[Portugal] Quando o futebol faz uma finta ao capitalismo

por Filipe Nunes | 08/10/2018

Decorria ainda a febre do mundial de futebol e, em plena reunião do coletivo do jornal MAPA, alguém lança: mas porque é que não falamos de desporto? Passada assim a bola, ficou no ar uma situação de empate. Asfixiados diariamente pelo futebol, pela mitomania do Ronaldo, novelas clubísticas, etc., de que outra coisa poder-se-ia falar senão de alienação e da náusea que o mercado capitalista do futebol representa? É aí que entra Mickaël Correia, autor de Uma História Popular do Futebol, obra editada este ano em França e ainda não traduzida por cá.

Com este autor já havíamos falado no MAPA a propósito do CQFD, jornal de crítica e experimentação social sediado em Marselha e do qual Mickaël Correia faz parte. Agora a nossa conversa é mesmo sobre bola. Porque em Uma História Popular do Futebol (edições La Découverte) o termo “popular” anuncia que se vai falar de um “outro futebol”. Não da alienação ou do business, mas da sociabilização do futebol enquanto campo de jogo social e político.

Um “livro militante”

Assim definiu Mickaël este seu trabalho de jornalista independente, de uma militância assumida de esquerda apartidária que se recusa a separar o futebol da política. Desde logo porque “um desporto que mexe com milhões de euros e junta milhões de espectadores é, por essência, político. O problema é que, infelizmente, as forças de esquerda desertaram do futebol depois do pós-guerra, o que é uma aberração estratégica e política: ainda hoje, o elemento cultural mais estruturante nas classes populares e entre os jovens é o futebol!”

Explicando as motivações para o livro, Mickaël faz-nos ver como as nossas reservas em falar de futebol resultam em boa medida de nos focarmos apenas no que nos vendem. Na pele de historiador, recorda como “a História é um campo de batalha. E diz-se sempre que são os vencedores, ou pelo menos os que dominam, que escrevem a História. No caso do futebol, há uma história oficial, entoada pelas grandes competições que estão nas mãos de instituições como a FIFA. É uma história ao serviço do futebol enquanto cultura de massas mas sobretudo enquanto divertimento mercantil. Dá destaque aos feitos desportivos dos grandes clubes de elite, das seleções nacionais e de alguns jogadores profissionais como Cristiano Ronaldo. E atira para debaixo do tapete as relações com regimes autoritários, a corrupção que gangrena este desporto (o FIFAgate de 2015 demonstrou-o recentemente) e os valores sexistas, racistas e homofóbicos veiculados em certas tribunas ou por responsáveis de federações nacionais. Esta história destaca um futebol de elite, sempre com a mesma lenga-lenga: “O futebol é apenas desporto, não é política”.”

Assim, assumindo fazer uma história do futebol “a partir de baixo”, quer lembrar que para lá “deste futebol de elites, que mexe com milhões de euros e que é frequentemente qualificado como “futebol-negócio”, existe um futebol popular que escapa às lógicas mercantis, um futebol mais clandestino. Um futebol que é praticado no dia-a-dia, tanto em clubes como de forma selvagem na rua, por milhões de jogadores e jogadoras.” Já “no que diz respeito à questão do futebol-negócio enquanto vetor de alienação, é mais complicado do que isso. De fato, o que é interessante no futebol é a dialética permanente entre cultura de massas e cultura popular. O futebol mercantil e o futebol popular não são duas esferas estanques, muito pelo contrário, as fronteiras entre estes dois mundos são porosas e conduzem a contradições enormes.”

A subversão do futebol

Fazer uma história do futebol “a partir de baixo” é demonstrar que, desde o seu nascimento na Inglaterra Industrial do século XIX até hoje, este desporto também foi um meio de resistência em relação à ordem estabelecida, seja patronal, ditatorial, colonial, patriarcal (ou tudo isso ao mesmo tempo). O futebol fez emergir novas formas de luta, de organização, de expressão – numa palavra, de “existência” – tanto entre os trabalhadores como entre os jovens dos bairros populares, tanto entre os povos indígenas da América Latina como nas feministas, nos militantes anti-colonialistas da África Ocidental e nos palestinos. Enfim, escrever uma história deste desporto “a partir de baixo” significa também uma ligação às culturas populares que nasceram à volta do futebol e voltar a dar voz aos diferentes protagonistas desta epopeia pouco conhecida.”

