por Tomás Ibáñez
Acendendo o pavio
É uma sexta-feira. Sexta-feira, 3 de maio, para maior precisão, mas hoje de manhã estarei atrasado para o trabalho. Antes de ir para o “Laboratório de Psicologia Social”, onde fui contratado pouco depois de concluir minha Licenciatura, parei no pátio da Sorbonne por um longo tempo. Os estudantes convocados para protestar contra o fechamento, ontem, da Universidade de Nanterre, já começaram a fluir para o recinto. Alguns trazem bastões e capacetes diante da perspectiva de um ataque iminente pelos comandos fascistas. Muitos dos meus colegas do LEA¹ e do 22M² estão entre os quase 400 alunos que estarão concentrados ao longo do dia. A circunstância de que quase todos os líderes dos diferentes grupos políticos estudantis da extrema-esquerda tenham chegado a este encontro terá um impacto, como será visto mais tarde, em eventos subsequentes.
Meu sangue ferve, porque não posso ficar com meus companheiros, mas como o “Laboratório” fica a apenas trinta metros da entrada do pátio da Sorbonne, minhas idas e vindas para ver como as coisas correm serão constantes até o momento em que a polícia bloqueia a entrada. Alternando cantos revolucionários, discursos e debates, os companheiros estão dispostos a manter a ocupação pelo tempo que for necessário. As horas passam, os fachas não aparecem, mas em vez disso centenas de policiais da tropa de choque chegam e, às cinco da tarde, começam a prender os estudantes em suas “leiteiras” [na Espanha os camburões da polícia são conhecidos como “lecheras”]. Naturalmente, apenas homens são levados, uma vez que uma negociação anterior foi concluída com o acordo de que todas as estudantes pudessem deixar a Sorbonne livremente.
Grave erro da polícia! Os militantes que foram capazes de sair se agrupam com os estudantes que estão em torno da Sorbonne e começam a hostilizar agressivamente a polícia e suas leiteiras aos gritos de “libertemos os nossos companheiros”. Dia laboral estranho, cheguei atrasado ao trabalho, e o deixei antes da hora para me juntar aos grupos que começam a atirar objetos de todos os tipos contra os carros da polícia.
Corridas, cargas, granadas de gás lacrimogêneo, o para-brisa de uma leiteira explode em mil pedaços, ferindo seu motorista. As pessoas puxam as cercas das árvores e as jogam na calçada do Boulevard Saint Michel para impedir a passagem das vans da polícia. Na Praça da Sorbonne, um líder estudantil trotskista, que escapou do ataque, está ocupado tentando acalmar a situação, exigindo que paremos de provocar (sic!) a polícia. Entendo então que, se os líderes estudantis não tivessem sido removidos da cena da luta, esta teria sido abortada muito rapidamente. Em qualquer caso, depois de quatro horas de luta intensa estes enfrentamentos, finalmente, são concluídos com bastantes feridos leves, cerca de 600 pessoas interpeladas, dos quais 27 são detidos em delegacias de polícia, e 14 serão julgadas e condenadas antes da conclusão das 48 horas posteriores.
Foi o dia em que o pavio de maio começou a acender, acendido por pessoas que se rebelaram espontaneamente contra a repressão, e que não hesitaram em passar do clamor do protesto às atividades físicas, não para pedir, ou exigir “a liberação dos detidos”, mas para tentar libertá-los.
Foi assim que começou o mês de maio de 68, assim começou, e se espalhou rapidamente por toda a França, mergulhando o país inteiro em um esplêndido mês e meio de numerosas manifestações, ocupações de universidades e fábricas, e duros confrontos com a polícia, com momentos épicos como a famosa noite das barricadas na sexta-feira, 10 de maio, onde ardeu o Bairro Latino e onde Paris pôde contemplar, ao despertar, uma dantesca cena de luta.
Um “acontecimento” em toda regra.
Nada pressagiava que um conflito, que originalmente era de natureza estudantil, poderia se espalhar tão rapidamente no tecido social, nem que conseguiria sequer atingir a classe trabalhadora, nem que acabasse por adquirir tão enormes proporções, nem tão pouco que conseguiria abrasar tudo um país e paralisá-lo por semanas. Ninguém imaginou que algo semelhante poderia acontecer em um país que era relativamente próspero, e onde a tônica dominante era uma monotonia chata.
