Por Guilhotina.info
Jineoloji é uma nova perspectiva científica desenvolvida pelas mulheres curdas desde 2011, centrada na realidade social das mulheres a partir de uma perspectiva feminina. Através desta nova perspectiva, pretendem propor uma metodologia contrária à da visão masculina dominante sobre a existência das mulheres. Querem também contrariar a visão eurocêntrica e racista que, através de abordagens científicas de gênero e classe, têm abordado as mulheres como objeto de estudo. Desta forma perpetuam as estruturas de poder social, assim como os seus métodos de produção de conhecimento. Como afirmam as mulheres curdas, Jineoloji emerge como uma resposta, uma intervenção radical e uma epistemologia alternativa contra a mentalidade patriarcal no campo das ciências sociais, que serve como ferramenta hegemônica do Estado no monopólio da vida humana e da perpetuação da modernidade capitalista.
Öcalan – o líder intelectual do movimento de libertação curdo – dá a premissa inicial “A mulher é a nação colônia da sociedade-histórica que chegou à pior posição dentro do Estado-nação… A escravatura da mulher é a mais profunda e disfarçada área social, onde todos os tipos de escravatura, opressão e colonização são postos em prática.” (Öcalan, Confederalismo Democrático, p 17). A Jineoloji têm como objetivo a revelação de milhares de anos de dissimulação da existência das mulheres, das suas identidades, histórias, emoções e realidades intelectuais, tal como a sua exploração e escravidão levada a cabo pelo capitalismo, a modernidade e os discursos do Estado.
Em resposta a isto, a Jineoloji ambiciona visibilizar a ontologia e a história das mulheres, ao expor as suas contribuições ao longo da história das civilizações na filosofia, ciência, religião, mitologia e moralidade, entre outros campos. O seu propósito é redefinir a ciência através das significações das mulheres e reescrever a ‘história’ da humanidade através de uma nova perspectiva referencial que não negligencie o papel da mulher na construção da sociedade e da vida comunal. É por isso que as mulheres curdas sublinham a origem comum das palavras, Jîn (mulher) e Jîyan (vida); Jineoloji não é apenas uma busca pela verdade das mulheres mas também pela vida. Por outro lado, Jineoloji deve ser interpretada como uma parte da luta de libertação curda, a sua contínua busca intelectual, ideológica-política, autodefesa e mobilização, que desafia a colonização da sociedade. A luta de várias décadas do movimento curdo colocou, desde os anos 90, a libertação da mulher como seu epicentro com o lema “Libertação das mulheres é a libertação da sociedade”. Este esforço fez ecoar uma transformação interna na luta organizada pelo PKK e também de outras organizações. Desde 1987 em diante, as mulheres começaram as suas próprias organizações autônomas dentro de várias estruturas: 1993 – formação do exército das mulheres; 1996 – criação de teoria e prática para a emancipação do sistema patriarcal; depois de 1998 – ideologia de libertação da mulher; 1999 – formação de um partido de mulheres; desde 2000 – construção de um sistema democrático social enquadrado no paradigma democrático, ecológico e de igualdade de gênero.
Estas estruturas permitiram que tomassem parte na política, nas organizações sociais e militares da luta de libertação em pé de igualdade com os homens. Estas organizações autônomas também significaram o desafiar da dicotomia de gênero que o nacionalismo criou, ao definir o Estado e o exército como instituições masculinas que têm a função de proteger, deixando as mulheres como as protegidas. Com estas organizações, é dado um significado à luta de libertação das mulheres, assim como de todas as pessoas. A participação das mulheres na luta anticolonial ofereceu uma forma de desafiar a definição colonial da mulher enquanto oprimida e tornou claro que as mulheres não estão dispostas a esperar até a libertação nacional/socialista para tratar da sua própria libertação. Antes deste momento, a sua luta de libertação era vista pelos “seus” partidos e organizações como parte de uma “luta” maior contra o capital. Com a criação dos seus próprios espaços, as mulheres também confrontaram a dominação masculina, patriarcal e chauvinista da arena sociopolítica que ofuscou as experiências das mulheres, forçando-as a tomar uma atitude masculina de forma a ter uma voz em todos os aspectos da sociedade.
Jineoloji, que faz parte da longa história do movimento de libertação das mulheres, é portanto a expressão do desejo de restaurar a ligação entre a produção de conhecimento e ciência a partir da sociedade, e especialmente pelas mulheres, através da sugestão de métodos de análise das mulheres que se debrucem sobre as realidades sociais baseadas na mente, inteligência e emoções femininas. É também parte de uma busca pela verdade e de uma grande transformação social que encontra o seu significado na sociologia da liberdade – a libertação das mulheres, homens e da sociedade. Como uma mulher afirma “Isto é uma tarefa de todos os movimentos anti-coloniais, anti-capitalistas, anti-poder, [de todos os] indivíduos e mulheres. Referimo-nos a estas ciências sociais alternativas como a sociologia da liberdade.”
