Agência de Notícias Anarquistas - ANA
Browse: Home / 2018 / Julho / 26 / [Uruguai] Silêncios que matam | Nicarágua e a esquerda

[Uruguai] Silêncios que matam | Nicarágua e a esquerda

By A.N.A. on 26 de Julho de 2018

uruguai-silencios-que-matam-nicaragua-e-a-esquer-1

por Raúl Zibechi | 20/07/2018

Sem ética a esquerda não é nada. Nem o programa, nem os discursos, nem sequer as intenções tem o menor valor se não se edificam sobre o compromisso com a verdade, com o respeito irrestrito às decisões explícitas ou implícitas dos setores populares aos quais diz representar.

Neste período no qual todos os dirigentes da esquerda enchem a boca mencionando valores, resulta muito significativo que fiquem apenas no discurso. A ética se põe a prova só quando temos algo que perder. O resto é retórica. Falar de ética ou de valores quando não há riscos, materiais ou simbólicos, é um exercício vazio.

Todos recordamos o feito de Che na Bolívia, quando em vez de pôr-se a salvo das balas inimigas retornou ao lugar do combate para ocupar-se de um companheiro ferido, sabendo que era mais que provável que perdesse a vida nessa ação, sem nenhum sentido militar mas cheio de ética.

Ante nós temos a segunda oportunidade de que a esquerda latino-americana se redima de todos os seus “erros” (entre aspas porque se abusa do termo para encobrir faltas mais sérias), condenando o massacre que está perpetrando Daniel Ortega e Rosario Murillo contra seu próprio povo. A segunda, porque a primeira sucedeu duas décadas atrás, quando da denúncia de Zoilamérica Narváez, a enteada de Ortega, ao denunciar abusos sexuais de seu padrasto.

O silêncio atual das principais figuras da esquerda política da região e da esquerda intelectual diz tudo. Um extravio ético que anuncia os piores resultados políticos.

Culpar ao imperialismo dos próprios crimes é absurdo. Stálin justificou o assassinato de seus principais camaradas porque, disse, faziam o jogo da direita e do imperialismo. Trotsky foi assassinado de maneira vil em 1940, quando sua prédica não poderia de modo algum pôr em perigo o poder de Stálin, que nesses anos contava com a aprovação das elites mundiais para conter o nazismo. Como pode iludir os jovens uma política que se assenta sobre um tapete interminável de cadáveres e de mentiras?

Como pode José Mujica guardar silêncio durante tantos meses – enquanto na Nicarágua morriam centenas de jovens, e ante a carta aberta de Ernesto Cardenal – até pronunciar ao fim algum tipo de crítica a Ortega? Como podem alguns notáveis intelectuais latino-americanos justificar a matança com argumentos insustentáveis ou com um silêncio que os converte em culpados? O que os leva a pedir a liberdade de Lula sem revoltar-se contra o governo da Nicarágua?

Neste período tão negro para a esquerda – como aquele dos julgamentos de Moscou, que liquidou todo vestígio de liberdade na União Soviética – é necessário raspar até o fundo para encontrar explicações. A meu modo de ver, a esquerda passou de ser a força social, e política que pugnava por mudar a sociedade a tornar-se apenas um projeto de poder. Não “o poder para”, mas o poder pelo poder, o tipo de relações que asseguram a boa vida para a camarilha que o detenha.

Foi através da luta pelo poder e a defesa deste que a esquerda se mimetizou com a direita. Hoje se argumenta com a luta contra o neoliberalismo como desculpa para não abrir fissuras no campo da esquerda, com a mesma leviandade que antes se argumentava a defensa da URSS ou de qualquer projeto revolucionário.

Poucos podem crer que entre 1937 e 1938 houvesse um milhão e meio de russos aliados às potências ocidentais (todos membros do partido), que foi a cifra de condenados pela grande purga de Stálin, dos quais quase 700 mil foram executados e o resto condenados a campos de trabalhos forçados. Se esse é o preço a pagar pelo socialismo, haverá que pensá-lo duas vezes.