Se Maio emergiu como um fenômeno absolutamente inesperado, foi precisamente porque foi um “acontecimento” autêntico, isto é, uma “criação”, que, nesse caso, era de natureza histórica. Não em vão que o conceito de “criação” se refere ao que não existe antes de sua formação, que não está prefigurada em qualquer de suas condições antecedentes, e é por isso que Maio, não só causou uma surpresa e estupefação enorme no mundo, mas surpreendeu seus próprios protagonistas.
Esta perplexidade não se limitou ao início de Maio, mas o que estava acontecendo era ainda inimaginável, desconcertante para nós mesmos no final de cada dia de luta, e ao iniciar em cada amanhecer um combate que não se sabia qual seria o seu rumo ao longo das horas, e que parecia nunca querer parar.
Na verdade, se queremos caracterizá-lo no que teve de mais importante, devemos salientar que Maio surgiu como uma demanda selvagem pela liberdade, e que se tratou de uma revolta radical contra a autoridade, tanto a que se manifestava nas salas de aula, como a que prevaleceu nas oficinas, e a que saturava a vida cotidiana. Caracterizou-se como uma autêntica explosão antiautoritária, e é por isso que pode ser considerada que foi genuinamente libertária. As ondas de Maio espalharam expressões libertárias por toda parte, arrancando-as do exíguo gueto onde viviam e projetando-as repentinamente sobre as multidões para que as pessoas se apropriassem e a reinventassem a seu modo.
Embora seja verdade que Maio começou nas universidades, foram, no entanto, as ocupações das fábricas que lhe injetaram as energias que lhe permitiram sobreviver além da primeira noite das barricadas. Na Sorbonne reaberta e ocupada na noite anterior, o clamor ensurdecedor que se deu na terça-feira à tarde, 14 de maio, quando do anúncio da ocupação da fábrica “Sud Aviation” e o sequestro de seu diretor, indicou claramente que seria o movimento de trabalhadores que daria continuidade e força ao estalido de 3 de maio.
Não há dúvida de que foram as ocupações de fábricas, com milhões de trabalhadores em greve, que aumentaram a ressonância, tanto em intensidade quanto em duração, que Maio teve na sociedade contemporânea. Foi o mundo do trabalho que lhe deu uma dimensão de “evento histórico”, uma dimensão que ele nunca teria conseguido se tivesse permanecido em uma simples revolta estudantil.
Agora, embora fosse o mundo do trabalho que permitiu que Maio adquirisse a espessura de um evento histórico autêntico, no entanto, não foi o mundo do trabalho que imprimiu as características que o colocam como um evento político de primeira magnitude que alterou em profundidade os esquemas herdados, e que teve alguns efeitos que ainda perduram.
O que tornou possível esse resultado, e o que constitui a originalidade de Maio foi a criatividade exibida na ação subversiva dos inúmeros ativistas de Maio, estudantes do ensino médio, estudantes universitários, jovens trabalhadores, homens e mulheres que se reuniram nas assembleias, que organizaram e mantiveram as ocupações e que animaram os “comitês de ação” nos bairros, sem que, na maioria dos casos, esses ativistas tivessem a menor experiência política antes do início de Maio. Seu inconformismo radical, seu espírito transgressor e criativo fizeram que, longe de se esgotar em um mero protesto, Maio de 68 abrisse caminhos de inovação e mudança em muitas áreas, tanto política e educacional, interpessoal, ou na própria vida cotidiana.
O que Maio nos ensinou
Maio introduziu na sociedade algumas sementes de mudança que afetaram várias áreas, da educação à cultura, às identidades sexuais, às relações familiares e aos estilos de vida. Não é em vão que a direita não se priva de atribuir às consequências de Maio a erosão dos valores da “ordem” e desrespeito à autoridade. Mas além desses efeitos globais, Maio também nos ensinou algumas coisas que mudaram nossos modos de agir, de nos organizarmos e de pensar politicamente.
