A selvagem agressão policial perpetrada no 1º de outubro contra uma parte da população catalã nos recorda, como se fosse necessário, que o uso da força faz parte da própria definição do Estado. A atuação do Estado espanhol o deixou bem patente, mostrando a plena luz o que todos os Estados dissimulam atrás de sua cara amável e protetora. A repressãonunca deve ficar sem resposta e, é óbvio que os anarquistas sempre devem denunciá-la e enfrentá-la.
No entanto, por isso mesmo que o uso da força é uma “prerrogativa legal”de qualquer Estado, tampouco podemos pecar de ingenuidade frente às estratégias elaboradas pelo independentismo catalão para forjar um novo Estado que terá necessariamente as mesmas prerrogativas. Está claro que o pulso entre o governo espanhol e o governo catalão é tremendamente desigual, os instrumentos do poder se concentram basicamente em mãos do governo central e por isso é imprescindível que o governo catalão consiga opor-lhe a única arma que pode proporcionar-lhe certa vantagem: a amplitude do respaldo popular a seus propósitos.
Lutar contra a repressão é uma coisa, dar ar às estratégias do governo catalão e deixar-se utilizar para servir a seus propósitos, engrossando as fileiras dos que lhe servem de colchão popular contra o governo espanhol, é coisa distinta.
Nesse sentido, a greve geral convocada na Catalunha pela CGT e outros sindicatos precisamente para dois dias depois do referendo de autodeterminação, quer dizer para hoje dia 3 de outubro, não se pode desligar, de nenhuma das maneiras, do cenário desenhado pela convocatória de uma consulta que pretende abrir caminho para a criação de um novo Estado sob a forma da República catalã. Como não se pode prescindir dos contextos para aceder ao significado dos atos e para valorizá-los, essa convocatória não poderia senão causar-me certaperplexidade.
Que se possa preferir um Estado Catalão em forma de República antes que um Estado Espanhol em forma de Monarquia me parece compreensível e entendo que alguém lute por isso, tanto se é anarquista (ninguém é unicamente “anarquista”) como se é um nacionalista empedernido. O que já me custa mais entender é que se arraste a essa luta organizações de caráter libertário, ou que se justifique a participação nessa luta mediante argumentos anarquistas. A implicação na luta por um novo Estado Catalão nada tem que ver com os anarquismos e responde a outras considerações.
O contexto mais específico no qual se insere a convocatória de greve do dia 3, após a convocatória de uma “Paralisação Nacional” lançado por outras entidades, acrescenta a perplexidade a que antes me referia. Estava acostumado a que a Patronal e as Autoridades atuassem contra as greves, dificultando-as e procurando rebaixar os dados sobre sua continuação.
Desta vez ocorre todo o contrário, uma parte da Patronal apoia a paralisação do país, e o governo catalão não só concede dia livre aos trabalhadores da Generalitat, senão que lhes conserva o salário. É como se se decretasse um lockout patronal mas sem perda de salário. É certo que se mantém a ambiguidade a respeito da natureza da ação lançada para paralisar o país. A “Mesa pela Democracia”, constituída pelas principais entidades independentistas, pelas centrais sindicais majoritárias, e por organizações da patronal, entre outras entidades, não fala de uma greve geral, e nega, inclusive, que se trate de uma greve, usando expressões como “uma paralisação nacional” ou uma “paralisação cívica”.
Escrevo este texto quando o dia 3 de outubro ainda está em curso, mas já é óbvio que essa “Paralisação Nacional” alcançará um êxito esmagador e obscurecerá, sem anulá-lo totalmente, o alcance da “Greve Geral” convocada pelos sindicatos anarcossindicalistas junto a outros sindicatos.
Havia manifestado publicamente minha discrepância com a oportunidade de que as organizações anarcossindicalistas convocassem uma greve geral dois dias depois do referendo, essas discrepâncias eram as mesmas que as que mantinha contra a participação, ou colaboração, com o referendo impulsionado pelos nacionalistas. Mantenho sem matizes essas discrepâncias, e minha decisão de não participar nas mobilizações do 3 de outubro estava tomada.
No entanto irei hoje, de forma crítica, à manifestação convocada pela CGT e a CNT, entre outros coletivos. O que fez mudar minha decisão é “a declaração (abusivamente qualificada como “unitária”) do movimento libertário” (alasbarricadas.org/noticias/node/39001), com cujo conteúdo coincido no essencial. A ênfase que põe essa declaração na denúncia do governo catalão e de suas forças repressivas mitiga parcialmente a contribuição que aporta a convocatória de greve à estratégia independentista governamental e extra-governamental em prol da criação de um novo Estado.
No entanto não me parece de recibo o título que encabeça essa declaração: “Escolhemos lutar”. É óbvio que a decisão para os anarquistas não se coloca entre “lutar, ou não lutar”, simplesmente porque deixar de lutar é incompatível com o anarquismo. Essa decisão se coloca em termos bastante diferentes sobre os quais não vou voltar a insistir aqui.
Tomás Ibáñez
Barcelona, 3 de outubro de 2017
Tradução > Sol de Abril
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