por Raúl Zibechi | 20/07/2018
Sem ética a esquerda não é nada. Nem o programa, nem os discursos, nem sequer as intenções tem o menor valor se não se edificam sobre o compromisso com a verdade, com o respeito irrestrito às decisões explícitas ou implícitas dos setores populares aos quais diz representar.
Neste período no qual todos os dirigentes da esquerda enchem a boca mencionando valores, resulta muito significativo que fiquem apenas no discurso. A ética se põe a prova só quando temos algo que perder. O resto é retórica. Falar de ética ou de valores quando não há riscos, materiais ou simbólicos, é um exercício vazio.
Todos recordamos o feito de Che na Bolívia, quando em vez de pôr-se a salvo das balas inimigas retornou ao lugar do combate para ocupar-se de um companheiro ferido, sabendo que era mais que provável que perdesse a vida nessa ação, sem nenhum sentido militar mas cheio de ética.
Ante nós temos a segunda oportunidade de que a esquerda latino-americana se redima de todos os seus “erros” (entre aspas porque se abusa do termo para encobrir faltas mais sérias), condenando o massacre que está perpetrando Daniel Ortega e Rosario Murillo contra seu próprio povo. A segunda, porque a primeira sucedeu duas décadas atrás, quando da denúncia de Zoilamérica Narváez, a enteada de Ortega, ao denunciar abusos sexuais de seu padrasto.
O silêncio atual das principais figuras da esquerda política da região e da esquerda intelectual diz tudo. Um extravio ético que anuncia os piores resultados políticos.
Culpar ao imperialismo dos próprios crimes é absurdo. Stálin justificou o assassinato de seus principais camaradas porque, disse, faziam o jogo da direita e do imperialismo. Trotsky foi assassinado de maneira vil em 1940, quando sua prédica não poderia de modo algum pôr em perigo o poder de Stálin, que nesses anos contava com a aprovação das elites mundiais para conter o nazismo. Como pode iludir os jovens uma política que se assenta sobre um tapete interminável de cadáveres e de mentiras?
Como pode José Mujica guardar silêncio durante tantos meses – enquanto na Nicarágua morriam centenas de jovens, e ante a carta aberta de Ernesto Cardenal – até pronunciar ao fim algum tipo de crítica a Ortega? Como podem alguns notáveis intelectuais latino-americanos justificar a matança com argumentos insustentáveis ou com um silêncio que os converte em culpados? O que os leva a pedir a liberdade de Lula sem revoltar-se contra o governo da Nicarágua?
Neste período tão negro para a esquerda – como aquele dos julgamentos de Moscou, que liquidou todo vestígio de liberdade na União Soviética – é necessário raspar até o fundo para encontrar explicações. A meu modo de ver, a esquerda passou de ser a força social, e política que pugnava por mudar a sociedade a tornar-se apenas um projeto de poder. Não “o poder para”, mas o poder pelo poder, o tipo de relações que asseguram a boa vida para a camarilha que o detenha.
Foi através da luta pelo poder e a defesa deste que a esquerda se mimetizou com a direita. Hoje se argumenta com a luta contra o neoliberalismo como desculpa para não abrir fissuras no campo da esquerda, com a mesma leviandade que antes se argumentava a defensa da URSS ou de qualquer projeto revolucionário.
Poucos podem crer que entre 1937 e 1938 houvesse um milhão e meio de russos aliados às potências ocidentais (todos membros do partido), que foi a cifra de condenados pela grande purga de Stálin, dos quais quase 700 mil foram executados e o resto condenados a campos de trabalhos forçados. Se esse é o preço a pagar pelo socialismo, haverá que pensá-lo duas vezes.
Estamos ante um período similar. Os progressismos e as esquerdas olham para outro lado quando Evo Morales decide não respeitar o resultado de um referendo, convocado por ele, porque a maioria absoluta decidiu que não pode postular-se a uma nova reeleição. Não querem aceitar que Rafael Correa é culpado de sequestro no “caso Balda”, executado pelos serviços de segurança criados por seu governo e supervisionados pelo presidente. A lista é muito longa, inclui o governo de Nicolás Maduro e o de Ortega, entre outros.
O mais triste é que a história parece ter transcorrido em vão, já que não se extraem lições dos horrores do passado. No entanto, algum dia essa história cairá sobre nossas cabeças, e os filhos das vítimas, assim como nossos próprios filhos, nos pedirão contas, do mesmo modo que o fazem os jovens alemães questionando a seus avós sobre o que fizeram ou deixaram de fazer sob o nazismo, escudados em um impossível desconhecimento dos fatos.
Será tarde. São os momentos quentes da vida os que moldam atitudes e definem quem somos. Este é um desses momentos, que marcará o porvir, ou a tumba, de uma atitude de vida que há dois séculos definimos como esquerda.
Fonte: https://brecha.com.uy/silencios-que-matan/
Tradução > Sol de Abril
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