Estamos ante um período similar. Os progressismos e as esquerdas olham para outro lado quando Evo Morales decide não respeitar o resultado de um referendo, convocado por ele, porque a maioria absoluta decidiu que não pode postular-se a uma nova reeleição. Não querem aceitar que Rafael Correa é culpado de sequestro no “caso Balda”, executado pelos serviços de segurança criados por seu governo e supervisionados pelo presidente. A lista é muito longa, inclui o governo de Nicolás Maduro e o de Ortega, entre outros.

O mais triste é que a história parece ter transcorrido em vão, já que não se extraem lições dos horrores do passado. No entanto, algum dia essa história cairá sobre nossas cabeças, e os filhos das vítimas, assim como nossos próprios filhos, nos pedirão contas, do mesmo modo que o fazem os jovens alemães questionando a seus avós sobre o que fizeram ou deixaram de fazer sob o nazismo, escudados em um impossível desconhecimento dos fatos.

Será tarde. São os momentos quentes da vida os que moldam atitudes e definem quem somos. Este é um desses momentos, que marcará o porvir, ou a tumba, de uma atitude de vida que há dois séculos definimos como esquerda.

Fonte: https://brecha.com.uy/silencios-que-matan/

Tradução > Sol de Abril

Conteúdo relacionado:

https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2018/07/24/apoiar-ortega-e-como-apoiar-stalin-diz-ex-guerrilheira-na-nicaragua/

agência de notícias anarquistas-ana

o arrozal lindo
por cima do mundo
no miolo da luz

Guimarães Rosa

Compartilhe:

Posted in América Latina, Geral, Movimentos Políticos & Sociais | Tagged Uruguai

« Previous Next »

Sobre

Este espaço tem como objetivo divulgar informações do universo anarquista. Notícias, textos, chamadas, agendas…

Assine

Leia a A.N.A. através do feed RSS ou solicite as notícias por correio eletrônico através do endereço a_n_a[arroba]riseup.net.

O blog também possui sua versão Mastodon.

Participe

Envie notícias, textos, convocatórias, fotos, ilustrações… e colabore conosco traduzindo notícias para o português. a_n_a[arroba]riseup.net

Categorias

  • América Latina
  • Arte, Cultura e Literatura
  • Brasil
  • Discriminação
  • Economia
  • Educação
  • Espaços Autônomos
  • Espanha
  • Esportes
  • Geral
  • Grécia
  • Guerra e Militarismo
  • Meio Ambiente
  • Mídia
  • Mobilidade Urbana
  • Movimentos Políticos & Sociais
  • Mundo
  • Opinião
  • Portugal
  • Postagens Recentes
  • Religião
  • Repressão
  • Sexualidades
  • Tecnologia

Comentários recentes

  1. moésio R. em Lançamento: “Haikais Libertos”, de Liberto Herrera30 de Junho de 2025

    entra neste site: www.imprimaanarquia.com.br

  2. Suzane em Lançamento: “Haikais Libertos”, de Liberto Herrera27 de Junho de 2025

    Parabéns, camarada Liberto! O pessoal da Ana poderia informar como adquirir a obra. Obrigada!

  3. Raiano em [Espanha] Encontro do Livro Anarquista de Salamanca, 8 e 9 de agosto de 202526 de Junho de 2025

    Obrigado pela traduçao

  4. moésio R. em Mais de 60 caciques do Oiapoque repudiam exploração de petróleo na Foz do Amazonas9 de Junho de 2025

    Oiapoque/AP, 28 de maio de 2025. De Conselho de Caciques dos Povos Indígenas de Oiapoque – CCPIO CARTA DE REPÚDIO…

  5. Álvaro em Mais de 60 caciques do Oiapoque repudiam exploração de petróleo na Foz do Amazonas7 de Junho de 2025

    A carta não ta disponível

Copyleft © 2025 Agência de Notícias Anarquistas - ANA. RSS: Notícias, Comentários