Na entrevista a seguir, Marcolino Jeremias, guarujaense de 40 anos e membro do Núcleo de Estudos Libertários Carlo Aldegheri (NELCA), que mantém uma biblioteca anarquista no município de Guarujá, litoral paulista, fala um pouco sobre o anarquismo histórico na cidade de Santos.
Agência de Notícias Anarquistas > Para começar, relate brevemente como você chegou ao anarquismo, como se tornou um historiador autodidata…
Marcolino Jeremias < No começo dos anos 90, eu estava completamente envolvido na cena underground, especialmente na cena do metal extremo e do grindcore, fazendo zines e participando de bandas. Foi um pulo para ter contato com os coletivos anarco-punks e, depois, com os coletivos especificamente anarquistas. Em 1994, eu participei de um coletivo no Guarujá que teve vida curta: o Coletivo Libertariedade e Gaia. Em seguida fui convidado a participar da União Libertária da Baixada Santista (ULBS), um grupo punk/anarquista, que organizou várias atividades no período em que existiu (1991 – 2002), foi nessa época que tive os primeiros contatos com os velhinhos do Centro de Cultura Social de São Paulo (CCS), o Antonio Martinez e, com um pouco mais de frequência, o Jaime Cubero.
Lembro que numa palestra o Jaime Cubero disse: “o militante anarquista se doa para a causa que defende“. Isso realmente me fez refletir como eu, pessoalmente, poderia me dedicar mais para o anarquismo. Eu estava enfrentando um período em que não encontrava trabalho, mal conseguia juntar uns trocados para contribuir financeiramente com o coletivo que participava. Percebi que uma coisa que eu poderia fazer (já que tinha bastante tempo livre e nenhum dinheiro) era frequentar arquivos públicos (gratuitos) para buscar maiores informações e subsídios históricos que pudessem sanar algumas dúvidas que eu tinha sobre o anarquismo e, num segundo momento, socializar essas informações para difundir o anarquismo e, quiçá, ajudar outras pessoas a também sanarem as suas próprias dúvidas. Foi a maneira que eu encontrei, no dizer de Jaime Cubero, de ‘me doar ao anarquismo’.
Mas não faço questão nenhuma do rótulo de historiador. Não tenho nenhuma pretensão acadêmica no que eu faço. Não tenho nenhum currículo lattes para ser abarrotado com trabalhos acadêmicos (muitas vezes inúteis)… Sou apenas um pesquisador instintivo e intrometido. Minha profissão é recepcionista.
ANA > Por que a cidade de Santos era chamada “a Barcelona Brasileira”? (risos)
Marcolino < Os anarquistas tiveram uma atuação muito forte na cidade de Santos, especialmente, nas duas primeiras décadas do século XX. Segundo o jornal oficial carioca ‘A Noite’, de 19 de novembro de 1912, a Confederação Operária Brasileira (COB) possuía cerca de 60 mil trabalhadores filiados no país inteiro. Ainda segundo esse jornal, A Federação Operária do Rio de Janeiro possuía 5 mil filiados, a Federação Operária de São Paulo 10 mil filiados e a Federação Operária Local de Santos 22. 500 trabalhadores filiados. É um número realmente extraordinário, é mais de 35% de todos trabalhadores filiados na Confederação Operária Brasileira, segundo os dados fornecidos por esse jornal.
Em Junho de 1905 (antes mesmo da conhecida greve geral de 1917), os estivadores de Santos iniciaram uma greve no Porto de Santos, que se tornou uma greve geral em que, pela primeira vez na história do sindicalismo brasileiro, transpôs as fronteiras locais e chegou a atingir algumas categorias de trabalhadores em São Paulo e no Rio de Janeiro. Isso é pouco conhecido. Muitas pessoas até hoje afirmam que a greve de 1917 foi a primeira greve geral do Brasil.
A Federação Operária Local de Santos também foi a primeira e única entidade operária no Brasil, a adotar publicamente em seus estatutos uma orientação explicitamente anarquista. A defesa dessa linha de estratégia sindical conflitante com a orientação da neutralidade política defendida pela Confederação Operária Brasileira, da qual a FOLS fazia parte, causou bastante polêmica na época. Para quem tiver interesse em se aprofundar nesse assunto, basta ler o livro “Anarquistas No Sindicato – Um Debate Entre Neno Vasco e João Chrispim” que o Núcleo de Estudos Libertários Carlo Aldegheri (NELCA) lançou em conjunto com a Biblioteca Terra Livre, em 2013.