Com a independência com a qual abriu novos canais e semeou algumas das sementes que dão vida aos novos movimentos sociais do final do século XX e início do XXI, Maio também foi extremamente importante por tudo aquilo que declarou obsoleto, por caminhos que fechou, pelas práticas de luta, pelos modelos organizacionais e pelas concepções políticas que desqualificou. Assim, por exemplo, retirou legitimidade a umas estruturas organizacionais marcadamente vanguardistas que se auto atribuíam o papel de liderar as massas para a sua libertação porque se acreditavam possuidores da linha justa, porque achavam que eram dotados do conhecimento político correto, e porque se consideravam privilegiados conhecedores do caminho que era conveniente seguir.
Seu impulso antiautoritário pôs a nu o que vinha sobrecarregando a bagagem antagonista, os aspectos autoritários do próprio movimento revolucionário – e, por vezes, do próprio anarquismo – tornando impossível prosseguir com uns esquemas herdados que declarou obsoleto. Entre outras coisas, Maio terminou com a sedução que por 50 longos anos o modelo leninista exerceu sobre o imaginário político radical, dando asas às formas libertárias desse imaginário. Seu sucesso foi tal que as formações marxistas não tiveram mais remédio que incorporar desde então tonalidades libertárias em seus discursos, e nos oferecem hoje o insólito e paradoxal espetáculo de querer recuperar e se apropriar de um evento que invalidou precisamente alguns dos seus postulados.
Maio também nos ensinou, por exemplo, que as energias sociais necessárias para que se constituam poderosos movimentos populares surgem desde dentro da criação de certas situações, que não necessariamente preexistem. Não que estas energias existam em um estado latente, e se liberem quando estão reunidas certas condições, é, em verdade, que essas energias se formam no próprio processo de criação de determinadas situações, retro-alimentando-se a si mesmas, perdendo força em momentos e, voltando a crescer de repente, como nas tempestades. Trata-se, portanto, de energias que podem sempre aparecer a qualquer momento, embora no instante imediatamente anterior elas não existam em lugar algum.
Durante os acontecimentos de Maio pudemos ver como essas energias sociais são formadas, por exemplo, quando o instituído transborda, quando se subtrai um determinado espaço de dominação, esvaziando-o do poder que o investe, e criando literalmente um “vazio de poder”. Mas de modo mais geral, se a enorme energia social que impulsionou os acontecimentos de Maio não pôde ser detectada antes que explodisse foi por causa de que a energia não existia anteriormente. Foram os acontecimentos de Maio em si, as práticas que se desenvolveram lá, as fórmulas elaboradas e expressas em seu curso, àquelas que deram corpo a um sujeito coletivo multitudinário e variado, que não existia em nenhum lugar antes de que os próprios acontecimentos os fossem construindo.
De fato, o movimento foi capaz de avançar até finalmente atingir seus limites, porque estava construindo seu caminho na própria marcha. Não de um projeto que nunca preexistiu no início da mobilização, mas que se construía, se retificava e formava dentro do fazer cotidiano. Foi esse fazer fazendo que deu vida ao movimento e permitiu-lhe ser inventivo e superar, um após o outro, os obstáculos que surgiram no seu caminho.
Assim, o que Maio deixou muito claro é que o “sujeito revolucionário” não existe antes da revolução, mas se constitui dentro do próprio processo revolucionário. Resulta desse processo, porque é a revolução que o cria no curso de sua própria jornada.
Voltando agora as considerações menos gerais deve-se acrescentar que Maio mostrou que o simples fato de subverter os funcionamentos habituais, para interromper os costumes estabelecidos, para ocupar espaços, transformando os locais de passagem em locais de reuniões e de fala, consegue desencadear uma criatividade coletiva que imediatamente inventa novas maneiras de ampliar a subversão e fazê-la proliferar. Como também acontece com os espaços livres que engendram novas relações, criam novos laços sociais que são revelados incomparavelmente mais satisfatórios do que aqueles que existiam anteriormente, as pessoas experimentam nesses espaços a sensação de viver uma vida diferente na qual gozam do que fazem, descobrem novos incentivos e embarcam em uma profunda transformação pessoal que também é realizada em um tempo muito curto.
