Quando acontecem na Catalunha mudanças tão drásticas como as que se produziram desde as multitudinárias manifestações de 15 de maio de 2011 se torna difícil não experimentar certa perplexidade.
O que aconteceu com alguns dos setores mais combativos da sociedade catalã que passou de “cercar o Parlamento” no verão de 2011 para querer defender as Instituições da Catalunha em setembro de 2017?
O que aconteceu para que esses setores tenham passado de enfrentar os Mossos d’Esquadra [polícia catalã] na Praça Catalunha, e de recriminar-lhes a selvageria, como as que padeceram Esther Quintana ou Andrés Benítez, a aplaudir agora sua presença nas ruas e a temer que não tenham plena autonomia policial?
O que aconteceu para que parte desses setores tenham passado de denunciar o Governo por suas políticas antissociais a votar faz pouco seus pressupostos?
Mas, também, o que aconteceu para que certos setores do anarcossindicalismo tenham passado de afirmar que as liberdades nunca foram conquistadas votando, a defender agora que se dê essa possibilidade à cidadania?
A lista de perguntas se poderia ampliar enormemente e se poderiam dar múltiplas respostas às poucas que aqui foram formuladas. Efetivamente, se podem alegar fatores tais como o esgotamento do ciclo de 78, a crise econômica com seus correspondentes cortes e precarizações, a instalação da direita no governo espanhol com suas políticas autoritárias e seus cortes de liberdades, a escandalosa corrupção do partido majoritário etc. etc.
No entanto me parece que seria ingênuo excluir dessas respostas a que passa por tomar em conta, também, o extraordinário auge do sentimento nacionalista. Um auge que, sem dúvida alguma, contribuiu para potencializar os fatores que acabo de aludir mas que também recebeu muitas importantes doses de combustível desde as próprias estruturas do governo catalão e desde seu controle das televisões públicas catalãs. Vários anos de persistente excitação da fibra nacionalista não podiam não ter importantes efeitos sobre as subjetividades, tanto mais quanto que as estratégias para ampliar a base do independentismo nacionalista catalão foram, e seguem sendo, de uma extraordinária inteligência. A potência de um relato construído a partir do direito a decidir, com base na imagem das urnas, e a exigência da liberdade de votar, era extraordinária e conseguia dissimular perfeitamente o fato de que era todo um aparato de governo o que se movimentava para promover esse relato.
Hoje, a estrelada (vermelha ou azul) é sem a menor dúvida o símbolo carregado de emotividade sob o qual se mobilizam as massas, e é precisamente esse aspecto o que não deveriam menosprezar quem sem ser nacionalistas vê nas mobilizações pró-referendo uma oportunidade que os libertários não deveriam desaproveitar para tentar abrir espaços com potencialidades, senão revolucionárias, pelo menos portadoras de uma forte agitação social, e se lançam portanto na batalha que enfrenta os governos da Espanha e da Catalunha.
Não deveriam menosprezá-lo porque quando um movimento de luta inclui um importante componente nacionalista, e este é, sem dúvida alguma, o caso no presente conflito, as possibilidades de uma mudança de caráter emancipatório são estritamente nulas.
Gostaria de compartilhar o otimismo dos companheiros que querem tentar abrir brechas na situação atual para possibilitar saídas emancipatórias, no entanto não posso fechar os olhos ante a evidência de que as insurreições populares, e os movimentos pelos direitos sociais nunca são transversais, sempre encontram as classes dominantes formando fila em um lado das barricadas. Enquanto que nos processos de autodeterminação, e o atual movimento é claramente desse tipo, sempre intervém um forte componente interclassista.
Esses processos sempre irmanam aos explorados e aos exploradores em prol de um objetivo que nunca é o de superar as desigualdades sociais. O resultado, corroborado pela história, é que os processos de autodeterminação das nações sempre acabam reproduzindo a sociedade de classes, voltando a subjugar as classes populares depois que estas tenham sido a principal carne de canhão nessas contendas.
Isso não significa que não tenha que lutar contra os nacionalismos dominantes e procurar destruí-los, mas há que fazê-lo denunciando constantemente os nacionalismos ascendentes, em lugar de confluir com eles sob o pretexto de que essa luta conjunta pode proporcionar-nos possibilidades de extrapolar suas abordagens e de relegar a quem só persegue a criação de um novo Estado nacional que possam controlar. Que ninguém duvide, esses companheiros de viagem serão os primeiros em reprimir-nos quando não nos necessitem, e já deveríamos estar escaldados de tirar-lhes as castanhas do fogo.
Tomás Ibañez
Barcelona, 26 de setembro de 2017
Tradução > Sol de Abril
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