Esses exemplos históricos demonstram a força que o anarquismo teve nas primeiras décadas do século passado em Santos. Foi essa força dos militantes anarquistas e sindicalistas revolucionários que fez com que Santos fosse conhecida como ‘A Barcelona Brasileira’. O que eu achei mais curioso foi que eu pensava que esse rótulo havia sido colocado depois, como uma forma de homenagem a posteriori, mas não, existem documentos de 1913 que já se referem à Santos dessa forma.
ANA > Avenidas, ruas, prédios antigos, monumentos, estátuas e bustos espalhados pela cidade (região) guardam lembranças e informações históricas do anarquismo?
Marcolino < Pela força que o anarquismo tinha em Santos, podemos concluir que sobraram poucas referências. Tem o conhecido busto do Martins Fontes na praia do José Menino (em frente ao número 70 da avenida presidente Wilson). Não podemos considerar o Martins Fontes um militante anarquista. Porém, ele se reivindicou várias vezes enquanto anarquista na década de 20 e 30, num período em que os anarquistas em Santos eram brutalmente perseguidos na cidade. Martins Fontes foi filho do socialista Silvério Fontes e, apesar disso, adotou o anarquismo. Participou da iniciativa libertária da Universidade Popular de Ensino Livre do Rio de Janeiro, teve amizade com José Oiticica e fez algumas poesias falando sobre anarquismo, inclusive, homenagens ao Bakunin, Louise Michel, José Oiticica e Kropotkin. Obviamente, o busto não foi feito pela Prefeitura por causa do envolvimento do Martins Fontes com o anarquismo, e sim pelo seu relevante trabalho enquanto médico e poeta.
Outra situação parecida é o busto do Luis La Scala, que fizeram em dezembro de 2006. Se localiza na avenida Samuel Augusto Leão de Moura, próximo do número 3080, no bairro da Aparecida, numa praça que também deram o nome de Luis La Scala. Ele foi um dos precursores do anarquismo na cidade, fundou a Sociedade Primeiro de Maio em 1904, a primeira organização de Santos a propagar o sindicalismo revolucionário, organizou greves, inúmeras campanhas operárias (inclusive a favor do Francisco Ferrer, da Idalina, da Revolução Mexicana, etc.), participou da Liga Anti-Militarista, da Escola Moderna de Santos, dos jornais libertários ‘Aurora Social’, ‘O Proletário’, etc. Depois mudou de rumo. Tornou-se vereador em Santos, foi filiado ao Partido Republicano (PR) e ao Partido Socialista Brasileiro (PSB) e também foi provedor da Santa Casa de Santos. Foi por isso que ele foi homenageado, e não por sua ligação com o anarquismo ou com o sindicalismo revolucionário.
Na rua João Caetano, número 169, no Marapé, temos ainda hoje a sede do Libertário Futebol Clube, que foi um time de futebol de várzea fundado em 1º de Janeiro de 1916. Considerado o “Vovô Varzeano” de Santos, pelo que eu pude apurar não teve nenhum militante anarquista de destaque em sua equipe ou diretoria, nem ligação direta com o anarquismo organizado. Mas, considero, que pelo nome, algum nível de influência deve ter tido.
Além disso, eu procurei alguns endereços de antigas sedes operárias, e encontrei algumas, porém, sem nenhuma referência na fachada ou algo assim. Santos sofreu um grande apagamento da sua história anarquista e sindicalista revolucionária.
Cientes dessa situação, em agosto de 2016, militantes anarquistas do Núcleo de Estudos Libertários Carlo Aldegheri, com a intenção de resgatar uma pequena parte dessa história, colocamos uma placa no túmulo do Eladio Cezar Antunha (1889 – 1920), que se encontra no cemitério do Saboó. Eladio fez parte da primeira geração de anarquistas de Santos e foi um dos precursores do sindicalismo revolucionário na Baixada Santista.
O periódico anarquista “A Plebe”, de 8 de maio de 1920, assim registrava o seu falecimento: “Eladio durante muitos anos militou no meio operário da vizinha cidade marítima. Inteligente, ativo, falando com bastante desembaraço, escrevendo com acerto, o bom Eladio contribuiu valiosamente para o desenvolvimento associativo da cidade de Braz Cubas, onde esteve à frente de jornais operários“.
Já na “A Plebe” de 18 de agosto de 1923, encontramos esse texto escrito por companheiros anarquistas da cidade de Santos: “Em caminho para o cemitério do Saboó (…) foram pronunciados alguns discursos, lembrando o camarada Eladio Cezar Antunha, a quem se iria homenagear pelos esforços que o mesmo despendeu em prol da emancipação do proletariado santista e em defesa do ideal libertário, que por muito tempo defendeu e propagou.
No cemitério falaram novamente vários oradores lembrando uns a altivez e persistência com que o camarada Eladio se manteve durante mais de um decênio, sempre na vanguarda, sempre entusiasta e cheio de fé ardente no ideal que havia abraçado – A anarquia!”.