Comecemos pelo início. “Na Grã-Bretanha e no ocidente de França, a prática de jogos populares de bola onde se defrontavam aldeias existe desde a Idade Média. As partidas podem durar horas ou até dias, o terreno de jogo é ilimitado (joga-se pelos campos e pela floresta) e a regra é simples: meter a bola no campo do adversário não importa como. Estes jogos de futebol selvagem reuniam, normalmente no dia de Carnaval, as comunidades camponesas: serviam para se divertirem, mas também para reforçar os laços comunitários e regular os conflitos entre aldeias.”

A partir do século XVIII, estas partidas podem ter sido desviadas para fins insurrecionais contra proprietários ricos. De fato, na Grã-Bretanha, é o momento em que a privatização das terras tira espaços comuns aos camponeses fragilizados pela ascensão duma burguesia rural, a landed gentry (é o que se chama “movimento de vedação” – enclosure – que Karl Marx analisa como uma etapa chave no nascimento do capitalismo industrial). Estes jogos campesinos vão desaparecer à medida que as terras agrícolas, e portanto os terrenos de jogo, são monopolizados pela burguesia.”

O jogo sai dos campos e vai para os pátios das escolas. “Ao mesmo tempo, no seio das public-schools, escolas aristocráticas privadas onde se forma a elite britânica, os jovens alunos burgueses também praticam formas de futebol selvagem, inspiradas nos jogos tradicionais campesinos da bola redonda. Mas os professores dessas escolas irão padronizar, codificar esses jogos em meados do século XIX para criar o futebol moderno em 1863. Para esses professores, o futebol é visto como uma arma pedagógica ao serviço da revolução industrial. Aos olhos da burguesia, permite veicular valores como o espírito de iniciativa, o gosto pela competição, a obediência à autoridade, os feitos individuais, a virilidade. Valores então tão necessários à expansão econômica e colonial do Império britânico.”

De seguida, os alunos das public-schools, transformados em grandes patrões da indústria, vão querer inculcar o futebol aos seus operários, mas numa ótica de controle social: trata-se, para eles, de ensinar no terreno a divisão do trabalho (cada um no seu posto no campo como na fábrica), mas sobretudo de os ocupar para que não fossem para a taberna beber ou, pior, que se sindicalizassem.”

O futebol irá, no entanto, ser reapropriado pelos operários. Não sendo mais do que o resultado dum vasto êxodo rural, estes trabalhadores têm necessidade de recriar as suas raízes culturais nas grandes metrópoles britânicas, e o futebol vai servir de terreno para a cultura operária. Ao apoiarem a equipe do seu bairro, ao encorajarem os trabalhadores-futebolistas da sua fábrica, ao irem ao jogo todos os fins-de-semana, o futebol vai, a partir dos anos 1880, aguçar o sentimento de orgulho de pertença a uma mesma comunidade operária e vai contribuir para forjar uma sólida consciência de classe.”

Os trabalhadores também vão inventar o jogo de passe tal como o conhecemos hoje. Anteriormente, os burgueses jogavam de forma muito individual, com seis atacantes que partiam sozinhos com a bola até à baliza: passar a bola era considerado uma confissão de fraqueza. As equipes operárias vão, ao contrário, desenvolver os passes e a entre-ajuda entre jogadores da mesma equipe. A sua forma de jogar encarna, no terreno, o espírito de cooperação e de solidariedade que reina no seio das fábricas e das comunidades operárias, e o passe torna-se, segundo eles, um ato altruísta ao serviço do coletivo.”

