“Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você” – Nietzsche
Antissistema siamo tutti. Anos atrás, o auge da dissidência consistia em declarar-se “antissistema”, que era o mesmo que se opor a todo Deus. Nem os radicais nem os esquerdistas tinham uma pátina tão subversiva. O verdadeiramente refratário, o enfurecimento quimicamente puro, estava naquele universo militante que rejeitava de cara o status quo. Todo o resto pertencia à órbita do convencional, banal e conservador. Embora na época das taxonomias ideológicas, no subconsciente, o antissistema ainda estivesse localizado como uma categoria de extremismo esquerdista.
Agora tudo o que explodiu como resultado da crise da dívida e as receitas austericidas aplicadas como um corta fogo unilateral por parte dos governos da zona do euro. Nem direita nem esquerda, nem acima nem abaixo, somente dentro e com ou fora e contra. Não há mais possibilidades. As últimas eleições na Itália ratificaram a ruptura epistemológica no epicentro da União Europeia (UE). Como aconteceu antes na França com a ascensão da Frente Nacional (FN) e na Alemanha com a Alternativa para a Alemanha (AfD).
Os fogos de artifícios do Movimento 5 Estrelas (M5E) de Luigi Di Maio e a Liga Norte de Matteo Salvini, são a expressão viva de que o antissistema já não tem uma única denominação de origem. Entre outras coisas, ou talvez por causa disso, porque o seu surgimento não é devido ao processo de decantação ideológica, mas uma transformação sociológica. É uma rebelião contra os politicamente corretos e suas subsidiárias midiáticas e demoscópicas. Uma expressão de saciedade diante da realpolitik executada pelos líderes da UE que se fizeram de surdos aos problemas das pessoas que eles alegavam representar. Até ontem um grupo de eleitores e contribuintes complacentes sem dúvida. O bizarro Donald Trump é o mais recente ajudante VIP deste anti-establishment vintage.
Obviamente, quando esses poderes viram suas posições em perigo diante de um ataque tão súbito, eles correram para classificá-los com pragas. Populistas é o termo moderno usado para tentar uma marginalização lexicográfica que contém o tsunami. Expressão recorrente a partir do momento em que os novos acrônimos são certamente abraçados pelos setores mais populares da cidadania. Além disso, as bases dessas formações políticas emergentes vêm, na maioria dos casos, das classes trabalhadoras. Da passagem de apoiadores e antigos seguidores dos partidos comunistas, caso da França e Itália e seus irmãos de fé na antiga República Democrática Alemã (RDA). Parece que, por ironias da vida, os epígonos do nacional-socialismo e seus gêmeos do socialismo em um só país confluíram para um ponto cego de um novo e catártico compromisso histórico. As massas são imprevisíveis. No livro “O 18 Brumário” de Louis Bonaparte Marx denunciou como “a luta de classes na França criou circunstâncias e condições que permitiram um personagem medíocre e grotesco representar o papel de herói”.
Exagero? Pessimismo antropológico? Tudo depende da posição do observador no momento, mas o marcador experiente é adverso aos antissistemas gauchistas (internacionalistas), que correm o risco da duplicidade com sua nêmese ao compartilhar idêntica socialização eurocêntrica e antiglobalização. O único expoente dessa tendência que tocou o poder, a Aliança da Esquerda Radical (Syriza) na Grécia, não só está legislando as medidas econômicas e sociais mais draconianas que nunca se viu no lugar que inventou a democracia, mas, para liderar o governo, pactuou com os Gregos Independentes. Uma formação que como disse o ex-ministro das Finanças grego, Yanis Varoufakis, “nas questões sociais e relações internacionais adotava postulados mais típicos da extrema-direita, que escorria ultranacionalismo, um racismo velado, sexismo e homofobia profunda” (Comporte-se como adultos). E há o risco de que o exemplo seja definido se o M5E formar um governo na Itália com os aspirantes fascistas da Liga Norte.
Mas, além disso, o mapa insurgente antielites está deixando sem relato um dos dogmas da mística revolucionária. O ataque aos cegos não requer mais uma tomada violenta do poder por parte de vanguardas iluminadas. Você pode conquistar o palácio de inverno nas costas de uma maioria social representativa, e pelas urnas. Inclusive estaríamos até tentados a acrescentar isso “democraticamente” se cometêssemos o erro habitual de reduzir a democracia ao rito exclusivo do sufrágio. À aprovação dos votos, as hostes xenófobas da FN foram para o segundo turno nas eleições francesas; a ultranacionalista Liga Norte multiplicou sua capacidade até alcançar o terceiro lugar no escrutínio; e os pós-fascistas da Alternativa para a Alemanha tem pesquisas favoráveis que a coloca acima do histórico Partido Social-Democrata (SPD). Para os radicais de toda a vida, deve ser muito difícil admitir que os inimigos de hoje sempre competem em sua mesma categoria.