O Maio de 68 foi uma luta, por momentos violenta, áspera, tensa, extenuante, exigente e cheia de dissabores, assim como todas as lutas. Mas também foi uma festa, uma experiência que proporcionou prazer e enormes sentimentos de felicidade. Claramente transmitia-nos que não devemos colocar para o final da luta o prazer de saborear seus possíveis resultados, mas que as recompensas que surgiam de dentro da própria ação, formavam parte do que nos era fornecido diariamente. Assim, Maio nos mostrava que são realizações concretas, aqui e agora, que são capazes de motivar as pessoas, incentivá-las a ir mais longe, e fazê-las ver que outras formas de vida são possíveis e, portanto, desejáveis. Mas também advertiu-nos que para essas realizações poderem acontecer, as pessoas precisam imperativamente sentir-se protagonistas, decidir por elas mesmas, e isso é quando realmente se é protagonista e quando se sente efetivamente como tal, quando seu grau de envolvimento e de entrega pode disparar ao infinito.
Finalmente, Maio colocou a ênfase no fato de que, como o anarquismo não tinha cansado de repetir, a dominação não se limita à esfera das relações de produção, mas é exercida em uma multiplicidade de planos e que as resistências tem que se manifestar em todos e cada um desses planos. Uma nova subjetividade política do antagonismo começou a ser desenhada dessa maneira, e novos cenários foram abertos para sua implantação. Porque, de fato, quando o horizonte da política antagonista se alarga para abranger todas as áreas onde a dominação e a discriminação é exercida, são, então, todos os aspectos da vida diária que se tornam parte do seu campo de intervenção. E o que se configura dessa maneira é uma nova relação entre a vida, por um lado, e a política, por outro lado, que deixam de ocupar, naquele exato momento, espaços separados.
O movimento de 22 de Março
Desde o mesmo momento em que o Maio se iniciou, sempre esteve em seu epicentro o “movimento de 22 de Março”, e se extinguiu voluntariamente – auto-dissolveu-se – quando Maio deixou as ruas, universidades e fábricas, depois de sair semeado na sociedade efeitos de longo prazo.
No entanto, antes de evocar algumas das suas características convém situar brevemente este movimento que era tão efêmero e tão intenso como um flash, mas cuja importância e originalidade são indiscutíveis.
A prolongada agitação estudantil que sacudia durante meses a Universidade de Nanterre, localizada nos arredores de Paris, proporcionando o terreno fértil para que no dia 22 de março mais de cem estudantes se lançassem para ocupar a torre administrativa da universidade para exigir a libertação de um de seus companheiros, Xavier Langlade, preso dois dias antes durante um ataque contra os escritórios da “American Express” pelo CVN (Comitê Vietnã Nacional, de filiação trotskista). A assembleia que ocorreu durante a ocupação concluiu com um apelo assinado por 142 dos alunos presentes. Assim nasceu um movimento que foi chamado de “Movimento de 22 de Março” e que levou a partir desse momento a agitação na universidade, obtendo assembleias de até 1500 alunos como a que foi convocada em 2 de abril.
Os impulsores e animadores do movimento eram basicamente militantes da coordenadora de estudantes anarquistas “LEA” (Laison des Étudiants Anarchistes) que tinha alguma influência na faculdade e tinha, por exemplo, entre suas fileiras Daniel Cohn Bendit, que passou a ser o ícone mais popular do Maio de 68, e os militantes da “LCR” (Liga Comunista Revolucionária) trotskista, além de numerosos estudantes “não organizados”.
Desde o início, o Movimento 22 de Março foi estabelecido no formato de uma organização horizontal, não centralizada, não-hierárquica, de caráter assembleario, não-sectária e transversal do ponto de vista ideológico, com fluídas estruturas, sem instâncias delegadas. A diferenciação interna entre os militantes não provinha do lugar ocupado em um suposto organograma, mas dependendo das tarefas específicas, limitadas no tempo, assumidas por algumas equipes designadas pela assembleia que incluíam na verdade todos os voluntários que se ofereciam para realizar essas tarefas.
Não só não havia nada que se assemelhasse a um “comitê central”, ou a um “secretariado permanente”, ou coisas assim, mas não havia afiliação formal, com seus cartões, inscrições e taxas correspondentes. Faziam parte do “22 de Março”, quem acudiam em suas assembleias e participavam de suas ações. De fato, os limites do movimento eram tão permeável que a fase de Paris do “22 de Março”, ou seja, que se estendia a partir do fechamento da Universidade de Nanterre em 2 de maio, até ao final da ocupação em junho, muitos de seus membros não eram estudantes de Nanterre e, em alguns casos, nem sequer éramos estudantes.