O passe político do jogo

É nesse sentido coletivo que o futebol consolida o seu lado operário. “O movimento operário questionou-se, a partir do início do século XX, acerca do futebol: alguns viam nele uma escola de competição, afirmando que o futebol apaga, por trás das camisas, a divisão de classe. Outros, pelo contrário, manifestaram a vontade de criar equipes de futebol vermelhas para tirar os trabalhadores dos clubes detidos por patrões de empresas ou pela Igreja. Para eles, o futebol pode ser um espaço de aprendizagem da cooperação, do apoio mútuo, do indivíduo ao serviço do coletivo.”

Com o pós 2.ª Guerra Mundial, quando a força histórica do operariado se transmuta nas classes populares, o futebol capta muito dessa força. Mas agora, diz-nos Mickaël, “nos anos 1970, para os jovens hooligans e os adeptos ultra, a arquibancada transforma-se num território em si, de apoio a uma ideia coletiva, a do seu clube e do seu bairro, de práticas de solidariedade e apoio mútuo. Coletiviza-se o dinheiro para beber e comer em conjunto e para as deslocações em grupo para os jogos. Passam-se noites inteiras a preparar animações visuais, faixas e cânticos que se cantarão em coro nas arquibancadas. Numa palavra, faz-se comunidade.”

Os movimentos de esquerda, entretanto, vão interessar-se pouco pela emergência destas culturas populares, ao contrário da extrema-direita, que vai rapidamente ver que as arquibancadas são um deserto em termos de organizações políticas. A partir dos finais dos anos 70, as arquibancadas britânicas estão repletas de militantes da National Front ou de grupúsculos neonazis que vêm nelas um espaço de recrutamento entre jovens desfavorecidos marginalizados pelo governo Thatcher. Da mesma forma, em Itália, os militantes de extrema-direita, nomeadamente os da Forza Nuova, um partido neofascista criado em 1997, vão implantar-se de forma duradoura nos estádios.”

Com as questões de identidade e de território a estarem muito presentes no apoio a clubes, a extrema-direita conseguirá facilmente manipular estes valores em seu proveito e fazer deles um terreno para o racismo, a exaltação da violência e o nacionalismo. Estas noções são ângulos mortos atuais da esquerda, mas a identidade, tal como o território, podem ser coletivos, inclusivos e sinônimo de resistência.”

Identidade e território

Estas duas noções, pedras angulares do desporto coletivo, levam Mickaël a expor-nos dois interessantes paralelos. A começar pelo menos óbvio: “A vitória recente de Notre-Dame-des-Landes [luta vitoriosa contra a construção de um aeroporto, que o MAPA abordou em edições anteriores] não é trivial. Esta luta ancorou-se num território a defender, isento de injunções normativas e autoritárias do Estado, um território aberto a partir do qual todo um conjunto e práticas de lutas puderam ser realizadas.”

Quanto à identidade social da ZAD, que aparece entre outras nas lutas camponesas, ela transporta um imaginário político incrível que fez com que fôssemos dezenas de milhar a encontrarmo-nos nesse combate. Há um verdadeiro paralelo a fazer entre a ZAD de Notre-Dame-des-Landes e uma arquibancada dominada pelos ultra: são territórios onde se pode habitar em pleno, isentos de repressão policial e sinônimos de solidariedade.”

O segundo paralelo futebolístico de identidade e território é mais conhecido. Equilibrando-se na linha ténue que pode haver entre futebol mercantil e futebol popular, é caso do “Barcelona, um clube extremamente popular no mundo inteiro. Por um lado, os seus dirigentes comparam-se frequentemente a Walt Disney, fazendo equivaler Disneylândia e Camp Nou (o estádio do Barcelona) e Mickey Mouse a Leo Messi. Mas, por outro lado, e ainda mais no contexto de luta pela independência da Catalunha, o Barça desempenhou sempre um enorme papel de afirmação da identidade catalã. Um pouco como fez no passado, durante a ditadura franquista, quando as arquibancadas do Camp Nou era um dos raros locais de resistência cultural. Idem no que diz respeito à Palestina, onde o Barça é extremamente popular. Muitos jovens vestem contrafações da camisa do FC Barcelona, porque a causa independentista catalã e a rivalidade em relação à grande potência de Madrid (representada pelo Real Madrid) tem eco de forma particular na luta palestina pelo reconhecimento dos seus direitos. Temos, assim, um clube que é o estandarte das piores derivas do futebol-negócio e, ao mesmo tempo, o porta-bandeira das aspirações políticas dos povos catalães e palestinos.”