Jineoloji é a afirmação da ideia de que aquelas e aqueles que não conseguem pensar por si próprias/os, que não conseguem pensar segundo as suas próprias perspectivas derivadas das suas experiências pessoais, não se conseguem governar. Consequentemente, não podem ser livres. Este é o ponto de partida da Jineoloji. É também um passo para alterar paradigmas socialistas que desejam liberdade, uma vida igual e justa mas que, no entanto, não foram capazes de resolver as suas contradições internas, deixando de lado a opressão das mulheres.
Apesar de vários estudos feministas já terem formulado contribuições substanciais e teorias a denunciar o sexismo societal de diferentes perspetivas, que também alimentam e fortalecem a Jineoloji, esta nova perspetiva marca uma distinção entre as duas abordagens.
Neste sentido, Jineoloji é o resultado de experiências contínuas e esforços de movimentos feministas mas, no entanto, não se abstém de levantar uma crítica ao feminismo pelo motivo de ter sido incapaz de ultrapassar as perspectivas liberais e reformistas que ajudaram a aliviar as contradições do sistema dominante e que dependem das estruturas do Estado em vez de se tornarem um motor de transformação social e de organizações sociopolíticas autônomas de mulheres. Deste modo, Jineoloji reivindica um destaque das experiências comunais das mulheres e leva em frente respostas coletivas e práticas relacionadas com os seus problemas de forma a ser possível construir uma sociedade nova e diferente, para lá dos limites daquela em que vivemos hoje. E verdadeiramente cumprem a sua palavra. Hoje em dia, principalmente em Rojava mas também em Bakûr (numa fase mais inicial), a Jineoloji e a luta de libertação das mulheres nasce para a vida nas assembleias autônomas de mulheres que tomam as suas próprias decisões acerca dos assuntos que lhes dizem respeito e que não estão abertos a negociação com os homens. Existe também a regra da copresidência – há sempre uma mulher e um homem na representação de qualquer organização e um mínimo de 40% de cota nos organismos de decisão que garantam a presença das mulheres nestes processos.
As mulheres também conseguiram proibir a poligamia, casamentos forçados e continuam a formar as suas próprias estruturas, desde cuidados de saúde até à educação, legislação, justiça e economia. A Mala Jîn (literalmente “casa das mulheres”), funciona como uma casa popular de justiça que trata de um vasto número de assuntos relacionados com a condição das mulheres e decide sobre retaliações a levar a cabo ou serve de mediadora entre as duas partes em conflito.
As cooperativas de mulheres também florescem em várias zonas curdas, provando assim que a luta não é apenas de libertação mental ou cultural, mas também uma luta contra a exploração e pela liberdade econômica das mulheres. Para além disto, as academias de mulheres continuam a nascer e a ser completamente geridas por mulheres, locais onde a comunidade decide os assuntos a serem tratados. As academias não funcionam como as universidades no sentido clássico do termo, onde existe uma estrutura hierárquica e uma separação entre o corpo docente e o corpo estudantil. Aqui criam-se espaços de conhecimento e troca de experiências.
Durante uma das nossas conversa com companheiras curdas, também nos contaram que pretendem construir vilas ecológicas para mulheres como alternativa aos tradicionais abrigos de mulheres. Estes são vistos pelo movimento como prisões que não têm como objetivo reintegrar mulheres que são vítimas do patriarcado e da violência machista, não passando de soluções de curto-prazo que utilizam respostas individuais para problemas sociais e acabam por penalizar as mulheres em detrimento dos atacantes, sem fornecerem alternativas que possam alterar o paradigma social. Neste sentido, a Jineoloji está também a ser ensinada em escolas desde o secundário e com perspectivas de ser implementada desde o ensino básico, tentando assim criar consciência de igualdade de gênero desde muito cedo.
Os exemplos multiplicam-se a cada dia em que as mulheres lutam pela sua própria libertação e criação de uma nova sociedade, onde os abismos que tinham sido criados pelo patriarcado e a mentalidade masculina estão a ser desmantelados pelo desejo das mulheres curdas de criar uma sociedade mais igualitária e justa, onde os seus esforços para construir-la não são esquecidos.
As Serhildans, revoltas populares contra a colonização do Curdistão, impulsionadas e lideradas pelas mulheres há muitos anos atrás, estão hoje a florir com o nascimento de novas comunas, cooperativas, casas das mulheres e com cada mulher que faz parte da luta de libertação. A bem conhecida expressão curda de raiva ou sofrimento – “zılgıt” – hoje é um grito de alegria e vitalidade. As mulheres continuam a dar vida ao Curdistão, embelezando-o com o seu próprio toque e removendo-se a si próprias da colonização, opressão e exploração. Estão a libertar-se das amarras do patriarcado e da mentalidade dominante masculina que tentou moldar e suprimir a sua existência durante séculos.
JİN JİYAN AZADİ!
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