Era uma organização que não se mitificava ou se fetichizava, nem pretendia perdurar no tempo além do período em que poderia ter uma utilidade prática. De fato, a autodissolução do Movimento 22 de Março ocorreu alguns meses após sua criação, em um ambiente muito mais festivo do que traumático.
Entre as características do Movimento 22 de Março estava a reivindicação, e o exercício efetivo da democracia direta, bem como uma forte prevenção contra as lideranças e o exercício do poder. Por exemplo, para desativar o papel midiático que foi dado a Cohn Bendit, promoveu-se sua substituição em algumas conferências de imprensa convocadas com seu nome por outros membros do 22 de Março que declaravam aos jornalistas “nós somos Cohn Bendit”.
A ação direta figurava na agenda do movimento, exercida sem mediação pelas próprias partes interessadas, fora dos canais institucionais. E, sob o nome de “ação exemplar”, pretendia realizar ações que os outros poderiam levar de volta a outros lugares, adaptando-as às suas próprias circunstâncias. E se essas ações conseguiram parar ou dificultar o funcionamento normal de algum elemento do sistema, tanto melhor, porque novas situações se criavam, capazes de gerar novas dinâmicas.
O 22 de Março nunca teve a intenção de falar em nome de outros, ou representar os outros, seja estudantes em geral ou a classe trabalhadora, ele sempre falou em seu próprio nome, e não aceitou que outros falassem em seu nome. Não em vão que uma parte substancial do 22 de Março desenvolvia uma poderosa crítica do vanguardismo.
Praticava-se uma mistura, ou a hibridização de gêneros, o discurso político não era incompatível com as experiências festivas, o compromisso mais altruísta poderia ser reconciliado perfeitamente com a recusa em tomar-se demasiado a sério, e o inconformismo ia de mãos dadas com o desafio, a provocação, a insolência, o riso, a paródia e a ridicularização das instituições e os valores mais obsoletos.
Três anos antes de 1968, os “anarquistas” da Universidade Complutense de Madrid começaram uma luta que antecipou certos aspectos do que mais tarde foi o “Movimento de 22 de Março”, de modo que vale a pena recordar aqui algumas das abordagens que desenham um certo “ar familiar” entre as duas experiências.
Se tratava para eles de fugir de duas características principais dos grupos políticos da extrema-esquerda: a primeiro foi a de desenvolver um forte trabalho de proselitismo para engrossar as fileiras do grupo, organização ou partido, cujo fortalecimento tornou-se finalmente um objetivo primordial e promoveu uma espécie de “patriotismo de organização”. A segunda foi privilegiar o aspecto discursivo da ação política, na base de que era importante para alcançar às pessoas as ideias e programas através da divulgação de textos e discursos cuidadosamente elaborados até seus menores detalhes. Estes textos foram claramente destinados a divulgar os pressupostos ideológicos defendidos pelos seus autores para que fossem adotados por quanto mais gente melhor, e que estas fizessem tais ideias suas, como um “Patriotismo de ideologia”, se quiser nominá-lo.
Ambos os tipos de patriotismos coincidiam em favorecer a atividade propagandística como uma forma de intervenção política, e isso era o que precisamente rejeitavam os “ácratas”. Eles não querem “crescer” como uma organização, nem queriam que “comprassem” seu discurso, nem tinham a intenção de proclamar uma identidade. Obviamente defendiam também certos princípios ideológicos e políticos, mas estes não deviam permanecer no nível das palavras, mas que a ideologia devia ser incorporada em atos concretos suscetíveis de proliferarem em outros atos de natureza semelhante, ou seja, que veiculassem conteúdos ideológicos semelhantes.
Para eles, se tratava da realização de ações políticas cujo significado fosse inscritos na ação em si realizada, e não dependesse de sua fonte ou autor (siglas, bandeiras, etc.), nem do discurso significativo que a acompanhasse. Quer dizer, se tratava de que o seu significado não estivesse ligado ao que dela se predicava, mas que a ação falasse por si mesma. Não era preciso assiná-la, não se tratava de prestigiar uma organização, nem de proclamar uma identidade, se tratava de que a ação surtisse efeitos que poderiam ir desde criar uma dificuldade para os poderes até a demonstração de aspectos mascarados da dominação, passando por despertar a conscientização política e, acima de tudo, aumentar as “réplicas” espontâneas da ação, não como um efeito de mimético, mas por um processo de “apropriação” e de recriação da ação por parte das pessoas.