A posse da bola e dos corpos negros

E no que respeita ao frente a frente com o jogador dominante, não pode ficar de lado a história sobre o desenvolvimento do drible no Brasil. “Os afro-brasileiros descobrem o futebol nos anos 20, mas a sociedade brasileira ainda é extremamente racista. Durante os jogos, não é raro ver futebolistas brancos a assediarem de forma rude os jogadores negros perante um público e um árbitro completamente indiferentes às violências no terreno. É assim que se vai desenvolver o drible no Brasil, que os negros praticam para se esquivarem às agressões físicas dos jogadores brancos. O drible, a finta, que é hoje uma prática essencial no futebol brasileiro, traz consigo a própria condição do colonizado: para existir, no campo como na sociedade, deve escapar à violência do colono.”

Por essa mesma altura em Portugal, assistia-se à propaganda do Estado Novo de um Eusébio do Portugal colonial, do “mito do pluri-racialismo lusófono”. Porque, como refere Mickaël, “os regimes ditatoriais vão rapidamente compreender o poder mobilizador do futebol, porque um estádio é, antes de mais, um espaço de representação dos corpos. Mussolini, que organizou o segundo campeonato do mundo de futebol, em 1934, aproveitou-se da competição para apresentar uma visão do corpo viril e guerreira, um corpo que encarna o projeto racial da ideologia fascista. O Estado Novo inscreve-se na mesma continuidade política: apresentar o corpo negro de Eusébio é uma forma de promover o multi-racialismo e o fato de Portugal continental e as suas colônias serem parte duma mesma comunidade lusófona… É uma resposta do Estado salazarista à luta armada independentista que, na altura, se organizava nas colônias portuguesas.”

Vemos a mesma coisa com Pelé no tempo da ditadura brasileira. Da mesma forma que Eusébio, Pelé vai encarnar uma figura negra muito civilizada e politicamente neutra, numa altura em que vemos surgir desportistas afro-americanos muito contestatários, como Mohammad Ali, e que, à época, fizeram tremer as instituições desportivas e midiáticas.” Olhando para a atualidade, permanecemos “no campo da pura instrumentalização política, e as federações desportivas sempre se deram bem com isso. Vimo-lo ainda este ano com o Campeonato do Mundo e a vitória francesa. O governo utiliza a equipe de França para mostrar ao mundo que os jovens negros e magrebinos estão bem integrados no país, quando na realidade os filhos de imigrantes das antigas colônias francesas são sujeitos a uma segregação social e racial cada vez mais violenta em França…”

Que gênero de desporto?

Um gênero e um corpus de masculinidade. Efetivamente, “desde a sua origem, tanto os campos como as arquibancadas foram bastiões masculinos, na medida em que os homens das classes operárias fazem do futebol um elemento essencial da sua identidade masculina. Ainda hoje o futebol institucional veicula valores masculinos muito heteronormativos. O futebolista profissional é um homem que namora, se casa e tem filhos muito novo. A companheira deve permanecer à sombra do seu marido, fiel e silenciosa.”

Mas não sem exceções. Uma História Popular do Futebol lembra como a história de atuais equipes femininas podem recuar cem anos quando “em Inglaterra, durante a Primeira Guerra Mundial, os homens partiram para a frente. As operárias que trabalhavam afincadamente nas fábricas de armamento aproveitaram uma dominação masculina menos presente para se emanciparem. Exigiram poder praticar o futebol, a diversão dos seus pais, irmãos ou maridos. Desde 1917, cerca de duzentas equipes de trabalhadoras-futebolistas viram a luz do dia… Estas pioneiras do futebol feminino tornam-se extremamente populares: em 1920, mais de 50 mil espectadores assistiram, em Liverpool, a um jogo de duas equipes operárias! É uma história completamente escondida debaixo do tapete pelas instituições.”