Tudo isso aconteceu porque o sistema se tornou um jogo de monopólio onde não há diferença real entre governo e oposição, entre a direita e a sediciosa esquerda. Ambos, com cabeças trocadas, remam na mesma direção à serviço das grandes potências econômicas e financeiras. Um indecente turnismo instituído que a debacle da crise tornou insuportável para milhões de pessoas que, sem comer ou beber, pagaram pelos pratos quebrados da plutocracia dominante. No entanto, não há um padrão ideológico que unifique aos múltiplos populismos em jogo. Como demonstra o fato de que sejam precisamente os dois países que suportaram longas ditaduras, Espanha e Portugal, os únicos que foram poupados da peste fascistoide. Mas a socialização do protesto deixou de ser patrimônio da esquerda nominal.
Hoje o aggiormento transborda as fronteiras ideológicas. Assim, o setor ultra se define como anticapitalista; dispõe de “espaços sociais” okupados onde eles exibem suas propostas específicas antissistema (nacionais primeiro) e apoiam a diversidade sexual quebrando os moldes de sua tradição homofóbica (a líder da Alternativa para a Alemanha é uma lésbica orgulhosa). Pode até mesmo ser uma ligação orgânica entre o lado A do populismo, representado pelos xenófobos de extrema-direita, e o lado B, inserido na extrema-esquerda comunista, na utilização do aparato de agitprop financiado por Putin e sua nomenklatura. As campanhas de desinformação (pós-verdade) das corporações midiáticas, como Rússia Today e Sputnik, têm terminais tanto entre os pós-comunistas quanto entre os pós-fascistas. O Partido Democracia Nacional e o Movimento Social Republicano (aqui os termos democracia e republicano são meros artifícios) compartilham o mesmo patrocinador com os oligarcas do Kremlin que tão generosamente financiam a Frente Nacional de Marine Le Pen. Desde a anexação militar da Crimeia e o apoio russo à guerra no Leste da Ucrânia, ambos marcam o mesmo passo.
Mesmo assim, há uma razão em sua debandada. O húmus que fertiliza tudo tem seu epicentro nos custos brutais da crise passada para as vítimas através de reformas estruturais, cortes e ajustes, e que foram desvalorizados a golpes de machado liberdades e direitos sociais e laborais, deixando à intempérie a cidadania. As descaradas transferências diretas de renda do trabalho ao capital e privatização dos serviços públicos, planejadas por muitos governos europeus ao som da Troika são a razão de ser do terremoto que rachou o mapa político continental. Neste sentido, o caso espanhol, longe de ser um aparte, constitui um agravante pela corrupção desenfreada que atravessa o Regime de 78. Como evidenciado pela brusca resignação das “classes passivas” fartas de ser, junto com os jovens, quem paga pela fanfarronice.
Quando o governo do Partido Popular diz que não há dinheiro para aumentar as pensões de acordo com o índice do custo de vida (IPC) e que o Fundo de Reserva da Segurança Social (FRSS) está esgotado, apenas reconhece a alocação mafiosa dos recursos públicos, a economia de soma zero que pratica (a “expropriação” de rodovias privadas falidas por 760 milhões de euros é outro indicador de sua condição cleptomaníaca). Esconde-se que muito dessa escassez dolosa provem de “socializar” os mais de 40.000 milhões de euros que representam a corrupção anual, segundo dados da Comissão Nacional de Mercados e Concorrência (CNMC). Uma cifra que deve ser adicionada, agora em uma única partida, aos outros 60.600 milhões de resgate do sistema financeiro dado como perdido pelo Banco de Espanha (em grande parte por conta da Bankia de Rodrigo Rato e da Catalunya Caixa de Narcís Serra, entre os vice-presidentes que andaram no jogo).
Nisso, todos os populismos coincidem: o sistema se fez anti-nós.
Rafael Cid
Fonte: http://rojoynegro.info/sites/ default/files/rojoynegro% 20322%20abril%20.pdf
Tradução > Liberto
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Olá, me chamo Vitor Santos e sou tradutor. Posso traduzir do Inglês, Espanhol, Alemão, Italiano e Catalão. Inversamente, somente do…