Diretores do documentário que estreia nesta semana no Brasil visitam o Vale dos Caídos, símbolo do regime de Franco, junto a vítimas da ditadura
por Gregorio Belinchón | 28/02/2019
Na manhã do dia 24 de janeiro, Madri acordou tomada pelo vento. E ainda mais na serra. E muito mais na esplanada de acesso à basílica do Vale dos Caídos, onde repousam os restos de 34.000 pessoas. Entre uma rajada e outra, nos instantes de silêncio se escutavam os corvos grasnando. O frio, aguçado pela atmosfera tétrica da arquitetura de Franco, congela os ossos.
“É que o lugar traz isso”, diz a cineasta Almudena Carracedo com um meio sorriso. Ela e Robert Bahar são responsáveis por O Silêncio dos Outros (El Silencio de Otros), documentário que estreia nesta semana nos cinemas no Brasil, e que, desde o seu lançamento há um ano na Berlinale (onde ganhou o prêmio do público de melhor documentário da seção Panorama), tem causado polêmica e aberto o debate sobre o tratamento que a Espanha dá às vítimas dos crimes da ditadura de Franco.
Bahar e Carracedo, que dedicaram seis anos à filmagem e um sétimo à montagem do filme, foram ao Vale dos Caídos acompanhados por José María Galante, Chato, que quando estudante foi torturado por duas semanas na Puerta del Sol por Antonio González Pacheco, policial mais conhecido como Billy el Niño, e María Ángeles Martín, neta de Faustina López González, assassinada em 21 de setembro, 1936 em Pedro Bernardo (Ávila), e cujo corpo permanece em uma vala comum debaixo de uma estrada. A mãe de María Ángeles, María Martín, morreu em 2014 sem poder enterrar sua progenitora em um cemitério, e a imagem da mulher idosa doente, apoiada em uma mureta meditando enquanto sussurra – “Que injustos somos nós seres humanos”– resumo de O Silêncio dos Outros.
Sob a cruz megalomaníaca, Carracedo espera que do Vale seja feito um museu-monumento da memória: “Que se explique o que aconteceu.” E Martin ressalta: “Mas que se conte a verdade, que a história seja reescrita”. Galante explica: “Façamos um concurso internacional, ressignificar o lugar e lembrar das pessoas que morreram erguendo isto”. O quarteto espera que todos os corpos enterrados sejam removidos e entregues às suas famílias. “Os que não forem reclamados”, diz Galante, “poderiam ser sepultados em um cemitério onde fossem homenageados, como os que há na Europa com as vítimas das guerras mundiais”.
A Espanha – os espanhóis – fracassou com as vítimas da ditadura de Franco? “Claro”, diz Martín. “Começou com um pacto em que nos pediram para perdoar porque sim e esquecer porque sim. E assim os criminosos nunca pediram perdão. Para que esta barbaridade de torturados, fuzilados e vítimas de represálias em quatro décadas de ditadura nunca mais se repita há uma parte da nossa sociedade que tem de enfrentar seus erros. Sinto que eles não querem se reconciliar “. Carracedo olha para a porta da basílica: “A Espanha tem uma dívida com muitas pessoas, que foram os verdadeiros artífices da democracia, e que deram seus dias, suas vidas em prol da democracia que agora desfrutamos.”
Um dos protagonistas do documentário me disse: “Enquanto passávamos nossa juventude lutando pela liberdade nunca pensamos que nosso esforço fosse reconhecido, mas jamais teríamos imaginado que seríamos ignorados desse jeito. Isso me entristece muito”. Galante acha que o pacto de silêncio foi imposto à sociedade pelas instituições e que, portanto, “a responsabilidade é dessas instituições que negaram os princípios da verdade, justiça e reparação sobre os quais fundamentar a convivência democrática. A impunidade pelos crimes contra a humanidade está sendo mantida. No entanto, acho que não deixam a sociedade se pronunciar, o que certamente acabaria com essa impunidade do regime franquista. Estamos em 2019, e isso não se sustenta mais”. Martín comenta irônica: “Que incongruência, não é verdade? Não querem tirar este senhor daqui e nós não podemos tirar nossas famílias.”
Bahar, norte-americano da Filadélfia, diz que neste ano em que acompanhou O Silêncio dos Outros por meio mundo encontrou um elemento comum: “O público se surpreende que com o século XXI já tão avançado não deixem os familiares desenterrarem os restos de seus entes queridos, que haja torturadores andando pela rua ou que não se possa investigar o caso dos bebês roubados. Os estrangeiros ficam indignados com o que acontece depois de quatro décadas de democracia. O tempo está se esgotando.”
Galante, em suas queixas contra Billy el Niño, está otimista: “Foram abertas brechas legais, duas queixas foram aceitas e os tribunais europeus estão pressionando os espanhóis, que serão forçados a aceitar suas sentenças. Já existem movimentos de pessoas”. Martín não tem isso tão claro: “Porque há famílias que não querem que seu sobrenome seja manchado com pecados do passado de seus ancestrais. E elas ainda mandam muito. Acho isso muito difícil. A recepção deste documentário me dá alguma esperança. E, claro, não gostaria de deixar esta herança para meus filhos. Não quero falar por mim, porque aqui todos nós lutamos por todos”.
Fonte:https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/27/cultura/1548596180_844829.html
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