O certo é que “o futebol é um espaço de representação dos corpos, ou seja, uma questão de poder. E uma mulher que joga à bola apresenta uma outra visão do corpo feminino. No terreno e da mesma forma que os homens, as futebolistas suam, magoam-se nos joelhos, batem-se, por vezes violentamente, contra as suas adversárias, quebrando assim os estereótipos de gênero à volta da feminilidade. Mesmo que esteja a evoluir nos últimos tempos, a figura da futebolista – tal como a do futebolista gay – aterroriza as instituições, uma vez que vem subverter os papéis tradicionais de sexo e de gênero que o futebol reproduz.”

Das arquibancadas para as ruas

O futebol, já se sabe, joga-se para lá das quatro linhas. E aqui passamos a falar não dos jogadores, mas dos torcedores. O livro de Mickaël Correia recorda como o papel das torcidas ultra nas primaveras árabes em 2011 ou na Turquia em 2013 foi marcante na capacidade de resistência popular. No Egito, “estes jovens ultra, que conheceram a cultura ultra pela Internet a partir de 2005, escapam completamente ao controle do poder, porque são independentes do clube, financeiramente autônomos e têm uma certa cultura de anonimato. O seu modo de vida coletiva, em que comem, vão ao estádio e se deslocam em grupo, coletivizando o seu dinheiro, perturba o conservadorismo patriarcal e religioso da sociedade egípcia. Perante esta juventude auto-organizada para além do espartilho familiar e estatal, o regime envia as suas forças da ordem para os reprimir violentamente.”

Mas estes ultras vão progressivamente desenvolvendo práticas de auto-defesa perante a polícia e cultivando um verdadeiro ódio ao regime militar. Mal o movimento revolucionário egípcio estalou, em Janeiro de 2011, estes torcedores reconheceram-se nos manifestantes e transformaram-se no “braço armado” da defesa da Praça Tahir face aos ataques das forças da ordem. Os ultras trazem aos manifestantes as suas práticas de auto-defesa perante a repressão policial, incutem o espírito de solidariedade e de composição próprios das arquibancadas durante a ocupação das praças, onde ensinam aos manifestantes a arte do escárnio através de faixas e slogans humorísticos – um savoir-faire particular do mundoultra.”

Qualquer olhar aos torcedores, independentemente de contextos como a primavera árabe, leva Mickaël a concluir que estes “foram um dos primeiros grupos sociais a ser massivamente vigiado, cadastrado, e para o qual se criou um arsenal jurídico específico. Desde há vinte anos, os torcedores constituem as cobaias das medidas liberticidas e das violências policiais a que várias franjas da população estão hoje sujeitas.”

Contra a gentrificação dos estádios

Assiste-se atualmente a uma verdadeira gentrificação das arquibancadas da Europa, um movimento que chega de Inglaterra, onde hoje um bilhete para um estádio da Primeira Liga custa em média 600 euros. Em Liverpool, o preço dos bilhetes mais baratos aumentou 1100 % entre 1990 e 2011! Enfim, os grandes clubes estão cada vez mais desligados da sua história e dos seus torcedores: o Manchester United está em vias de abrir franchises no mundo inteiro, à imagem do McDonald’s. O clube transforma-se numa mera marca, nada mais.”

Porém, “um dos grandes contra-poderes em relação às derivas mercantis do futebol reside hoje nos torcedores. Da mesma forma que cada vez mais pessoas aspiram a mais democracia direta e horizontalidade, os torcedores querem agora ter uma palavra a dizer e não deixar o futebol unicamente na mão de especuladores. Transformaram-se em atores democráticos de pleno direito na cena futebolística, verdadeiros sindicalistas que defendem as suas reivindicações e os seus interesses: lugares a preços acessíveis, a possibilidade de animar as arquibancadas com fumaças, a crítica à hipersecurização dos estádios, etc.”