O militante anarquista santista Manoel Perdigão Saavedra, em seu livro “Ao Fragor Das Derrocadas” de 1924, assim se referia à ele: “Eladio Cezar Antunha foi o vibrante tribuno das nossas jornadas gloriosas. Fundador da organização operária em Santos. Desfraldou a bandeira do sindicalismo revolucionário, batendo-se com denodo contra os sofistas e combatendo sem tréguas, nem esmorecimentos os aventureiros e arrivistas. A ele deve-se a implantação da jornada de oito horas nesta localidade. Era um devotado e ardente defensor do ensino racionalista; continuar, aqui, a obra iniciada por Ferrer, constituía o seu sonho dourado.
Morreu em plena juventude, sem abandonar a sua bandeira de combate, rijo em seu posto num momento em que vários de seus camaradas de outrora transigiam ao impulso da pança. Deixou publicada uma resenha histórica do movimento operário em Santos, desde o seu estado embrionário”.
Já o anarquista João Perdigão Gutierrez, que também militou em Santos escreveu o seguinte: “Eladio foi um ídolo dos trabalhadores, pela extraordinária atividade e grande número de prisões que sofreu. O lugar onde está sepultado, no cemitério do Saboó, é visitado pelos trabalhadores, todos os dias 2 de Novembro”.
A frase que colocamos na placa (“Viver sem liberdade, é vegetar morto. O escravo, o servo, o operário que luta pela emancipação, é o morto que se levanta para conquistar a vida! Lutar é viver!!!“), foi escrita pelo próprio Eladio Cezar Antunha no periódico anarquista ‘A Terra Livre’ em 1907.
A título de curiosidade, um parente do Eladio Cezar Antunha participa do Núcleo de Estudos Libertários Carlo Aldegheri e participou conosco dessa homenagem ao companheiro.
ANA > Apagamento mesmo nas Universidades, nos cursos de história da região?
Marcolino < Sim, com certeza. Não só não falam da rica história do anarquismo e do sindicalismo revolucionário da Baixada Santista nas universidades locais, como também não falam da história do socialismo em geral aqui da região que foi muito forte em vários períodos.
Você pega um cara como Affonso Schmidt, renomado romancista, poeta e jornalista, nascido em Cubatão [cidade vizinha a Santos], que também teve uma passagem relevante no anarquismo. Ele fez parte da redação do jornal ‘A Plebe’. Em 1919, quando a polícia empastelou a sede do histórico periódico anarquista, encontrou lá Edgard Leuenroth e Affonso Schmidt. Ele também participou da redação de outros periódicos importantes como ‘Voz do Povo’, ‘A Lanterna’ e ‘A Vanguarda’. Eu consegui comprar num sebo um livro da Maria Lacerda de Moura de 1924, onde ela fez uma dedicatória para ele (em 1942, com o afastamento dele dos meios libertários, ela mesma chegou a declarar: “Gosto do Schmidt e muito, mas gostaria mais dele se fosse mais sincero com sua própria consciência e ficasse só no artista e… Olhe lá…”). Então, concluímos que ele teve uma participação relevante na história do anarquismo brasileiro, porém, quando ele é lembrado, sempre omitem sua passagem pelos meios libertários. Aliás, muitas pessoas não sabem nem que Affonso Schmidt nasceu em Cubatão.
ANA > Há algum livro que trate especificamente dessa pujança que o anarquismo teve na região, em Santos, ou as informações estão difusas e dispersas em livros, teses… Aliás, você pretende condensar em um livro suas pesquisas?
Marcolino < Tem o “Ventos do Mar – Trabalhadores do Porto, Movimento Operário e Cultura Urbana em Santos, 1889 – 1914“, da Maria Lucia Caira Gitahy, Editora UNESP, 1992, que é um excelente livro, porém, no que diz respeito ao anarquismo em Santos tem muito ainda para ser aprofundado. E tem também o “Operários Sem Patrões: Os Trabalhadores da Cidade de Santos no Entreguerras“, de Fernando Teixeira da Silva, Editora UNICAMP, 2003, uma pesquisa interessante, porém, da qual discordo em alguns pontos.
Tem também a pesquisa do Edgar Rodrigues, que em vários de seus livros trata do anarquismo em Santos, com base em importantes documentos históricos, porém de forma fragmentada. Para quem se interessa pelo tema, eu indico a leitura de todas essas obras.
