esse nome representa a mulher insubmissa, a rebeldia. Lilith também aparece na mitologia grega, romana, entre outras, além da Idade Média em que aparece como bruxa.

ANA > Os nomes foram decisões consensuais do casal, certo?

Rogério < Sim, de ambos.

Mari < Como tudo o que se refere à nossa filha, a decisão do nome foi tomada em conjunto, o meu companheiro foi militante do movimento anarco-punk. Digamos que isso facilitou, não somente a escolha do nome, mas também na escolha por uma educação diferenciada baseada nos princípios que acreditamos.

agência de notícias anarquistas-ana

Paz. Forte em ruínas
E na boca de um canhão
Um ninho de pássaros.

Luís A. Pimentel