Perante os poderes mercantis, os torcedores são os guardiões da história do seu clube e da alma popular do futebol. Determinados comportamentos em relação a dirigentes ou a jogadores podem transformar-se em violências injustificáveis, mas é uma violência que responde a uma violência econômica: a dos jogadores que recebem demais e que se podem comportar como mercenários gananciosos e investidores que apenas olham para o futebol como um produto econômico lucrativo.”

Ao mesmo tempo, uma outra crescente reação dos torcedores desiludidos com o futebol moderno surgiu “no fim dos anos 90, em reação à liberalização econômica extrema do futebol em Inglaterra. Alguns torcedores implementaram um sistema de acionistas populares sob a forma de cooperativa com o objetivo de recomprarem uma parte, ou até a maioria, do seu clube (como o AFC Wimbledon, Exeter City ou Portsmouth FC) e poderem estar representados no seio das instâncias dirigentes. Outros chegaram mesmo a criar o seu próprio clube autogerido, como os fans do Manchester United. Para contestar a compra do clube, em 2005, por Malcom Glazer, um bilionário americano, os apoiantes criaram um clube cooperativo, o FC United.”

É um movimento cooperativo que está a crescer: mais de uma trintena de clubes ingleses são detidos maioritariamente pelos seus fans (dos quais 4 são inteiramente profissionais). Vemos a mesma dinâmica na Escócia (com clubes como o Striling Albion), em Espanha (o UC Ceares, em Gijon, ou o Athletico Club de Socios, em Madrid), em Itália (CS Lebowski, em Florença) e há iniciativas de acionistas populares a chegarem a Nantes e Marselha, em França.”

O prazer sem Ronaldo

A conversa tem girado na perspectiva identitária do futebol. Mas o que separa a marca identitária de um Ronaldo, da marca identitária do pequeno clube local? Falamos de cultura de massas e de cultura popular, não?

De fato. A história popular do futebol não é um movimento linear mas uma dialéctica permanente entre cultura de massas e cultura popular. É toda uma contradição do futebol e que faz com que ele seja um tema apaixonante quando se é de esquerda, porque nos vem revirar do nosso conforto de pensamento.”

O futebol-negócio sempre açambarcou o futebol do povo. Vemo-lo através de jogadores profissionais que são cada vez mais originários dos subúrbios e daquilo a que se chama futebol de rua (com jogadores como Pogba ou Dembélé, por exemplo) ou ainda das campanhas publicitárias de produtores de equipamentos desportivos que se baseiam no imaginário do futebol de bairro, apresentando futebolistas que jogam de forma selvagem sobre o asfalto da cidade… Até os jogos informais de futebol na praia foram codificados para dar lugar ao “futebol de praia” e a um Campeonato do Mundo profissional gerido pela FIFA!”

Ronaldo é um dos maiores representantes das piores derivas do futebol mercantilizado mas também se pode dar a volta ao imaginário que ele veicula. É o que fizeram, a meio de Julho, os trabalhadores da Fiat, em Turim, que, mal souberam que o Ronaldo ia assinar pela Juventus, entraram em greve. A família Agnelli é proprietária da Fiat e da Juventus e os grevistas firmaram em comunicado: “Pedem-nos para fazermos sacrifícios econômicos durante anos, é inaceitável ver que a Fiat gasta centenas de milhões de euros por um jogador de futebol. Enquanto os trabalhadores apertam cada vez mais o cinto, o nosso proprietário gasta muito dinheiro por um único recurso humano”.”

Conclui Mickaël Correia, para terminarmos esta conversa sobre bola: “Em suma, no futebol, estamos numa relação de forças, num campo de batalha onde as nossas armas são a inventividade coletiva e sobretudo o prazer. Nem todo o dinheiro do mundo conseguiria alguma vez comprar o prazer de chutar uma bola e é nesta alegria simples, no fato de o futebol ser uma “prática pobre” (bastam uma bola e um bocado de rua) que se encontra o potencial político deste desporto. E, muitas vezes, o prazer é o primeiro passo para a emancipação…”

Fonte: http://www.jornalmapa.pt/2018/10/08/quando-o-futebol-faz-uma-finta-ao-capitalismo/

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