Reinventando abordagens semelhantes ao dos “ácratas”, já vimos que o “22M” colocava especial ênfase no conceito de “ação exemplar”, significando assim ações carregadas com significado político, sem que seja necessário explicitar esse significado, porque o poder de convicção da “ação exemplar” não estava no discurso que a envolvia, mas no que despertou em quem viu ou ouviu falar sobre isso. Também deviam estar dotadas de poder pedagógico, e ser colocadas ao alcance daqueles que quisessem reproduzi-las, para que pudessem se espalhar e brotar como que por contágio. Em certo sentido, isso invocava de uma forma bastante direta (embora independentemente de suas formas sangrentas), a antiga “propaganda pelo fato” que os anarquistas desenvolveram como instrumentos capazes de despertar e agitar consciências, para desmascarar dominações e estimular vontades de luta.
Maio ainda não terminou
O costume de prestar atenção e dar importância a uma efemeridade, porque o evento histórico a que se refere completa 50 anos, ou 100 anos, beira o absurdo, porque, obviamente, esse evento não era nem mais nem menos importante quando cumpridos, por exemplo, 48 ou 96 anos. No entanto, no caso do Maio de 68, mesmo essa desculpa covarde é boa para trazê-lo à colação e pensar sobre isso, porque ao contrário de muitos outros eventos cujo interesse é apenas de caráter histórico, este, além de ser parte da história, também faz parte do presente e continua pulsando em nossas sociedades.
Na verdade, sabe-se que a sua marca sobre aqueles que imergiram em sua turbulência foi tão grande que para muitos de nós Maio acabou por ser parte do que somos, o que sentimos e o que sonhamos. Como Emma Cohen disse magnificamente em um precioso livro de recordações e experiências³, “Maio nunca terminou de todo”, e isso faz com que nos acompanhe até hoje.
Mas, além de sua inscrição na esfera individual, também deve se considerar que, se Maio ainda não terminou de todo, é pela simples razão de que continua a exercer influência sobre nossas sociedades. De fato, algumas das chaves de sentido para a compreensão do presente estão localizadas precisamente nos acontecimentos de Maio, ou melhor, neste evento extraordinário que foi o Maio de 68. Essa é a razão pela qual devemos aventurar-se no que foi o Maio de 68, se quisermos decifrar alguns dos aspectos do presente.
Maio é parte do tipo de eventos que marcará um antes e depois, sua erupção fecha uma era e abre outra, e resulta que, como a era que abriu ainda não foi fechada, refletir sobre Maio não é tanto contemplar o passado como pensar o presente.
Não posso concluir sem mencionar o fato de que sempre me produz alguma surpresa que se fale do fracasso final do Maio de 68. Eu não consigo entendê-lo pela razão simples que não é apropriado processar um evento em termos de sucesso ou fracasso. Essa avaliação só pode ser aplicada a um projeto forjado para alcançar este ou aquele resultado ou para uma ação realizada com tal ou qual finalidade. Embora seja verdade que o Maio de 68 respondeu ao entrelaçamento de múltiplas causas, a realização de um projeto nunca figurou entre elas. Se insistir-mos em querer falar em termos de sucesso e fracasso, o sucesso de “um evento” é simplesmente o de ter acontecido, e o seu fracasso não seria o de não ter ocorrido. Maio de 68 simplesmente aconteceu, e esse é o seu sucesso inquestionável, assim como seu mistério indecifrável.
Notas:
[1] Liaison des Etudiants Anarchistes, coordenadora anarquista estudantil que fundamos em Paris no final de 1963.
[2] O “Movimento 22 de Março” constituído naquele mesmo dia, em 1968, após a ocupação da Torre Administrativa de Nanterre por cento e cinquenta alunos, foi uma das principais forças motrizes do Maio de 68. Voltarei a ela, mais adiante.
[3] Emma Cohen. A caderneta francesa. Maio de 68. Castelló de la Plana: Publicações da Universitat Jaume I, 2010
Fonte: Revista “Libre Pensamiento” Nº 93 | 2018.
Tradução > Liberto
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