Já faz um tempo que eu encerrei minha pesquisa sobre Santos, pois eu já pesquisei todos os documentos que eu tinha vontade. Lógico que sempre acaba aparecendo “novos documentos velhos”, especialmente, com muitos arquivos digitalizando e disponibilizando boa parte de seus acervos. Mas essa parte da pesquisa em si, eu já considero finalizada para mim. As obrigações do cotidiano e minhas responsabilidades com a Biblioteca Carlo Aldegheri (desde 2012) tomam a maior parte do meu tempo livre, por isso ainda não tive tempo para publicar um livro especifico sobre o anarquismo em Santos, com todos os documentos que consegui encontrar. Mas pretendo fazer isso nos próximos anos, justamente para resgatar essa história e socializar publicamente esses documentos.
Recentemente, à convite da Biblioteca Terra Livre, eu escrevi um texto sobre o centenário da greve de 1917 em Santos, no livro “A Greve Geral de 1917: Perspectivas Anarquistas“. É uma excelente obra, especialmente, pela contribuição dos outros autores que abordam questões como o método de organização da greve geral conduzida pelos sindicalistas revolucionários; a forte influência, inspiração e protagonismo anarquista no movimento; a essencial participação feminina na greve geral de 1917 – que aliás foi o estopim da greve; a solidariedade operária; os saques e a expropriação; o alastramento da greve geral para outras localidades (além de Santos – Rio de Janeiro, Sorocaba e Rio Grande do Sul); a greve de 1917 sob o ponto de vista educacional e da geografia social; a brutal repressão policial e um verdadeiro morticínio de trabalhadores (enterrados clandestinamente) e, por fim, os desdobramentos e as conclusões da greve geral de 1917.
ANA > Em suas pesquisas, encontrou algum fato curioso envolvendo os anarquistas? Algo que chamou a sua atenção?
Marcolino < Os anarquistas por todo o seu idealismo inabalável, pelo seu radicalismo, pela sua obstinação, mesmo diante das piores realidades possíveis sempre deixaram marcas impressionantes e indeléveis na história internacional, que demonstram toda dedicação e combatividade pela causa que defendem. Em Santos não foi diferente e temos inúmeras passagens interessantes que reforçam essa tradição, sempre nos remetendo aos valores da ética, da solidariedade, da determinação que nos chamam bastante a atenção.
Vou citar esse episódio, ainda inédito, das memórias do já citado Luis La Scala: “Em 1911, quando da grande greve geral, como secretário geral do comitê, dirigia o movimento através de um volante diário, com a ajuda de uma tecelã disfarçada em doméstica e que levava os originais para serem impressos numa tipografia da Praça Mauá. A perseguição era grande aos membros do comitê, estando alguns foragidos e outros presos. A greve prolongava-se e o governo do estado impacientado, mandou para Santos o Dr. Washington Luís que era o secretário da segurança. A policia redobrou a violência. Revidou-se com um boletim. O tipógrafo ao receber o original recusou a impressão. Avisado pela tecelã, La Scala arriscando sua liberdade, entrou pelos fundos da tipografia e com a ajuda do companheiro Juvencio Dias e de revolver em punho, obrigaram o Sampaio, cidadão português e sua esposa a comporem o manifesto a todo vapor. A circulação do mesmo provocou violenta reação“.
Eu gosto dessa citação, pois ela nos permite ter uma ideia de como a questão social nesse período era rude e de como ela era confrontada pela classe oprimida com igual intensidade. A nossa realidade atual ainda é bastante violenta (embora com outras características), porém, a resposta das classes oprimidas ainda têm que se intensificar mais para conseguir fazer frente às injustiças sociais. A história de luta do anarquismo, não deve nos fazer olhar apenas para o passado, mas sim para o presente e para o futuro.
ANA > Deixe uma mensagem para os leitores e leitoras da ANA. Valeu!
Marcolino < Eu gostaria de agradecer a você Moésio e a Agência de Notícias Anarquistas (ANA) pela entrevista, pelo apoio em todos esses anos e pelo excelente trabalho de divulgação do anarquismo que vocês estão desenvolvendo já faz décadas. Para as pessoas que estão lendo, gostaria de salientar que nesses tempos conservadores que estamos vivendo, mais do que nunca, precisamos fortalecer a nossa luta, através da solidariedade, da cooperação, do respeito ético as diferentes formas de atuação e que as atitudes que tomarmos agora no presente serão os principais pilares para uma futura transformação social. Qualquer pessoa que queira obter maiores informações sobre qualquer assunto abordado nessa entrevista ou sobre o trabalho da Biblioteca Carlo Aldegheri no Guarujá, basta mandar uma mensagem para oplibertario@yahoo.com.br. Muito obrigado!
Biblioteca Carlo Aldegheri
Rua Luiz Laurindo Santana, Número 40, 1º Andar, Sala 1, Bairro Ferry Boat, Guarujá (SP)
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Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
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tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!