R e s e n h a
Diferente de outras tentativas de vislumbrar o futuro, para além e aquém das utopias e distopias, “Deserto” traz uma visão bastante pé no chão das próximas décadas: será um caos. Na verdade, tão caótico quanto é hoje, só que um pouco menos reconhecível. As sociedades como as conhecemos se transformarão, algumas brechas se abrirão para a anarquia, em outras áreas o Estado e a vigilância ficarão mais fortes. Acima de tudo, o que me parece a grande intenção do livro se resume numa frase: “o mundo não será salvo”. A partir daí, o autor anônimo, que se define na primeira linha como “anarquista e amante da natureza”, desmonta completamente nosso senso comum ativista e ainda consegue apontar caminhos em meio ao colapso inevitável.
Para começar, “não existe futuro global”. O capitalismo não triunfou com a hegemonia que já se delirava quando o muro de Berlim caiu, e menos ainda todas as pessoas no planeta terão de viver sob seus escombros. Simplesmente, ele não está por toda parte hoje. De fato, a globalização, que depende de extensas redes de comunicação e transporte, rapidamente se desmontará quando vários Estados falirem à medida que catástrofes ecológicas e sociais ganharem intensidade nos seus quintais. Porém, por exemplo, algumas regiões de clima temperado hoje ficarão mais férteis, enquanto, para nossa contínua desgraça, os trópicos e o sul terão que mais uma vez se reinventar no calor intenso. O colapso virá, que não tenhamos dúvidas! Como aponta Carlos Taibo, podemos esperar uma diminuição da complexidade (tecnológica, política e social) e descentralização do poder. Mas a cara que isso terá, será própria de cada lugar.
O capítulo “É mais tarde do que acreditamos” continua o desmonte da esperança do ativismo de emergência. Já faz alguns anos que a esquerda perdeu o costume de delinear um horizonte político. Depois que descobrimos que o sofrimento, este sim, está por toda parte, a remediação (religiosamente salvadora) deve ocorrer agora. Entretanto, em termos de mudanças climáticas, o agora foi pro beleléu. Não há mais tempo. Alguns climatologistas falam em “dívida de extinção”: há mudanças que acontecem hoje, mas que têm seus efeitos (previsíveis) em alguns anos, muitas vezes décadas a frente. Como civilização, nossa dívida é enorme, não há como voltar atrás. As mudanças climáticas “causarão e agravarão guerras civis, em grande parte, pelo aumento da escassez de comida, água e solo fértil”.
Uma reflexão no livro que pode oferecer um caminho hoje são as “Rotas africanas para a anarquia”. Se “a maioria das guerras na África são motivadas mais pela presença de recurso do que pela falta deles”, então o encolhimento do comércio e da exploração globais melhorarão as terríveis condições gerais do continente. O capitalismo precariza, mas também, em muitas partes do hemisfério sul, ele em si é precário. Nesse lugares, afrouxar o laço capitalista permite que sociedades tradicionais (ou originárias) voltem a respirar do seu jeito. Algumas delas eram e voltarão a ser sem governo.
Embora, por um lado, é esperado que a civilização retroceda e a vida selvagem retorne, por outro, as novas terras disponíveis se transformarão na nova fronteira. Possivelmente, os povos que aí vivem hoje (na Sibéria e no norte do Canadá) serão colonizados ou exterminados, levando outras populações a convergirem para lá e à formação de novas aglomerações urbanas. A maioria das pessoas, como já acontece hoje, viverão nas periferias, com problemas crônicos de saneamento, abastecimento de água, e moradia. Também como hoje, a proliferação de igrejas e salvações (as da esquerda sendo as menos influentes) é esperada.
Em meio a essas descrições calamitosas, o autor ousa fazer a seguinte inversão: “Partindo do princípio de que nos encontramos em uma situação bastante complicada, parece muito útil transformar as desvantagens em vantagens.” E lança oito olhares inusitados ao que geralmente se considera como as maiores dificuldades do ativismo atual: somos poucas, a civilização é genocida, forças não-estatais também são ecocidas, etc.
É claro que a situação já está ruim em muitos lugares do mundo hoje, e ficará pior em toda parte. “Deserto” não tenta nos distrair disso. Pelo contrário, aponta muitas coisas do jeito que são e provavelmente se intensificarão. Não resta muito espaço para fantasias. O futuro será pior que o presente e só nos exige ação.
Deserto
Autorx anônimx
Editora Subta
140 páginas, capa em papel colorplus 180g
28,00
> Link para aquisição do impresso:
https://monstrodosmares.com.br/distro/livros/deserto/
> Link para download:
https://we.riseup.net/assets/525288/deserto+novo.pdf
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à luz de vela.
Reinaldo Cozer
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!